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Coordenadoria Geral de Especialização, Aperfeiçoamento e Extensão – PUC-SP Psicanálise e Linguagem: Uma Outra Psicopatologia

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Academic year: 2019

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Autismo

Infantil

Maíra Badini Gomes da Silva Gonçalves

Orientadora: Profª. Dr.ª Sandra Dias

Monografia apresentada como exigência parcial para conclusão do curso de Especialização Lato Sensu em Psicanálise e Linguagem – Uma Outra Psicopatologia.

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Agradecimentos

Aos meus pais, por um dia se amarem tanto a ponto de engendrar uma nova vida! Por terem aberto as cortinas para o mundo e por bancarem, apesar dos tropeços, os sonhos que pude formular.

As minhas avós, Rosa e Cecília, por me ensinarem o que é amor pela vida! A minha avó Rosa, por sua jovialidade característica e inspiradora. E a minha avó Cecília, pelo carinho que tem me dispensado nos últimos anos.

Ao meu irmão, Victor Hugo, que me trouxe a possibilidade de brincar outra vez e me ensinou a ter mais responsabilidade.

As minhas imãs, Maria e Camy, por estarem próximas em quase todos os momentos, mesmo quando distantes. Agradeço pelo amor e incentivo.

À Samanta, amiga que conquistei ao longo do curso, por dividir comigo as dúvidas e descobertas suscitadas pelo estudo da Psicanálise.

Aos sujeitos apresentados neste trabalho, que ao se questionarem durante os atendimentos, trouxeram-me também questões, a ponto de impulsionarem um estudo mais aprofundado do tema abordado.

À Sandra Dias, professora que transmitiu, de forma séria e comprometida, as primeiras chaves de acesso à obra de Lacan, ainda na época da graduação. Agradeço por apontar meus lapsos durante as supervisões. E por cobrar de seus orientandos um trabalho de pesquisa coerente com o referencial adotado, tanto do ponto de vista ético, quanto formal, o que contribuiu para o resultado final desta monografia.

Ao professor Franklin Goldgrub, por me introduzir na Psicanálise e por responder, mesmo que com novas questões, às dúvidas que surgiram no decorrer de meus estudos, por menores que parecessem.

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Maíra Badini Gomes da Silva Gonçalves; Autismo Infantil. 2006 Orientadora: Profª. Dr.ª Sandra Dias

Palavras-chave: autismo infantil; processo de constituição do sujeito; circuito pulsional; psicanálise lacaniana.

Resumo

O presente trabalho tem por objetivo discutir o quadro clínico infantil designado de autismo, tendo como referência a conceituação psicanalítica lacaniana. Parte da introdução do termo, que foi utilizado pela primeira vez por Leo Kanner, para designar uma categoria psicopatológica distinta da psicose infantil, em 1943. Desde a publicação do trabalho deste autor, que descrevia as características fundamentais de uma criança autista, o quadro ficou popularmente conhecido e surgiram correntes divergentes que se ocuparam em investigar a etiologia desta patologia, até chegarmos a conceituação psiquiátrica atual.

Mesmo dentro do campo psicanalítico não há consenso quanto a etiologia deste quadro, de forma que enquanto alguns autores afirmam que se trata de uma formação anterior a constituição subjetiva, outros defendem que o autismo é uma subcategoria clínica da estrutura psicótica. Assim, serão apresentados os trabalhos dos principais autores psicanalíticos que se dedicaram ao estudo aprofundado do autismo infantil.

Na Escola Lacaniana, discorrer sobre a questão do autismo exige retomar o processo de constituição de um sujeito, então será abordado o tema das primeiras inscrições no aparelho psíquico e da instauração do circuito pulsional, de modo a podermos compreender o que ocorre de tão particular para que uma criança, na relação com seu Outro, venha a se constituir enquanto autista.

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Sumário

Pág.

Introdução 05

I - O Autismo Infantil:

Da definição clássica à abordagem psiquiátrica atual

06

II – O Autismo na Teoria Psicanalítica 16

III – A Clínica do Autismo na Escola Lacaniana 28

1. O sujeito em Psicanálise 28

2. O autista e o Outro 33

3. O autista e o circuito pulsional 38

4. As diferentes posições teóricas frente ao autismo infantil 42

IV – Apresentação de um caso clínico: O menino que adorava cavalos

49

V – Análise e Discussão 59

VI – Considerações Finais 63

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Introdução

O termo autismo foi utilizado pela primeira vez para designar uma categoria psicopatológica distinta da psicose infantil por um autor austríaco, Leo Kanner, em 1943. Desde a publicação de seu trabalho, que versava sobre as características fundamentais de uma criança autista, o quadro ficou popularmente conhecido. Logo surgiram correntes divergentes que se ocuparam em investigar a etiologia desta patologia, seja por um viés biológico, preocupado em comprovar possíveis lesões orgânicas pré-existentes; ou através de um viés psicológico, que precocemente atentou para a importância da relação entre a mãe e a criança “doente”.

Mas qual a contribuição da Psicanálise para a compreensão da clínica do autismo? De fato, mesmo entre os psicanalistas não parece haver consenso quanto a etiologia deste quadro, de modo que enquanto alguns autores afirmam que se trata de uma formação anterior a constituição subjetiva, outros defendem que o autismo é uma subcategoria clínica da estrutura psicótica.

Discorrer sobre a questão do autismo exige retomar o processo de constituição de um sujeito, partindo das primeiras inscrições do aparelho psíquico e da instauração do circuito pulsional, de modo a poder compreender o que ocorre de tão particular para que uma criança, na relação com seu Outro, venha a se constituir enquanto autista.

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I - O Autismo Infantil:

Da definição clássica à abordagem psiquiátrica atual.

Com o objetivo de melhor compreender o autismo infantil e para diferenciá-lo dos demais quadros que acometem crianças na primeira infância, inicia-se este trabalho com a história de sua conceituação. Assim, partiremos do primeiro uso do termo, ligado aos quadros esquizofrênicos, o que até a atualidade tem sido a fonte da associação destas duas patologias, provocando inúmeros equívocos diagnósticos, mesmo entre os psicanalistas.

O termo autismo foi cunhado pelo psiquiatra alemão Eugen Bleuler em 1911, para designar um sintoma característico da esquizofrenia. O autor, influenciado pelas idéias freudianas que veiculavam no meio acadêmico nesta época, se preocupou em descrever este quadro à luz do funcionamento psíquico de seus pacientes, não se restringindo a uma compilação de sintomas e situando a cisão como mecanismo primário para sua compreensão.

Na definição bleuleriana, este quadro nosológico pode ser diagnosticado tomando por base quatro sintomas principais, os quais, dentro do campo médico, ficaram conhecidos como “os quatro ‘As’ de Bleuler”, que são: os distúrbios das associações, da afetividade, o

autismo e a ambivalência (QUINET, 1999, p. 89).

Para este autor, autismo significa a perda do contato com a realidade que, mesmo em casos mais graves, nunca se dá por completo. É como se os pacientes esquizofrênicos pudessem vivenciar duas realidades distintas: a consensual, marcada pela desvinculação do laço social; e a imaginária, feita de todo tipo de realização de desejos e de idéias de perseguição.

A partir desta definição, a esquizofrenia passou a ser pensada de um modo diferente dentro da Psiquiatria. Não tardou para surgirem trabalhos que se dedicassem exclusivamente as patologias que acometem as crianças. Mas muito tempo se passou até que um autor percebesse e se dedicasse a um estudo diferencial quanto as patologias infantís.

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conseguiu identificar entre as crianças com algum tipo de retardo mental e distúrbios variados do comportamento, aquelas que apresentavam um padrão muito peculiar e instigante, conferindo a denominação de Distúrbio Autístico Inato do Comportamento

Afetivo ao quadro clínico que apresentavam. Sua definição foi tão detalhada que

possibilitou distinguir o quadro das chamadas esquizofrenias infantis, sendo até hoje citado pelos autores que se dedicam ao estudo deste tema.

