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A partir do material clínico, podemos supor que com o nascimento de F. e seu adoecimento precoce, muitos significantes da história familiar foram evocados. A começar pela dificuldade que o casal parental encontrou para gerar uma criança, e pelas fantasias mencionadas por R. quanto aos temores de uma gravidez, já antevemos uma questão desta referente a possibilidade de ser mãe.

Na linhagem materna, a perda e a morte estavam diretamente remetidas a gestação de uma criança, uma vez que a mãe de R. fora vítima de abortos e tivera filhos que faleceram logo após seu nascimento. A própria R. se deparou com o afastamento de sua mãe na tenra infância, uma vez que esta adoeceu com a perda de uma filha.

Em seu discurso, R. aponta uma estranheza em relação a F. já na ocasião de seu nascimento, denotada pelo fato de saber desde o começo que havia algo de errado com o filho. Essa mesma estranheza, também pode ser notada quando R. fala sobre o nome que foi escolhido para a criança, dando a entender, num primeiro momento, que nada tinha a ver com isso, como se não estivesse implicada nessa escolha. Vemos aqui um aspecto que os analistas compreendem como uma dificuldade da mãe de tomar seu filho em seu valor narcísico, que é característica dos casos de autismo:

“A mãe do autista não pode ver seu filho como um outro para ela, que a partir desse momento ela poderia especularizar, para fazer dele uma imagem que lhe seria narcísica (no mito de Ovídio, primeiro tempo do narcisismo), quer dizer, “amável”.

Ao contrário, radicalmente estranho, ele não é ela em nada: ele é real no sentido em que ele não é, em nada, ela. A mãe ama seu filho, não como se fosse seu filho, mas como um ser estranho.” (BALBO & BERGÈS, 2003, p. 171).

Uma vez remetida à Outra cena, na qual sua mãe ao perder um filho fica “ruim da cabeça”, R. se identifica com esta e também adoece, o que nos faz supor que em sua fantasia possa ter identificado F. com esta criança morta, sendo foracluída de seu lugar de

Outro desejante. A este respeito, uma colocação de BALBO & BERGÈS (2003, p. 105) parece esclarecedora:

“Uma mãe de autista não teria sido capaz de fazer a hipótese de que o genitor lhe demandava uma criança que fosse dele. Estamos então no primeiro caso, na medida então e, que tal objeto está articulado inteira e especialmente ao real. É na geração precedente que se situa o desejo. Neste caso, há foraclusão do desejo da mãe do bebê, na medida em que ela não está absolutamente no lugar de grande Outro, ela está apenas no lugar da demanda. Em suma, ela simplesmente instrumentaliza a demanda para a avó materna, suposta precisamente neste lugar de grande Outro. Neste caso, o genitor não está foracluído, visto que é preciso um; no autismo, é a mãe que está foracluída do seu desejo.”.

Ficando neste lugar de criança morta, doente, mesmo recuperado e não tendo sido constatadas seqüelas do ponto de vista médico, F. não tarda a apresentar toda uma sorte de atrasos em seu desenvolvimento, além de constantes problemas físicos que lhe impõem novas internações.

Partindo para o material dos atendimentos que se referem ao contato direto com a criança, nota-se que F. chega à Clínica respondendo deste lugar onde não pode se reconhecer um sujeito. Não consegue falar e se o faz, é uma profusão de sons sem sentido o que produz. Também não é sem valor a constatação que em presença de sua mãe sempre olha para esta primeiro, esperando que lhe autorize a falar, senão permanece inerte.

Muitas brincadeiras de F. lembravam meras repetições de movimentos, sem que parecesse haver finalidade ou mesmo algo que convencionamos chamar de lúdico, em paralelo com sua fala sem comprometimento com um sentido. R. também havia se referido ao fato de F. ter algumas “manias”, como a de calçar e descalçar os sapatos incessantemente, a ponto de machucar seus dedos. Como afirma SOLER (1999, p. 229) “Nós podemos escrever isso com a fórmula da alienação: ou bem ele é um puro vivente, sem libido, no sentido do desejo, portanto inerte, ou ele se torna uma máquina significante, ele é maquinizado.”.

