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III – A Clínica do Autismo na Escola Lacaniana

4. As diferentes posições teóricas frente ao autismo infantil

Quando nos detemos nas publicações dos autores da escola lacaniana que versam sobre o tema do autismo infantil, vemos que ainda hoje existem controvérsias e posições diferentes na tentativa de responder a questão de onde enquadrar o autismo no esquema estrutural.

Encontramos indicações de autores que apontam o autismo como sendo um momento anterior ao da constituição do sujeito, anterior mesmo a estruturação de uma psicose. Por outro lado, existem aqueles autores que defendem que o autismo deve ser alocado dentro do campo das psicoses, sendo considerado uma subcategoria clínica que tem

suas particularidades em função da relação própria que se estabelece entre a criança e o Outro.

Vamos nos deter nos apontamentos feitos por autores que representam estes diferentes pontos de vista e de interpretação do legado que nos deixou Lacan, ao longo de sua obra, acerca do autismo infantil.

LOPES (1995), como representante dos autores que apontam o autismo como sendo anterior a estruturação de um funcionamento psicótico, apóia sua hipótese na tese lacaniana de um sujeito “inconstituído”. Para tanto, recorre aos comentários de Lacan a respeito do caso Dick, criança que foi analisada e ficou conhecida veio a ser no meio psicanalítico através de Melanie Klein.

Tomando Dick como uma criança que pode ser considerada autista, tendo como referência a descrição fenomenológica da síndrome nomeada por Kanner, a autora nos apresenta o caso e tece comentários acerca da atuação de Klein, enquanto analista, e dos efeitos que produz sobre a criança.

Tendo como referencial os comentários que Lacan faz a respeito do caso ao longo de sua obra, diz que é possível conceber Dick como um jovem sujeito em estado puro, inteirinho na realidade, inconstituído, de modo que aos poucos as intervenções da analista vão funcionando como “uma verdadeira injeção de simbólico” (1995, p. 113).

Com a pronuncia de uma primeira palavra, a autora pontua a articulação que pode se operar entre simbólico e imaginário, momento crucial para a constituição desta criança. Segundo LOPES (1995, p. 113), Melanie Klein irá afirmar ter aberto as portas do inconsciente para Dick, ao que Lacan compreende não como um momento inaugural da alienação ao desejo do Outro, que fundaria o sujeito da enunciação, mas como um momento lógico anterior, de uma passagem lógica na direção de uma cura.

O que a autora atesta tomando este caso como ilustração, é que o autismo documenta uma falha primordial, precoce na constituição do sujeito. Trata-se de “um sujeito no puro real, cujo estatuto é o do sujeito inconstituído na estrutura, excluído do campo do desejo” (LOPES, 1995, p.114).

Partindo de um outro referencial, SOLER (1999) em seu artigo “Autismo e Paranóia”, defende a hipótese de que nunca encontramos um autismo puro, pois o autismo se trataria de um pólo situado no aquém da alienação, uma recusa de entrar, um permanecer

na borda. Deste modo, a autora constrói um discurso no qual remete o autismo à psicose, guardadas as peculiaridades apresentadas por estas crianças em função de permanecerem na borda da alienação.

Tecendo um texto comparativo em relação ao autismo e a paranóia, a autora propõe uma primeira distinção que nos permite pensar numa subcategoria clínica, mesmo que acomodada no campo das psicoses: para estas crianças parece não haver a construção de delírios.

Partindo do que aponta a literatura que versa sobre o assunto, recorta quatro características principais que garantem uma particularidade do funcionamento autista: primeiro, observamos que são crianças que atestam em suas ações que são perseguidas pelos signos da presença do Outro e, em especial, por dois objetos: a voz e o olhar; segundo, anulam a presença deste Outro, uma vez que nos aparecem como se fossem surdos ou apresentando distúrbios do olhar; terceiro, revelam uma recusa do que o Outro por sua palavra pode intimar, o que constata pela ausência da dimensão do apelo; e por fim, a Quarta característica se refere aos problemas de separação, apontando para uma aderência ao Outro (SOLER, 1999, p. 224-225).

Ao discutir a questão da constituição do corpo do autista, a autora faz mais uma analogia ao que encontramos na paranóia, se apoiando para tanto no que é apontado pelo caso Schreber:

“tudo se passa como se sua inclusão no Outro do significante ao nível do corpo se traduzisse no fato de que a libido também é do Outro. Encontramos, aliás, um equivalente em Schreber. Ainda que Schreber não tenha qualquer perturbação na percepção de sua imagem propriamente dita, seu corpo é coextensivo ao universo. Schreber não está somente no ponto onde seu corpo está; ele está também no outro extremo do universo onde Deus se encontra.” (SOLER, 1999, p. 231).