Por outro lado, a definição de Kanner iniciou uma discussão que permanece em aberto até a atualidade: qual a etiologia desta patologia? Em seu estudo de 1943, o autor enfatizava os componentes emocionais e as características familiares como precipitadores do quadro, mas também apontava que fatores biológicos subjacentes podiam ser determinantes no autismo infantil. A este respeito, SCHWARTZMAN (1994, p.25) afirma que:

“A partir das descrições originais de Kanner (1943), e possivelmente por uma grande ênfase dada a algumas formulações do autor, por algumas décadas admitiu-se, de forma quase unânime, que a causa básica do autismo infantil seria de ordem relacional. Uma relação afetiva inadequada, oriunda, em geral, de uma afetividade gélida por parte da mãe, que levaria a profundas distorções no desenvolvimento psico-afetivo da criança. Nos seus trabalhos iniciais, Kanner realmente referiu ter encontrado crianças autistas em lares onde os pais eram, na sua maioria, profissionais liberais, intelectualizados e frios, do ponto de vista das relações afetivas. Apesar de ter feito referência a estes fatores, não deixou de formular de forma absolutamente clara e transparente que lhe era impossível descartar as possibilidades de algum fator biológico (da criança), uma vez que, em alguns casos, as anormalidades comportamentais estavam presentes desde muito cedo, o que dificultaria a aceitação de uma hipótese puramente relacional.”

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crianças. Uma delas, que merece nossa atenção, diz respeito ao que notou quanto a especificidade da linguagem apresentada pelas crianças autistas.

Segundo Kanner, a linguagem destas crianças apresenta fenômenos gramaticais particulares ocasionados pela ausência da formação espontânea de frases e por ecolalia, ou seja, repetições mecânicas dos sons que escutam. Aponta que esta ecolalia se torna mais evidente e instigante no que se refere aos pronomes empregados nas frases, de modo que as crianças costumam reproduzí-los tal como os adultos os utilizam, de modo que acabam por tratar a si mesmas na segunda ou terceira pessoa.

LOPES (1995, p. 05) esclarece que é apenas em 1955 que Kanner faz menção ao tratamento do autismo precoce infantil, portanto, decorridos 12 anos de sua nomeação. A posição que o autor apresenta é pessimista, chegando a afirmar que há um limite no progresso destas crianças que comumente frustra as expectativas de seus pais. Por outro lado, nesta ocasião se mostra favorável à psicoterapia como método terapêutico, que pode ser recomendada tanto as crianças quanto a seus pais.

Foi a ênfase no aspecto relacional precipitador do autismo, presente nos trabalhos iniciais de Kanner, que levou parte dos profissionais responsáveis pelo tratamento de crianças autistas a adotarem um discurso que culpabilizava os pais das mesmas pela patologia que as acometia. Em reação a este tipo de discurso, surgiram as primeiras associações de pais de crianças autistas na década de 60, com o objetivo de veicular informações, buscar melhores condições de tratamento e educação e desmistificar o que vinha sendo proferido pelos profissionais. Por outro lado, não é de se surpreender que grande parte destas associações promovam as explicações etiológicas do autismo que priorizam os aspectos biológicos e inatos, que livram os pais de sua culpa, mas que correm o risco ao fazê-lo de desresponsabilizá-los.

Em contrapartida, a insistência de Kanner em reafirmar a existência de componentes orgânicos constitucionais e inatos no autismo, principalmente nos seus trabalhos da década de 60 e 70, gerou uma curiosidade científica que logo resultou em pesquisas bioquímicas e, mais recentemente, neurológicas e genéticas.

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forma que também podem ser encontrados tais antecedentes em crianças que vem a apresentar algum tipo de deficiência mental, sem que esta possa ser relacionada a distúrbios psicóticos ou afetivos graves. Segundo os autores, tais estudos também não permitem saber se os antecedentes perinatais têm papel etiológico no desenvolvimento do autismo, ou se eles mesmos resultam de um dano fetal endógeno ou adquirido durante a gravidez. Dentre as fetopatias, as que foram associadas ao autismo infantil com maior freqüência nas pesquisas, mas sem a obtenção de dados conclusivos, estão: a rubéola congênita; o citomegalovírus; e as dismorfias secundárias.

Não havendo um marcador biológico que caracterize sempre a condição de uma criança autista, não tardaram a surgir escalas de avaliação com o intuito de diagnosticar com maior precisão se uma criança que apresentava distúrbios em seu comportamento poderia ser considerada autista ou não. Segundo BARTHÉLÉMY e cols. (1991, p. 52) inúmeras escalas de avaliação do autismo foram elaboradas desde os anos 60, tendo algumas destas se tornado conhecidas ao serem difundidas em revistas internacionais. Os autores citam como as mais amplamente utilizadas: o BRIAAC de Ruttemberg, publicado em 1966; o questionário E2 de Rimland, publicado em 1971; o HBS de Wing, publicado em 1978; o ABC de Krug, publicado em 1980; o CARS de Schopler, publicado em 1980; e o BOS de Freeman e cols., publicado em 1980 e revisado em 1984.

BARTHÉLÉMY e cols. (1991, p.52) apontam que todas as escalas mencionadas são de fácil aplicação (elaboradas para serem utilizadas apenas com o auxílio de papel e lápis), apesar de algumas só se encontrarem disponíveis na língua inglesa. São aplicadas com o objetivo de estudar a evolução de um comportamento ou habilidade de determinada criança, favorecendo o diagnóstico de autismo e permitindo remanejar as estratégias terapêuticas. Mas são os próprios autores que relembram que:

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Atualmente, com o advento dos manuais médico-clínicos internacionais, apesar de não existir consenso quanto a etiologia do autismo infantil e deste quadro ainda ser muitas vezes associado a outras patologias, existe um modelo que deve ser respeitado na hora de se estabelecer um diagnóstico diferencial.

O DSM (Manual de Diagnóstico e Estatística de Distúrbios Mentais) foi elaborado pela Associação Americana de Psiquiatria, e compreende uma lista de critérios para diagnosticar e entender os distúrbios mentais. Em sua versão mais recente, o DSM IV (1994), encontramos a seguinte definição do que chama de Transtorno Autista (código 299.0 do manual):

“As características essenciais do Transtorno Autista são a presença de um desenvolvimento acentuadamente anormal ou prejudicado na interação social e comunicação e um repertório marcantemente restrito de atividades e interesses. As manifestações do transtorno variam imensamente, dependendo do nível de desenvolvimento e idade cronológica do indivíduo.” (2002, p. 66).

Para se efetuar o diagnóstico deste quadro, a publicação enfatiza a prevalência de seis (ou mais) das seguintes características:

• Prejuízo na interação social recíproca, amplo e persistente. Pode haver um déficit

marcante no uso de múltiplos comportamentos não-verbais (por ex., contato visual direto, expressão facial, posturas e gestos corporais) que regulam a interação social e a comunicação;

• fracasso em desenvolver relacionamentos com seus pares que sejam apropriados ao

nível de desenvolvimento, os quais assumem diferentes formas, em diferentes idades;

• Os indivíduos mais jovens podem demonstrar pouco ou nenhum interesse pelo

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• Falta de reciprocidade social ou emocional pode estar presente (por ex., não participa

ativamente de jogos ou brincadeiras sociais simples, preferindo atividades solitárias, ou envolve os outros em atividades apenas como instrumentos ou auxílios "mecânicos"). Freqüentemente, a conscientização da existência dos outros pelo indivíduo encontra-se bastante prejudicada;

• Podem ignorar as outras crianças (incluindo os irmãos), podem não ter idéia das

necessidades dos outros, ou não perceber o sofrimento de outra pessoa;

• Prejuízo na comunicação, marcante e persistente, afetando as habilidades tanto verbais

quanto não-verbais. Pode haver atraso ou falta total de desenvolvimento da linguagem falada. Em indivíduos que chegam a falar, pode existir um acentuado prejuízo na capacidade de iniciar ou manter uma conversação, um uso estereotipado e repetitivo da linguagem ou uma linguagem idiossincrática;

• Podem estar ausentes os jogos variados e espontâneos de faz-de-conta ou de imitação

social apropriados ao nível de desenvolvimento. Quando a fala chega a se desenvolver, o timbre, a entonação, a velocidade, o ritmo ou a ênfase podem ser anormais (por ex., o tom de voz pode ser monótono ou elevar-se de modo interrogativo ao final de frases afirmativas);

• Estruturas gramaticais são freqüentemente imaturas e incluem o uso estereotipado e

repetitivo da linguagem (por ex., repetição de palavras ou frases, independentemente do significado; repetição de comerciais ou jingles) ou uma linguagem metafórica (isto é, uma linguagem que apenas pode ser entendida claramente pelas pessoas familiarizadas com o estilo de comunicação do indivíduo);

• Perturbação na compreensão da linguagem, que pode ser evidenciada por uma

incapacidade de entender perguntas, orientações ou piadas simples. As brincadeiras imaginativas em geral estão ausentes ou apresentam prejuízo acentuado. Esses indivíduos também tendem a não se envolver nos jogos de imitação ou rotinas simples da infância, ou fazem-no fora de contexto ou de um modo mecânico;