Mais do que demonstrar a dificuldade para nomear as partes do seu corpo, a brincadeira que envolvia o se deixar cair e apontar para diferentes pontos para que a psicóloga os denominasse, também deixava antever a impossibilidade de se reconhecer em uma unidade corporal. Quanto a esta questão, LAZNIK (2004, p. 24) afirma que:

“Nós todos conhecemos a importância dada por Jaques Lacan a este tempo particular de reconhecimento pelo Outro da imagem especular, este momento onde a criança se vira para o adulto que a sustenta, que a carrega e pede-lhe uma confirmação, pelo olhar, do que ele percebe no espelho como a assunção de uma imagem, de um domínio ainda não conquistado. Se este momento da relação jubilatória à imagem do espelho é crucial, é porque é ela que vai dar ao bebê seu sentimento de unidade, sua imagem corporal, base de sua relação com os outros, seus semelhantes.”.

Após um primeiro corte operado por seu pedido para que a mãe não entrasse nos atendimentos, o que foi sustentado pela psicóloga ao questioná-lo desde então a cada começo de sessão a este respeito, é que começamos a vislumbrar algum efeito analítico. É só a partir desta manobra que F. adentra na questão da voz, mesmo que neste momento o faça manipulando a voz da psicóloga.

Com a entrada na dimensão do imaginário, exemplificada nas referidas sessões em que F. é capaz de representar um objeto desenhando-o e a partir daí passa a vislumbrar sua própria imagem no espelho ao se ver esperar, cair ou atirar, temos uma série de repercussões. Passa a se contar na relação com os colegas e se queixar ao ser excluído, além de verbalizar algo que parece ser sua primeira palavra no contexto analítico: “cavaô”. Palavra esta que, como já foi apontado, faz referência ao significado de seu nome.

Também a constatação da doença herdada de sua mãe, gerou a possibilidade de que esta reconhecesse no filho algo de si, deixando de ser tão estranho. Mas parece que a entrada na questão do imaginário só se consolidou de fato, quando R. pode articular em seu discurso o sofrimento que a acometera na ocasião de seu nascimento, ao reconhecer a

identificação com sua própria mãe e ao permitir que alguma falta aparecesse. Como aponta SOLER (1999, p. 226), no autismo:

“Não se fala de seus sintomas, como se faria a respeito de um neurótico, mas do sintoma do Outro. Isto é também coerente com o fato, largamente constatado, que fazendo falar a mãe ou quem quer que seja desde que este esteja no lugar do Outro, obtém-se às vezes efeitos sobre a criança: quando o Outro articula, o significado se move.”.

Na escola, com a entrada na sala especial, F. também demonstrou alguns saltos. Com a possibilidade de freqüentar uma sala com número reduzido de alunos, passou a contar com maior atenção por parte de sua professora, ou seja, com a presença de um outro que possa garantir sua presença ali. Não é à toa que não teve mais crises de choro e que passou a agüentar a ausência dos pais.

Do ponto de vista pedagógico, apesar dos ganhos quanto a coordenação motora, segundo sua mãe, a professora diz que F. “é dedicado, mas quando não tem ninguém olhando para ele, pára de fazer lição e vai logo brincar” (sic). O discurso da professora denuncia que F. precisa que Outro o olhe para que aprenda, o que a escola interpreta erroneamente como falta de interesse ou indisciplina.

A discussão deste caso, tal como foi apresentada, nos faz pensar na importância do diagnóstico para a condução de um tratamento, tanto no que se refere ao contato direto com o paciente, como também nas implicações que o quadro pode trazer, aqui exemplificadas pelas dificuldades de aprendizagem e articulação da fala, que impeliram ao contato com outros profissionais envolvidos, para além da implicação dos pais no atendimento.

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