Já PIERRE BRUNO (apud TENDLARZ, 1997, p.17), parte do pressuposto de que no ensino lacaniano, dentro do campo das psicoses, só podemos conceber uma polaridade, aquela existente entre esquizofrenia e paranóia. É assim que vem a situar o autismo como

manifestação precoce da esquizofrenia, considerando-o como forma extrema desta patologia. Cabe ressaltar que o autor esclarece que emprega o termo forma extrema, no sentido de variante da esquizofrenia, sem que se possa falar de um diferença qualitativa estrutural entre as duas patologias.

BALBO & BERGÈS (2003), em seu livro “Psicose, autismo e falha cognitiva na criança”, desenvolvem uma discussão acerca das patologias graves da infância, situando também o autismo em relação à psicose. Apesar de se dedicarem as particularidades que caracterizam uma criança autista, é sempre em função da criança psicótica que o fazem. Isto nos leva à conclusão de que, para os referidos autores, o autista não é um sujeito constituído. Mas, em determinado ponto de seu texto, afirmam que o autismo deve ser colocado no campo das perversões, o que implica que retomemos suas formulações para que possamos compreender o que querem dizer com isso.

Se para o psicótico está em jogo a foraclusão do Nome-do-Pai, os autores defendem que para o autista, para além desta, temos a foraclusão do desejo da mãe do bebê. Ela não exerceria a função de Outro, pois estaria foracluída de seu próprio desejo, uma vez que simplesmente se coloca como instrumento da demanda de sua própria mãe, a quem supõe ter que dar um filho. Os autores propõem que:

“no autismo, a avó materna é o pai: ela é o único homem da família. A filha, que é a mãe, não aceita a castração de sua própria mãe e quer como prova disso que sua mãe seja o pai de seu filho. De modo que há duas foraclusões: a do Nome-do-Pai da mãe – não-castração – e a do Nome-do-Pai da criança. Dito de outro modo, não é apenas uma foraclusão que está em jogo, mas uma foraclusão dupla: ao mesmo tempo do Nome-do-Pai da mãe e do Nome-do-Pai da criança. Isso deve ser aproximado do que Freud diz: ‘A situação pré- edipiana da menina é a mesma do menino: é a sua mãe que ela deseja primeiro’ e o fato da menina desejar primeiro a mãe é o que lhe custa mais caro e mais caro do que para o menino.” (BALBO & BERGÈS, 2003, p. 106- 107).

Como para os autores a criança autista não está referida ao desejo no Outro, este se apresenta para ela destituído de qualquer significante, sendo apenas um puro real, um buraco. É em função disto que para o autista o significante é de extrema periculosidade, é frente a ele que o autista recua. Assim, demonstram que as crianças autistas só podem emitir significantes com a condição de que estes não queiram dizer nada, como, por exemplo, ao pronunciarem um nome, um sobrenome ou títulos de canções, sem que nada desejem expressar com isso (Iden, p. 157).

Ainda com o intuito de particularizar o que acontece à criança autista em relação a linguagem, os autores apontam que ocorre um trasbordamento do funcionamento que destrói sua função, ocasionando na pronuncia em profusão de significantes proliferantes. É neste sentido que podemos compreender que a fala do autista não leva em consideração seu interlocutor, é uma mensagem direta, sem função de retorno para o sujeito como mensagem invertida (Iden, p. 158).

Ao evocarem a questão da letra, tal como esta é concebida na escola lacaniana, localizam o autista numa posição muito particular. Eles propõem que, para que as letras se inscrevem, é necessário que o Outro suponha poder ler algo em seu filho, suponha que em seu corpo existe uma escritura que possa ser interpretada a partir dos significantes provenientes de sua própria falta.

Se o significante é o representante que se inscreve, a letra é o que fica de inaudível, é o que permite mensurar e marcar o tempo, é o que veicula a leitura. em sua dimensão imaginária, a letra sempre tem uma forma. Em sua acepção simbólica, é o suporte de um som, de um discurso. Já no seu aspecto real, ela é da ordem do mensurável, do pulsional (Iden, p.160).