• Os indivíduos com Transtorno Autista têm padrões restritos, repetitivos e estereotipados

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funcionais; maneirismos motores estereotipados e repetitivos (Critério A3c); ou uma preocupação persistente com partes de objetos;

• Interesse por rotinas ou rituais não-funcionais ou uma insistência irracional em seguir

rotinas (por exemplo, percorrer exatamente o mesmo caminho para a escola, todos os dias). Os movimentos corporais estereotipados envolvem as mãos (bater palmas, estalar os dedos) ou todo o corpo (balançar-se, inclinar-se abruptamente ou oscilar o corpo). Anormalidades da postura (por ex., caminhar na ponta dos pés, movimentos estranhos das mãos e posturas corporais) podem estar presentes;

• Preocupação persistente com partes de objetos (botões, partes do corpo). Também pode

haver uma fascinação com o movimento em geral (por ex., as rodinhas dos brinquedos em movimento, o abrir e fechar de portas, ventiladores ou outros objetos com movimento giratório rápido). O indivíduo pode apegar-se intensamente a algum objeto inanimado (por ex., um pedaço de barbante ou uma faixa elástica);

Para que uma criança seja considerada autista, deve então apresentar as características citadas que evidenciam um prejuízo na interação social, na comunicação ou na capacidade de desenvolver jogos simbólicos e imaginativos. O prejuízo numa destas área deve ser evidenciado antes que a criança complete 3 anos de idade, uma vez que o diagnóstico de autismo se baliza em seu caráter de patologia essencialmente precoce.

O manual nos informa acerca da associação do autismo a outras patologias, ressaltando que na maioria dos casos existe um diagnóstico associado de Retardo Mental, em geral na faixa moderada (QI de 35-50). Aproximadamente 75% das crianças com Transtorno Autista apresentam algum nível de retardado, podendo haver anormalidades no desenvolvimento de suas habilidades cognitivas.

As crianças com Transtorno Autista ainda podem apresentar uma gama de sintomas comportamentais, incluindo hiperatividade, desatenção, impulsividade, agressividade, comportamentos auto-agressivos e, particularmente as crianças mais jovens, acessos de raiva.

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alguns casos encontramos anormalidades na alimentação (por ex., limitação a poucos alimentos na dieta) ou no sono (por ex., despertares noturnos com balanço do corpo).

Anormalidades do humor ou afeto (por ex., risadas ou choro sem qualquer razão visível, uma aparente ausência de reação emocional) podem estar presentes. Pode haver ausência de medo em resposta a perigos reais e temor excessivo em resposta a objetos inofensivos. Uma variedade de comportamentos autolesivos pode estar presente (por ex., bater a cabeça ou morder os dedos, mãos ou pulsos).

No DSM IV encontramos ainda uma preocupação em diferenciar o autismo dos demais transtornos que acometem as crianças precocemente, tal como o Transtorno de Rett, o Transtorno Desintegrativo da Infância, o Transtorno de Asperger, a Esquizofrenia Infantil, o Mutismo Seletivo, o Transtorno da Linguagem Expressiva e o Transtorno Misto da Linguagem Receptivo-Expressiva.

O Transtorno Autista pode ser diferenciado do Transtorno de Rett, pois no segundo há uma perda das habilidades manuais voluntárias adquiridas anteriormente e o aparecimento de marcha pouco coordenada. Principalmente durante os anos pré-escolares, as crianças com Transtorno de Rett podem exibir dificuldades na interação social similares àquelas observadas no Transtorno Autista, mas essas tendem a ser temporárias.

Já o diagnóstico diferencial em relação ao Transtorno Desintegrativo da Infância se dá em função de um padrão distinto de regressão posterior a pelo menos 2 anos de desenvolvimento normal. No Transtorno Autista, as anormalidades do desenvolvimento geralmente são percebidas já no primeiro ano de vida. Quando não se dispõe de informações sobre o desenvolvimento inicial ou quando não é possível documentar o período exigido de desenvolvimento normal, segundo o manual deve-se optar pelo diagnóstico de Transtorno Autista.

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em atividades repetitivas e eram absortos em interesses especiais, tais como tabelas de horários de trem ou movimento planetário.

A Esquizofrenia Infantil, ao contrário do Autismo, geralmente se desenvolve após alguns anos de desenvolvimento normal ou quase normal. Em compensação, um diagnóstico adicional de Esquizofrenia pode ser feito se uma criança com Transtorno Autista desenvolver os aspectos característicos da Esquizofrenia com sintomas da fase ativa, consistindo de delírios ou alucinações proeminentes, com duração de, pelo menos, um mês.

Por fim, no Mutismo Seletivo a criança habitualmente exibe habilidades apropriadas de comunicação em certos contextos e não tem o prejuízo severo na interação social e os padrões restritos de comportamento associados com o Transtorno Autista. Também no Transtorno da Linguagem Expressiva e no Transtorno Misto da Linguagem Receptivo-Expressiva existe prejuízo da linguagem, mas este não está associado com a presença de um prejuízo qualitativo na interação social e padrões restritos, repetitivos e estereotipados de comportamento.

O DSM IV aponta que os estudos epidemiológicos sugerem taxas de Transtorno Autista de 2-5 casos por 10.000 indivíduos. Quanto aos estudos disponíveis acerca do curso que segue a patologia, sugerem que apenas uma pequena percentagem dos indivíduos com o transtorno chegam a viver e trabalhar de modo independente quando adultos. Em cerca de um terço dos casos, algum grau de independência parcial é possível.

Outro manual que regula o diagnóstico de patologias na atualidade, é a Classificação Internacional de Doenças (CID), instituída pela Organização Mundial de Saúde. Esta classificação, que não se restringe ao uso psiquiátrico, apresenta algumas diferenças quanto a proposta do DSM IV e não é tão detalhada como o mesmo.

Em sua versão mais recente, a CID 10 dedica seu quinto capítulo aos distúrbios mentais e do comportamento, reservando duas categorias aos distúrbios específicos da infância e da adolescência. O Autismo Infantil (sob o código F84.0) se encontra alocado dentre os Transtornos Globais do Desenvolvimento, e é definido da seguinte forma:

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anos, e b) apresentando uma perturbação característica do funcionamento em cada um dos três domínios seguintes: interações sociais, comunicação, comportamento focalizado e repetitivo.

Além disso, o transtorno se acompanha comumente de numerosas outras manifestações inespecíficas, por exemplo fobias, perturbações de sono ou da alimentação, crises de birra ou agressividade (auto-agressividade).” (2003, p. 247).

A classificação ainda sugere a existência de um outro quadro, denominado de Autismo Atípico (sob o código F84.1), que seria um transtorno global do desenvolvimento que ocorre após a idade de três anos, ou cujas perturbações não respondem aos três grupos de critérios diagnósticos do autismo infantil (interações sociais recíprocas, comunicação, comportamentos limitados, estereotipados ou repetitivos).

A metodologia proposta nos manuais abordados, que se pretende ateórica, não pode ser considerada sem ressalvas. Uma vez baseada na somatória de determinados sintomas, que devem estar presentes para que se diagnostique o quadro, implica numa posição teórica específica. Sendo a presença de dado sintoma sem a preocupação de um raciocínio quanto a etiologia do mesmo o que é preconizado neste modelo, a terapêutica proposta só pode ser aquela que tem como fim a supressão de sintomas, comumente associada a administração farmacológica adequada.

Este modelo não fornece, portanto, espaço para a concepção da existência de um sujeito, que apresenta sintomas a serem escutados, se é que dentro do campo psicanalítico se pode usar o termo sintoma para designar aquilo que dá a ver o autista, quanto mais para versar sobre quais seriam os processos envolvidos em sua etiologia.

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II – O Autismo na Teoria Psicanalítica

Diante de crianças autistas que buscaram a clínica, a Psicanálise foi obrigada a se perguntar acerca da etiologia e de um tratamento possível para este quadro. Muitas foram as respostas e questões levantadas pelos autores que se dedicaram a este tema, não havendo consenso entre os mesmos. Percorreremos neste capítulo uma breve trajetória em busca das contribuições dos analistas que se destacaram no estudo do autismo infantil.

Margaret Mahler, médica pediatra e psiquiatra nascida na Hungria, foi uma psicanalista que se tornou notável em seus estudos sobre as psicoses infantis. Defendendo a hipótese de que as psicoses infantis são distorções das fases normais do desenvolvimento do ego e de suas funções no seio da primeira relação mãe-filho, a autora satisfaz a teoria psicanalítica e seus pensadores da época, além de propor novas considerações acerca do desenvolvimento normal. Unindo conceitos da Psicologia do Ego aos conceitos de projeção e introjeção de Melanie Klein, acaba por criar uma nova posição dentro da Psicanálise.

Segundo PAIVA (1995, p. 30-31), Mahler defendia a hipótese de que possibilidades intrapsíquicas do bebê, sujeitas à patologias precoces, impediriam seu desenvolvimento normal na relação com sua mãe. Essas possibilidades se tornariam deficientes a medida em que a relação simbiótica primordial fosse prejudicada ou ausente, ocasionando uma incapacidade de tomar a mãe em sua função de maternagem e, consequentemente, de internalizá-la em sua representação de objeto.

Uma vez que tenha ocorrido este prejuízo na relação simbiótica,, é impossível a diferenciação necessária para que se opere o desenvolvimento normal, desencadeando o fracasso do processo de constituição da identidade. Assim, Mahler conclui que cada subtipo de psicose será resultado da fase em que aconteceu o déficit.

MAHLER (1989, p. 08, 45, ) concebe o desenvolvimento infantil normal, que se dá do nascimento aos três anos de vida, em 3 fases distintas:

Fase Autística Normal: Compreendida entre o nascimento e o segundo mês de vida,

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tudo que vem de fora. Essa fase autística normal, para a autora, é um momento em que a criança se encontra no estado de “desorientação alucinatória primária”, na qual a satisfação de suas necessidades depende de sua própria “esfera autística onipotente”, da qual a mãe é concebida como parte integrante. Esta fase é caracterizada por uma identificação total do Ego, Id, Self e do mundo objetal.

Fase Simbiótica Normal: Estende-se do terceiro mês ao primeiro ano de vida.

Caracterizada por um estado fusional e de indiferenciação entre o bebê e sua mãe, onde eu e não-eu se misturam e o interior só vem a se diferenciar do exterior gradualmente. Ao dirigir-se para a fase simbiótica, o bebê torna-se gradativamente consciente de que o alívio para a tensão de sua fome instintual vem do mundo exterior, enquanto o doloroso acumulo de tensão nasce dentro dele. No entanto, para que ocorra este reconhecimento é necessário que aconteça, nesta fase, alguma diferenciação de seu ego rudimentar. Assim como na fase anterior, aqui a mãe desempenha as funções vitalmente importantes do ego, o qual ainda é demasiadamente primitivo para executá-las, de forma a complementar a barreira de estímulos e servindo de anteparo para o bebê.

Processo de Separação-Individuação: Mantém-se do primeiro ao terceiro ano de vida.

É a fase crucial no que diz respeito ao Ego e ao desenvolvimento das relações objetais. Para Mahler, pode ser considerada como um segundo nascimento, no qual se rompe a membrana simbiótica que envolve o par mãe-bebê, sendo tão inevitável quanto o nascimento biológico. É também nesta fase que a necessidade vem a se transformar em desejo. a criança já está pronta para exercer com a autonomia determinadas funções do Ego, e obtém com isso certo prazer. Função como a autonomia, a memória, a percepção, a cognição e a prova da realidade são relativas a individuação, ou seja, ao investimento progressivo das funções do Ego e a representação do Self.

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prossigamos na investigação de suas teorias para entendermos o que compreende por psicose.

Para Mahler, o desenvolvimento emocional e a estruturação psíquica, são resultado da neutralização da libido, quando esta então se encontrará disponível para ser utilizada pelo Ego. A relação objetal portanto é concebível a medida em que ocorre uma identificação do Ego com o mesmo, onde a catexia é feita da energia libidinal neutralizada.

Nas psicoses, falha a capacidade perceptual integradora, e o Ego em desintegração regride a mecanismos de desumanização e reanimação, se tornando vítima de “impulsos difusos não mentalizados” na busca por adaptação, principalmente daqueles destrutivos. Ocorre então o que a autora chama de “desdinferenciação”, onde a criança nega a percepção de estímulos, proporcionando uma ascendência dos objetos de percepção internos, saturados de agressividade. Estes acabam por se impor a via sensorial e, para enfrentar as sensações terríveis que são desencadeadas, o Ego tenta “desdinferenciá-los” e desvitalizá-los, se utilizando da projeção e os confundindo com fenômenos mecânicos (objetos=autômatos). Os relacionamentos objetais psicóticos, com seus semelhantes ou não, representam uma tentativa de restituição do Ego rudimentar ou fragmentado, que procura por alguma forma de sobrevivência.

Para MAHLER (1989, p. 26-28), a psicose pode ser dividida em duas categorias:

Psicose Infantil Autística: Eqüivale ao conceito de Autismo Infantil Precoce de

Kanner. Segundo a autora, a crianças seria incapaz de diferenciar objetos vivos de inanimados, mesmo num sentido perceptivo. Seu Ego está indiferenciado, é deficiente e rudimentar. Crianças com este tipo de psicose dão a impressão de serem impenetráveis, uma vez que não há contato entre seu Ego e o Id, já que não existe diferenciação entre ambos.

Psicose Infantil Simbiótica: Trata-se da psicose que se opera quando há uma fusão da

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Quanto ao tratamento possível, Mahler fala da importância do diagnóstico diferencial, que deve ser feito com base na relação objetal e no processo de identificação que a criança é capaz de estabelecer, para que se posso delimitar as condutas necessárias. A autora defende que a terapia deve ser de natureza cautelosa, prolongada e consistente, onde o analista se oferece como o objeto de amor real para a criança na tentativa de proporcionar identificação parcial com o mesmo. No entanto, enfatiza que a perspectiva de cura concreta é desoladora, visto que o Ego permanece irreparavelmente deformado, desestruturado e vulnerável. No caso da Psicose Autista o quadro é ainda mais grave, pois a criança ainda não foi capaz de atingir a matriz específica que lhe permitiria um desenvolvimento.

Como pré-requisito para o tratamento, Mahler propõe atrair a criança para o objeto de amor que faz parte da realidade. Em se tratando da Psicose Autista, sendo o contato intolerável, este vem a se dar a partir de outros recursos, tal como a música e outras estimulações prazerosas dos órgãos dos sentidos. A autora ressalta que o contato corporal deve ser evitado, utilizando-se o analista de objetos inanimados.

A partir da apreciação da concepção de Mahler do autismo infantil enquanto fase primeira do desenvolvimento humano, PAIVA (1995, p.39) afirma que a autora comete um equívoco, pois desconhece “a dialética fundamental do nascimento do sujeito: emergência subjetiva a partir de um estado real de privação. Mahler confunde o desamparo primordial

em que vem ao mundo o sujeito humano com autismo primário.”. Isto nos permite

posicionar este desamparo como primordial na concepção psicanalítica de sujeito, sujeito este que estará sempre remetido a um Outro na concepção lacaniana, que abordaremos mais adiante.

Outro autor que merece destaque ao se estudar o tema do autismo infantil é Donald Meltzer. Psicanalista que seguiu a tradição da escola inglesa, Meltzer se tornou celebre pelo trabalho que publicou em 1975, sob o título de “Exploração do Autismo”. De acordo com VIEIRA (1995, p. 41), na concepção teórica deste autor, o autismo pode ser alocado dentro do campo das psicoses, as quais distingue de acordo com quatro categorias: autismo própriamente dito e estados pós-autísticos; psicoses geográficas confusionais; fracassos primários do desenvolvimento mental; e fracassos do ajustamento mental pós-natal.

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chama de desmentalizado, tipo especial de dissociação, ocasionada pela suspensão da função egóica da atenção. Este funcionamento do psiquismo faz com que o Self se desmantele em suas distintas capacidades sensoriais (de ver, ouvir e etc.).

O autista sofreria um impedimento para progredir em seu desenvolvimento devido a dificuldade de diferenciar as quatro áreas da fantasia, que seriam: a região interna e externa do self e o dentro e fora dos objetos. Esta dificuldade levaria a uma insistente intrusão e constante fusão com o próprio objeto. Não havendo continência do self e do objeto, se opera a falta da constituição de um espaço interno, que marcará para sempre a

personalidade pós-autista.