O autista, dissocia a letra do significante, aí onde um sujeito constituído tem relação com a representação da palavra, e se detém apenas na sua dimensão real. Comentam então o caso de um paciente, que em decorrência desta operação, é capaz de calcular o dia exato da semana para cada data proposta por seu analista. Com o real da letra, com o mensurável, ele se ocupa, ele age e goza (Iden, p. 162).

É a partir deste ponto que os autores propõem que se compreenda o autismo dentro do campo das perversões:

“No funcionamento descontrolado da letra, num duplo constrangimento, encontra-se a perda, a progressiva destruição da função do falar. Esse funcionamento da letra perverte a função da fala; é nesse sentido que, em nosso entender, o autismo deve ser colocado no campo das perversões. O funcionamento da letra perverte a função da linguagem, a função da fala. É um tanto como se em um texto as letras tivessem uma existência própria, como se as letras girassem sobre si mesmas num incessante turbilhão desprovido de sentido, impossível de atar em um significante qualquer, e preenchessem de maneira particular isso que elas têm com relação aos matemas.” (BALBO & BERGÈS, 2003, p. 165).

Se retomarmos as afirmações anteriores destes autores, logo pensamos que o campo da perversão a que se referem nesta frase se trata de um funcionamento diverso daquele idealmente encontrado num neurótico, em que a linguagem foi instaurada, e não a uma estrutura de funcionamento perversa. Isto também parece ser confirmado pela forma com que dão continuidade ao texto, ao postularem que pelo funcionamento louco da letra, os significantes ficam deteriorados, chegando até a questionarem se para o autista existe um Outro. Mas se não há Outro, não estamos no campo do humano, de modo que podemos supor que o questionamento dos autores, que a primeira vista nos parece despropositado, apenas reflete a angústia com a qual nos deparamos ao nos defrontar com um autista.

Mais uma vez comparam os autistas aos psicóticos, ao tecerem uma comentário sobre as conseqüências deste funcionamento característico em relação a letra para a constituição de um corpo que parece possuir consistência. Se encontramos em ambos os casos movimentos repetitivos, desordenados e esteriotipias, não é porque a motricidade está desprovida de sentido, mas de significantes. Só que para o autista, não é graças ao significante que seu corpo ganha consistência, é graças a letra:

“Ele se torna completamente enigmático para nós precisamente devido a sua consistência no Real, que nos interroga sem cessar, mesmo sem falarmos na angústia que nos ocasiona. Com efeito, nele só temos acesso ao Real da letra. Quando dizemos: ‘Ele bate sua cabeça contra a parede’, será preciso então

lhe colocar um capacete, por exemplo, e dizendo isso fazemos algo de significante. Mas para ele, aí não tem nenhum significante. Quer dizer que o termo ‘cabeça’, aquela parte de seu corpo que é a cabeça, não tem nada a ver com ‘a cabeça’; de maneira que, quando ele se atira contra a parede, o que é que ele atira na parede? Não temos a menor idéia. Talvez seja a parede que avance sobre ele.” (BALBO & BERGÈS, 2003, p. 167).

Vemos que na escola lacaniana não há um consenso quanto ao posicionamento frente à criança autista e sua localização dentro de uma estrutura de funcionamento. Em contrapartida, todos os autores concordam que um diagnóstico diferencial é indispensável para pensarmos na direção do tratamento.

Faz parte da função do analista escutar aqueles que trazem uma criança para seu consultório, ou ao se depararem com uma criança num contexto de trabalho institucional, para poder situar a partir do discurso que a cerca qual o lugar que ocupa no desejo do Outro. Mesmo em se tratando de situar o autismo no campo das psicoses, onde temos diante de nós alguém que ocupa o lugar de objeto do gozo do Outro, não podemos nos esquivar de um posicionamento ético, compactuando com práticas que alienem ainda mais a criança e colaborem para o seu sofrimento.

Penso que isto não significa que o analista deve encarnar o lugar de Outro real para a criança autista, como é a proposta de alguns autores que foram citados, como Bettelheim, assumindo uma posição otimista que culminaria com a saída da criança desta condição para uma vida adaptada e sem conflitos, experiência esta impossível a qualquer um que venha a ser chamado de humano.

Ao analista cabe, independente daquele que se apresente diante de si, cuidar para que as condições de análise sejam mantidas. Partiremos agora para a apresentação e discussão de um caso clínico, com o intuito de vislumbrar como chega uma criança autista ao analista e quais as possibilidades e impasses de seu tratamento.

IV - Apresentação de um caso clínico:

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