As seqüelas decorrentes do autismo, que para este autor pode ser superado com o auxílio da análise, dependeriam do tempo em que a criança teria permanecido no estado autista e isto, por sua vez, articula com a disponibilidade da figura materna para com esta criança. Concluímos a partir desta articulação que, se de um lado o autismo propriamente dito resultaria dos fatores intrínsecos da criança, por outro o desenvolvimento pós-autista depende da interação das tendências interiores da criança com as características das pessoas mais importantes do ambiente em que esta se desenvolve.

Para Meltzer, no tratamento de uma criança autista se trata de promover uma extensão do self, que só pode ser atingida se o analista se oferecer como função egóica. O tratamento levaria então a uma melhora da estrutura mental, sendo este trajeto o que permitiria uma melhor organização narcísica.

Prosseguindo em nossa trajetória, nos deparamos com outro analista que é citado de forma recorrente nos trabalhos que versam sobre o autismo infantil, Bruno Bettelheim. Segundo LIMA (1995, p. 08), encontramos já no título da primeira parte do trabalho que o autor dedica ao tema, a chave para a compreensão de seu ponto de vista quanto ao autismo: “O mundo do encontro”. Ele acredita na existência de um encontro primário da criança com o outro, sendo o autismo uma retirada, uma ausência deste encontro.

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necessidades nesta fase não encontram resposta, isto afeta negativamente seu desenvolvimento, de modo que estes a tornarem ainda menos apta para intervir em seu meio, podem levá-la ao isolamento autístico.

Diferentemente de outros autores, que atribuem o isolamento autístico a defesa contra os objetos hostis que a criança projeta no mundo, Bettelheim revela que o autismo, tanto quanto a psicose, seriam produto de condições reais de desconforto. Chama de

situação extrema, as condições vividas pelas crianças autistas e psicóticas de um modo geral, onde suas vidas estão expostas a um riso permanente, não havendo como evitarem esta experiência, devido a sua duração incerta e pelo fato de nada nela ser previsível.

Para Bettelheim, o bloqueio autístico é decorrente direto da relação da criança com seus pais, onde podemos identificar em pelo menos uma das figuras parentais o desejo de que o filho não exista. Como aos pais é atribuída a responsabilidade pela privação emocional extrema vivida pela criança, o autor propõe a separação radical entre a criança e seus genitores, recomendando a internação em uma escola especializada.

Partindo deste pressuposto, Bettelheim acaba por fundar uma escola para autistas com o objetivo de prover o que chama de meio terapêutico total, ambiente artificialmente estimulante e encorajador, do qual a criança possa fazer parte de imediato, tal como ela é. Segundo LIMA (1995, p. 17-18):

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O autor supõe que esta criação de um ambiente artificial só seria possível se o terapeuta pudesse reduzir a distância entre ele e a criança, se juntando ao autista numa confrontação direta ali onde este se encontra. Vemos nesta proposição que o autor reduz a transferência a dimensão do imaginário, supondo ser possível que o analista se identifique com seu paciente para então reverter o quadro e trazer o autista de volta do mundo que o aprisiona.

Passemos agora para a apreciação de outro analista célebre em seus estudos sobre o autismo infantil, Serge Lebovici. Apesar de ser um autor francês pertencente à Sociedade Psicanalítica de Paris, Lebovici é conhecido por seus conservadorismo e por aceitar as contribuições da escola inglesa, principalmente de Klein e Winnicott, em suas teorizações.

Lebovici afirma que os conflitos nas relações objetais primitivas constituem os fundamentos psicológicos do autismo e da psicose infantil. Mas não descarta a possibilidade de que as dificuldades nas relações primitivas entre mãe e filho podem ser agravadas por fatores orgânicos da criança, chegando a desempenhar o papel de desencadeadores de uma psicose (LEBOVICI e DUCHÉ, 1991, p. 16).

Os conflitos na relação primeira, são vividos pela criança como uma frustração precoce e traumática no seu ambiente. Podem ser decorrentes da incapacidade materna de assegurar relações precoces satisfatórias ou de retardos no desenvolvimento que originariam frustrações na experiência da criança.

Na tentativa de encontrar uma proteção contra a ameaça de destruição oriunda dos objetos persecutórias que seriam fruto do conflito na primeira relação mãe-criança, o espectro dos mecanismos de defesa acaba por criar o retraimento autista. Estas defesas, características dos processos psicóticos, conduzem a novas angústias, tais como a de fusão a mãe associada a perda total da identidade. A relação objetal psicótica será então marcada por uma ruptura nas comunicações precoces entre mãe e filho, acarretando numa estrutura específica no Complexo de Édipo destas crianças.

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Lebovici defende a análise de crianças como recurso viável e precioso, uma vez que se configura como campo considerável para a pesquisa da gênese das psicoses de um modo geral. Conclui que a criança autista apresenta um modo de relação psicótica decorrente da não-organização de uma neurose infantil. Neste sentido, dá ênfase aos aspectos precoces da doença e manifesta interesse pelas teorias do sistema familiar que dão importância ao não-dito, que é transmitido entre gerações e pode ocasionar no surgimento de uma psicose.

Conclui que a utilização de uma psicoterapia psicanalítica nos casos de autismo e psicose pode conduzir a uma transformação do funcionamento mental e a uma neurotização

dos pacientes, e propõe esta como sendo uma das saídas para cura de uma psicose.

Por fim, dediquemos nossa atenção a Frances Tustin, pertencente a escola inglesa de psicanálise. Sem dúvida Tustin é uma autora fundamental para quem se propõe a estudar o autismo, tendo seu mérito reconhecido mesmo por aqueles que tem severas críticas a corrente teórica que seguia. Apresentou um percurso bastante significativo no seu trabalho com crianças autistas, ao qual se dedicou por mais de tinta anos. Na bibliografia da autora encontramos diversos livros que versam sobre o autismo e a psicose infantil, tais como: “Autismo e Psicose Infantil” (!972); “Estados Autísticos em Crianças” (1981); “Barreiras Autistas em Pacientes Neuróticos” (1987); e “A Concha Protetora em Crianças Autistas e Adultos” (1990).

Em 1972, a autora situa o autismo como sendo pertencente ao campo das psicoses infantis, uma vez que aquilo que denomina de barreira autística e que caracteriza o autismo patológico, seria condição para o diagnóstico de uma psicose. Vemos nesta afirmação que a autora se refere ao autismo patológico, ou seja, que o concebe em contraposição ao que seria o autismo primário normal.

Tal como fez Mahler, a autora concebia o autismo enquanto fase normal do desenvolvimento infantil em suas formulações da década de 70, descrevendo-o como uma fase muito primitiva na qual a criança não tem percepção da existência do mundo exterior, que passa a ser vivido em termos de órgãos e zonas de seus corpo.

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• Em primeiro lugar, no mito da existência do pré-verbal, patenteado pelo preconceito

dos cuidados da mãe com o corpo da criança.

• Segundo, a falta de noção de estrutura que leva a autora a estabelecer distinções

quantitativas entre neurose e psicose, permitindo-lhe concluir também, neste momento inicial de sua conceituação, que os chamados autismos normal e patológico são graus diferentes de uma mesma e única entidade.

• Como terceiro equivoco, assiná-la o desconhecimento da teoria freudiana das pulsões e

do narcisismo. É o que lhe permite considerar, nesta altura, a denominação de autismo primário mais adequada que o conceito de narcisismo primário, para referir-se aos processos cognitivos que levam à constituição do sujeito que nos propõe.

A autora concebe o autismo patológico como sendo o resultado da não resolução do estágio do autismo primário normal, caracterizando-se por uma permanência ou regressão ao mesmo. Também afirma que esta não resolução seria decorrente de uma tentativa de escapar da depressão psicótica, apesar de neste momento ainda defender a idéia de que o autismo faz parte dos quadros psicóticos.

Ao explicar este estado de depressão psicótica, recorre as concepções winnicottianas, que se referem ao profundo desgosto e ao luto intenso vivenciado pelas crianças que não encontram em sua nutriz um ambiente acolhedor. É neste contexto que Tustin propõe o conceito de buraco negro, ao descrever a depressão psicótica como um estado muito primitivo caracterizado por vivências bucais de “buraco”, geralmente associadas a sentimentos de terror e incapacidade de bastar-se a si mesmo, derivados das projeções que não puderam ser modificadas pela figura materna.

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Ao comentar as formulações de Tustin desta época, FERNANDEZ (1995, p. 55) propõe uma definição esclarecedora:

“no sentido lato, o objeto autístico é aquele completamente experimentado como eu, consistindo em partes do corpo e do mundo externo sentidos pela criança como partes de si mesma. Este objeto tem a função radical de suprimir o ‘buraco negro’ da depressão psicótica. Se a criança, porém, conseguir ‘guardá-lo em si como produto mental indispensável, após ter perdido a esperança de encontrá-lo no mundo externo’, anuncia-se o inicio de uma organização simbólica. Para que esta organização se produza, a criança terá que abandonar o objeto autístico-mamilo e reconhecer-lhe atributos próprios que o tronarão separado da boca, além de ser capaz de suportar um tempo de espera por ele, ou seja, um intervalo, um espaço vazio.”

Com a publicação de seu terceiro livro em 1986, “Barreiras autísticas em pacientes neuróticos”, Tustin começa a rever algumas de suas formulações, propondo alterações significativas em sua obra. A primeira correção teórica importante que vemos, diz respeito a proposição de um autismo primário normal que, a partir de então, abandona. Passa a se utilizar do termo auto-sensitivo para se referir aos primitivos desenvolvimentos infantis normais, reservando o termo autismo para os estados patológicos.

Outra reformulação importante se refere a relação existente entre autismo e psicose. Se antes afirmava que o autismo era decorrente de uma defesa contra um estado psicótico que se dá no interior da própria psicose, a partir de então o considera diferente desta. Defende que o autismo seria uma proteção contra a confusão e o aprisionamento da psicose, de forma que ao ser levantado revela uma criança vulnerável, presa, confusa e desamparada que pode tornar-se psicótica a menos que se perceba sua necessidade de segurança e proteção. FERNANDEZ (1995, p.56) ressalta que é de extrema importância o que Tustin deflagra com esta afirmação, pois:

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a criança autista, que não seja a psicose, marcando que o desenlace, seja qual for, põe em jogo a responsabilidade do analista na direção da cura – de sua compreensão, quer dizer, de sua escuta dependerá a possibilidade da constituição ou não de um sujeito dividido. Que o analista está comprometido, não há dúvida, mas talvez seja forte demais a afirmação de Tustin, principalmente se se tratar do autismo infantil precoce de Kanner.”

Com seu artigo mais recente, publicado em 1993 sob o título “A perpetuação de um erro”, temos novas alterações em sua concepção teórica. A autora já não fala mais no autismo como uma defesa contra a psicose, mas o define enquanto reação protetora que se desenvolve para fazer frente à tensão associada com a ruptura de um prolongado estado anormal de unidade adesiva com a mãe. O autismo é, portanto, uma reação específica ao trauma, sendo este último a ruptura de tal estado e a tensão que provoca. Apesar de notarmos que a concepção de trauma da qual se utiliza não estar relacionada as concepções freudianas, podemos associá-lo a sua concepção original de “buraco negro”.

Para FERNANDEZ (1995), o que de essencial é apontado pela obra desta autora é que, apesar de lhe faltar uma diferenciação teórica das estruturas clínicas, ela chegou ao primordial define que a estrutura, ou seja, à dimensão do buraco, furo no campo do Outro, ponto de partida necessário a constituição de qualquer estrutura clínica. Se chegou a tal ponto, apesar da precariedade de sua teoria, foi porque na clínica sempre buscou o estabelecimento da transferência operando a partir do significante, mesmo sem saber. FERNANDEZ (1995, p.58) ressalta que:

“Por isso, talvez, tenha podido expressar tão bem sua posição de analista quando, ao referir-se aos pacientes autistas, escreveu: ‘Nós lhe falaremos como se pensássemos que eles podem entender o que estamos dizendo. Nós não os menosprezaremos’.”

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III – A Clínica do Autismo na Escola Lacaniana

1. O sujeito em Psicanálise

Antes de tentarmos compreender o que se passa especificamente com o autista, seria interessante retomarmos o processo de constituição de um sujeito, tal como este é concebido pela Psicanálise. Deste modo, poderemos discutir num momento posterior o que se passa com a criança autista para que se apresente de um modo tão particular, pensando se o que temos diante de nós pode ser concebido na clínica lacaniana como um sujeito própriamente dito ou não.

A constituição do sujeito se dá sempre na presença de um Outro que o antecede, e por isso mesmo que neste processo de constituição, que não se trata da mera maturação biológica, podemos pensar em inúmeros fatores que vêm a intervir, supondo até que o próprio sujeito pode vir a não se constituir, sendo então extraviado. LACAN (1964, p. 193-194) define o Outro, grafado com letra maiúscula, como sendo “o lugar em que se situa a cadeia do significante que comanda tudo que vai poder presentificar-se do sujeito, é o campo desse vivo onde o sujeito tem que aparecer”.

Foi Freud que nos apresentou pela primeira vez uma concepção de inconsciente que veio a se opor à conceituação do humano dominante na época em que viveu, a cartesiana, onde o homem era visto como ser pensante, cujo centro do psiquismo se encontrava na razão consciente. Com a determinação freudiana do inconsciente como base do aparelho psíquico, Lacan irá se ocupar em demonstrar que sujeito e indivíduo não se confundem, de modo que há sempre algo que nos escapa à consciência.

Lacan, realizando seu retorno a Freud, é fiel a obra do autor e postula o lugar próprio deste sujeito do inconsciente, que é sempre constituído no campo do Outro e como efeito da linguagem. Mas como podemos compreender essa afirmação? Não há outra forma senão a retomada daquilo que acontece a um bebê a partir de seu nascimento.

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no Outro já é necessário que se constitua uma falta para que possa partir para a concepção de uma criança.

É aí onde é esperada que vem a nascer a criança, um pedaço de carne que sendo investido libidinalmente pelo Outro parental começará a ser marcado pela ordem significante, o que irá permitir inclusive que seu corpo funcione. A primeira relação do bebê com o Outro primordial, função esta desempenhada geralmente por sua mãe, supõe que haja um investimento libidinal em relação a sua própria castração, a sua própria falta simbólica.

A sexualidade do Outro primordial é então imposta a este novo ser a medida que é a partir dela que irá nomear suas demandas e satisfazê-las, de forma a oferecer o que para ele está inscrito como faltante. Esta ação irá inscrever no aparelho psíquico da criança os significantes a partir dos quais sua pulsão será orientada na busca por repetir uma satisfação.

Sendo assim, o que existiria de natural no humano estará para sempre perdido após a ação do Outro ao oferecer cuidados e inscrever no aparelho um trajeto pulsional a partir de seu próprio desejo. O que a pulsão inscreve é que a primeira experiência de satisfação plena nunca mais será atingida, delimitando-se, então, enquanto presença de uma ausência. A interdição a este objeto perdido é a marca da castração, que designa que há diversos modos do trajeto pulsional contorná-lo, não havendo objeto determinado e fixo.

O que impõe essa marca primeira, que FREUD (1915b, p. 53-54) em seu texto “Repressão” chamou de repressão primeva [recalque originário], é que, se não há objeto fixo, não há também como fazer dos muitos objetos possíveis um ideal que viria a satisfazer por completo a pulsão. O resto insatisfeito da pulsão irá então retornar, fazendo sempre um novo pedido, criando um ponto de retorno incessante, o desejo.

Para que se constitua o que convencionamos chamar de Eu, é necessário que as pulsões parciais sejam reunidas e isto exige uma nova organização do aparelho psíquico. Lacan, ao estudar Wallon, se dá conta de que antes da existência de um Eu, há todo um processo a ser percorrido, ao qual nomeou de Estádio do Espelho. Segundo LACAN:

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no sujeito quando ele assume uma imagem – cuja predestinação para este efeito de fase é suficientemente indicada pelo uso, na teoria, do antigo termo

imago.” (1949, p. 97).

Entendemos a partir da afirmação do autor que é o Outro que virá a fornecer a criança as condições para que esta possa constituir um Eu. O Outro lhe antecipa uma imagem e, ao fazê-lo, se precipita aí também um Eu. Mesmo antes que o aparato biológico da criança permita desenvolver uma noção de unidade, pois aos seis meses não possui condições neuropsicomotoras para tanto, a imagem fornecida pelo olhar do Outro dá contorno a precipitação de um Eu.

O que antes vinha a ser um corpo fragmentado constituído pelos investimento pulsionais parciais, torna-se um todo que pode ser contado a partir da habilidade de ver-se na imagem. Esta identificação irá proporcionar uma ilusão de completude, antagônica a vivência de despedaçamento decorrente do momento pulsional auto-erótico experimentado na situação anterior.

A possibilidade da criança de se identificar com esta imagem dependerá do lugar onde o Outro parental a localiza. O olhar, que aqui não se confunde com a função do órgão da visão, designa uma função a ser exercida pelo Outro, que deve ser capaz de identificar a criança e particularizá-la para que esta se reconheça em seu desejo.

Neste ponto encontramos o que FREUD (1914, p. 98) nomeou de “sua majestade o bebê”, situação na qual a criança é tomada pelo Outro como imagem de perfeição, amada, oriunda de seu próprio narcisismo. Esta ilusão é que permite que a criança passe do auto-erotismo para o narcisismo, em que toma seu próprio Eu como objeto de amor. Segundo o autor:

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fornecido pela supervalorização, que já reconhecemos como um estigma narcisista no caso da escolha objetal, domina, como todos nós sabemos, sua atitude emocional. Assim eles se acham sob a compulsão de atribuir todas as perfeições ao filho – o que uma observação sóbria não permitiria – e de ocultar e esquecer todas as deficiências dele (Incidentalmente, a negação da sexualidade nas crianças está relacionada a isto). Além disso, sentem-se inclinados a suspender, em favor da criança, o funcionamento de todas as aquisições culturais que seu próprio narcisismo foi forçado a respeitar, e a renovar em nome dela as reivindicações aos privilégios de há muito por eles próprios abandonados. (...) No ponto mais sensível do sistema narcisista, a imortalidade do ego, tão oprimida pela realidade, a segurança é alcançada por meio do refúgio na criança. O amor dos pais, tão comovedor e no fundo tão infantil, nada mais é senão o narcisismo dos pais renascido, o qual, transformado em amor objetal, inequivocamente revela sua natureza anterior.” (1914, p. 97-98).

A ilusão proveniente do narcisismo pode ser compreendida aqui exatamente como aquilo que se relaciona com a reflexão, ou seja, com o campo do imaginário. LACAN (1954) irá retomar o Espelho no Seminário I, para recolocar o imaginário perante o simbólico. No Espelho o mais significativo é um momento lógico (de precipitação) em que a criança sente seu corpo fragmentado por oposição a imagem unificada. Este é o momento de assunção da identificação especular, definida como a transformação que se produz no sujeito quando este assume sua própria imagem. Se constitui a partir daí a noção de um Eu Ideal, na qual o sujeito se vê alienado.

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relacionada ao desejo do Outro, cabendo esclarecer que as palavras utilizadas pelo infans se referem mais ao campo da comunicação do que ao da linguagem própriamente dita. Podemos dizer então que esta criança ainda não fala, mas é falada.

A linguagem só se instaura no momento em que a criança é retirada da relação dual com o Outro primordial, para ser colocada no campo da incompletude, levada da ilusão da lógica do imaginário para a lógica do simbólico. A criança identificada com a citada imagem do Espelho que precipitou um Eu Ideal, após a aquisição da linguagem será submetida as limitações da Lei, que irão relativizar esta imagem onipotente e convertê-la em um Ideal de Eu. A entrada de um terceiro, a incidência do Nome-do-Pai para esta criança específica, só poderá se dar se no discurso do Outro primordial seu lugar estiver assegurado, ou seja, se este Outro for também faltante, se sobre ele também houver a incidência da Lei.

Lacan no Seminário V, “As formações do Inconsciente”, se dedica a discussão do que ocorre à criança ao adentrar na problemática edípica, delimitando portanto três tempos lógicos distintos em sua constituição. No primeiro momento do Édipo, a criança está identificada com o objeto de desejo do Outro, o falo. Se este Outro está submetido a Lei simbólica, a linguagem, a criança sofre a ação desta por seu intermédio (1958, p. 202).

A criança confronta-se ainda neste momento com um Outro absoluto, que atende a suas demandas a partir de seu próprio desejo. À criança cabe a questão de “ser ou não ser” este objeto que completaria o Outro, identificando-se ou não com a imagem que lhe é fornecida.

Com a entrada de um terceiro elemento nesta relação, temos a passagem para o segundo tempo do Édipo. A criança terá então que se deparar com a proibição de ter acesso direto ao corpo materno, tendo que adiar suas satisfações. Se dá conta neste momento que o olhar do Outro materno se volta para outro lugar, para este terceiro, para o qual seu olhar também se volta. A entrada de um novo elemento representa que não é capaz de completar totalmente o Outro, não pode ser seu falo imaginário. É a partir de então que as proibições, os “nãos”, surgem e são atribuídos a função paterna. Então escapa do assujeitar-se ao desejo do Outro primordial para ter que responder agora à Lei do pai, enquanto função.

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até aqui é que todo sujeito, seja ele homem ou mulher, se funda em uma falta, com a qual se vê obrigado a lidar. Mas nem todos chegam a subjetivá-la, podendo permanecer na posição de objeto (como nos casos de psicose).

Se para a criança não é possível ser o objeto que completa o Outro, porque um terceiro vem a intervir nessa relação, supõem então que pode tê-lo ou não. O Outro enquanto lugar da Lei vai advir como suporte das identificações do Ideal de Eu, além de fiar a possibilidade de nomeação do desejo.

A metáfora paterna se instaura como uma borda, um alicerce, a partir do qual a criança pode se diferenciar e responder ao desejo do Outro. Esta operação, contudo, pode ser operada ou não. Como foi apontado até aqui, é a linguagem que funda o desejo, caracterizando a passagem da condição de infans para a de sujeito. Esta passagem se realiza para cada sujeito de uma maneira muito particular, apesar de se operar universalmente constituindo a noção de uma estrutura.

Segundo o que ocorre a partir da entrada do Outro da Lei, teremos diferentes estruturas de funcionamento, sendo estas conhecidas na Psicanálise como neurose, perversão e psicose. Mas onde se localiza o autismo? Poderíamos supor neste um sujeito constituído? Para tentar responder estas questões, partiremos para a discussão da relação do autista com seu Outro.

2. O autista e o Outro

Levando-se em consideração as duas operações de causação do sujeito, propostas por Lacan em seu Seminário XI, podemos chegar à algumas conclusões acerca da relação que pode ser estabelecida entre o autista e o Outro, bem como se devemos considerá-lo um sujeito constituído ou não.

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“A alienação consiste nesse vel que – se a palavra condenado não suscita objeções da parte de vocês, eu a retomo - condena o sujeito a só aparecer nessa divisão que venho, me parece, de articular suficientemente ao dizer que se ele aparece de uma lado como sentido, produzido como significante, do outro ele aparece como afânise.” (1964, p. 199).

O vel da alienação promove a própria divisão do sujeito, a cisão oriunda da linguagem. Se optamos pelo sujeito, seu ser desaparece; já se escolhemos o ser, é o sujeito quem se perde. Então a alienação é a operação que determina a captura do sujeito pelo significante, possibilitando ao mesmo viver enquanto falante. Mas logo notamos que comporta também um efeito letal metafórico, o da afânise, do desvanecimento, da falta em ser. A operação lógica que se deduz aqui é a de que, independente da escolha que se opere, o que se obtém é sempre nem um, nem outro.

Já à operação de separação cabe engendrar a liberdade de tal captura significante. No momento em que a criança é capaz de se questionar acerca do desejo do Outro, pode também situar a falta no Outro. Esse desejo do Outro só pode ser apreendido nas lacunas presentes em seu discurso, naquilo que deixa dúvida. Todos os questionamentos feitos pelas crianças neste momento, denotam a avidez gerada pelo enigma do desejo do Outro. A propósito da separação, LACAN revela que:

“Enquanto que o primeiro tempo está fundado na subestrutura da reunião, o segundo está fundado na subestrutura que chamamos interseção ou produto. Ela vem justamente situar-se nesta mesma lúnula onde vocês reencontrarão a forma da hiância, da borda.” (1964, p. 202).

O que se passa no autismo, é que se coloca a impossibilidade de aceder à operação de alienação, uma vez que o Outro se apresenta como pura ausência. Em decorrência, o autista fica mergulhado num Real indiferenciado, ocupando o lugar de objeto não especularizado no meio de tantos outros.

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mas como se fosse parte de sua própria libido. Assim, não pode haver queda de um objeto do Real, ficando a própria criança neste lugar de objeto que cai, inerte (SOLER, 1999, p. 231).

Vimos que para que se constitua um sujeito, é necessário que o Outro se apresente barrado, de modo que sua falta permita a inscrição significante. A partir daí, o grito da criança pode ser interpelado pelo Outro enquanto apelo, a ser respondido a partir de suas próprias marcas simbólicas. O autista parece atestar a recusa mais radical à falta no Outro, pois encarna o próprio deserto do desejo.

O Outro se apresenta à criança autista como completo e não é capaz de inscrever uma falta a ser simbolizada. O que o autista denuncia é que o Outro não é capaz de exercer sua função de interpretação, de tal modo que o que deveria advir como apelo, fica reduzido a dimensão de urros, gritos e gemidos. Segundo VIDAL & VIDAL:

“Os psicanalistas que se dedicaram ao tratamento de crianças autistas, se re3ferem à depressão materna que precede o nascimento. A mãe estaria absorvida por uma perda irreparável que não permitiria constituir o lugar de uma falta em que o filho viria a alojar-se. sem a marca da libido objetal, não há lugar para o corte que instaura um valor de gozo. Com isso a criança não acede a dimensão de valor que é relativa a perda.” (1995, p. 129).

Para o autista, o Outro não se comporta como saber que pode vir a responder uma demanda, não permitindo sua inserção na cadeia significante. Sem cadeia, não há também intervalo, nem tão pouco lugar para a causa do desejo. Para VIDAL & VIDAL:

“Nada no autista permite supor a ex-sistência do inconsciente como trabalho de um saber destinado à perda. Sem o desejo do Outro, o autista não tem acesso à dimensão da verdade, como ficção própria da palavra, nem ao equivoco do inconsciente.” (1995, p. 130).

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simbólica do Outro que irá se operar uma perda no Real para que emerja daí o traço unário, que é aquele que permite a primeira identificação ao Ideal de Eu, no autismo, se o Outro se apresenta não atravessado pela falta, temos uma situação bem diferente. Para o autista, o S1 que é inscrito pelo Outro o petrifica, pois não comporta valor de traço. É puro significante sem significância, não contempla a diferença que supõe a alteridade do Um. É um S1 que o congela, que não o representa frente a outro significante, o S2, e acaba por retornar no Real nos característicos automatismos de linguagem.

Como efeito do que acaba de ser colocado, vemos na fala do autista, se esta se apresenta, os objetos sendo diretamente designados, tal como o sujeito, sem passar por uma articulação significante. Em função da falta da fluidez da cadeia, o objeto é apenas um nome sem propriedade, tem somente um atributo, não possue valor de representante e, por não haver mediação da linguagem, ameaça invadí-lo. Daí a necessidade de manter o mundo a seu redor rígido, estável, perpetuando rituais incessantes.

Também o nome próprio fica impossível de ser pensado. Havendo a holófrase do par significante, S1 e S2, a construção de uma produção que nomeie o interlocutor enquanto sujeito tornasse inviável para o autista. Assim nos deparamos com seu discurso repleto de ecolalias, repetindo falas e colocações pronominais, tal como as ouve (RODRIGUEZ, 1999, p. 252).

Uma vez que o S1 não tem valor de traço, o autista não se faz representar neste lugar. É isto que vem a causar a primeira estranheza no contato com uma criança autista. Como apontam VIDAL & VIDAL:

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Se não há inscrição do traço unário enquanto marca da linguagem, podemos concluir que para o autista não há também estruturação de uma imagem em torno de sua função. É assim que encontramos o corpo do autista feito de pedaços sem unificação. O Outro não é capaz de lhe proporcionar um olhar de reconhecimento de sua unidade, supondo que ali onde vê a criança deveria advir um sujeito, o que vem a ser fonte das mais diversas perturbações.

Se não há entrada na questão jubilatória do Espelho, nos deparamos na clínica com crianças com déficits especiais, tais como dificuldades na coordenação motora, falta de continência e toda sorte de distúrbios de linguagem, como já foi apreciado.

O corpo do autista também acaba por evidenciar a falha do Outro em lhe prover de uma borda, já que muitas vezes nos deparamos com crianças incapazes de conter urina e fezes, que apresentam secreção constante nas vias nasais e cujo próprio olhar denota um vazio. É como se ao olho do autista carecesse a capacidade de olhar, tal como a ele faltou um olhar inaugural do Outro.

SOLER aponta que é comum encontrarmos crianças que se comportam como se seu corpo fosse um prolongamento do corpo do Outro, de modo que nada em suas atitudes para com os objetos deflagre que existe um erro de percepção quanto aos limites da imagem, o que nos leva a concluir que o que ocorre é uma perturbação do instrumento-libido. A autora enfatiza que: “Tudo se passa como se a sua inclusão no Outro do significante ao nível do corpo se traduzisse no fato de que a libido também é do Outro.” (1999, p. 231).

Por não haver bordas constituídas, ainda é comum encontrarmos na clínica crianças que chegam com um diagnóstico de surdez, o que logo é descartado com a possibilidade de realizar exames mais detalhadas. Não é o órgão que está lesionado, como aconteceria a uma criança surda, mas sua função que está prejudicada. Isto parece evidenciar mais um aspecto da relação do autista com o Outro: uma vez que este se mostra todo, completo, se torna intrusivo, causando a necessidade de se extraviar das evidências de sua presença. Os comentários de SOLER sobre esta questão tornam-se esclarecedores:

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objeto, compreenderem que é melhor abordar essas crianças de costas, se esconder um pouco, falar cantarolando, para dar a impressão de que é mais um barulho do que uma voz. (...) essa estratégia responde evidentemente à constatação de que a criança reage de maneira paroxística – ela berra, bate os pés, arranca os cabelos... – ao encontro do olhar e da voz ou, de maneira mais geral, a tudo que é imprevisível. Considero o imprevisível na mesma série, ou seja, como um índice da presença. A perseguição, da qual essas crianças parecem objeto, é aliás correlata ao que os autores descrevem como uma inclinação para o ritual: é preciso que nada se mova; a presença é intrusiva.”

(1999, p. 224).

Todos esses traços que pudemos destacar ao abordar a relação do autista e do Outro, nos levam a pensar que o autismo é, para além de uma perturbação das primeiras relações objetais, uma patologia da libido. Desta forma, gostaria de tecer alguns comentários acerca da questão do circuito pulsional e de sua constituição para o autista.

3. O autista e o circuito pulsional

Freud se dedicou ao estudo das pulsões na medida em que estas são a marca que caracteriza o próprio do humano, separando-o dos demais animais, tal como já foi evidenciado na primeira parte deste capítulo. Mas além de elaborar o conceito de pulsão, o autor também nos forneceu as indicações acerca do caminho que estas percorrem em busca de sua satisfação, chegando a retornar ao seu ponto de partida. Posteriormente, Lacan retomou estas formulações ao discutir a montagem do circuito pulsional, chegando a propor o advento de um novo sujeito, o sujeito pulsional. Nos deteremos na constituição deste circuito para compreendermos melhor o que se passa com o autista.

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Quanto ao impulso, sua primeira colocação se refere ao fato da pulsão, diferentemente dos demais estímulos que atuam na mente, surgir dentro do próprio organismo. Assim, atua como uma força que imprime não um impacto momentâneo, “mas sempre um impacto constante” (1915a, p. 124).

A fonte da pulsão, que se localiza no próprio organismo, só pode ser as zonas erógenas. Estas se encontram definidas no texto de !905, “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”, como sendo qualquer região do revestimento cutâneo-mucoso suscetível de se tornar sede de uma excitação do tipo sexual. As zonas erógenas são fontes de diversas pulsões parciais e determinam com maior ou menor especificidade um certo tipo de meta sexual.

Já o objeto pode ser concebido como a coisa em relação a qual, ou através da qual, a pulsão pode atingir sua finalidade. FREUD (1915a, p.128) aponta que o objeto é o elemento mais variável da vida pulsional, não estando originalmente ligado à pulsão. Ele pode ser modificado quantas vezes for necessário no decorrer das vicissitudes que a pulsão sofre durante seu trajeto, localizando-se no mundo exterior, numa parte do próprio corpo ou atendendo a satisfação de diferentes pulsões parciais ao mesmo tempo.

Por fim, concluímos que a finalidade de uma pulsão é sempre a satisfação, que só pode ser obtida eliminando-se o estado de excitação em sua fonte. LACAN (1964, p.170) conclui desta proposição que a satisfação da pulsão não é nada mais senão o retorno ao início do circuito, se utilizando de uma metáfora que atribui ao próprio Freud para elucidar o sentido do que apreendeu: uma boca que se beijaria a si mesma.

FREUD (1915a, p.128) ainda revela que, apesar da finalidade sempre ser a mesma, os caminhos a serem percorridos podem ser diferentes. Também enfatiza que as ditas pulsões “impedidas em sua finalidade”, parecem encontrar sempre alguma satisfação parcial.

Referências

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