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III – A Clínica do Autismo na Escola Lacaniana

2. O autista e o Outro

Levando-se em consideração as duas operações de causação do sujeito, propostas por Lacan em seu Seminário XI, podemos chegar à algumas conclusões acerca da relação que pode ser estabelecida entre o autista e o Outro, bem como se devemos considerá-lo um sujeito constituído ou não.

O primeiro reconhecimento que a criança recebe enquanto confirmação de sua existência vem do Outro, na medida em que este é capaz de inscrever a criança numa relação simbólica. Ao ser reconhecida enquanto sujeito pelo Outro, também se torna alienada neste Outro, uma vez que este se encarregará de lhe prover de sentidos a partir de seus próprios significantes. Segundo LACAN:

“A alienação consiste nesse vel que – se a palavra condenado não suscita objeções da parte de vocês, eu a retomo - condena o sujeito a só aparecer nessa divisão que venho, me parece, de articular suficientemente ao dizer que se ele aparece de uma lado como sentido, produzido como significante, do outro ele aparece como afânise.” (1964, p. 199).

O vel da alienação promove a própria divisão do sujeito, a cisão oriunda da linguagem. Se optamos pelo sujeito, seu ser desaparece; já se escolhemos o ser, é o sujeito quem se perde. Então a alienação é a operação que determina a captura do sujeito pelo significante, possibilitando ao mesmo viver enquanto falante. Mas logo notamos que comporta também um efeito letal metafórico, o da afânise, do desvanecimento, da falta em ser. A operação lógica que se deduz aqui é a de que, independente da escolha que se opere, o que se obtém é sempre nem um, nem outro.

Já à operação de separação cabe engendrar a liberdade de tal captura significante. No momento em que a criança é capaz de se questionar acerca do desejo do Outro, pode também situar a falta no Outro. Esse desejo do Outro só pode ser apreendido nas lacunas presentes em seu discurso, naquilo que deixa dúvida. Todos os questionamentos feitos pelas crianças neste momento, denotam a avidez gerada pelo enigma do desejo do Outro. A propósito da separação, LACAN revela que:

“Enquanto que o primeiro tempo está fundado na subestrutura da reunião, o segundo está fundado na subestrutura que chamamos interseção ou produto. Ela vem justamente situar-se nesta mesma lúnula onde vocês reencontrarão a forma da hiância, da borda.” (1964, p. 202).

O que se passa no autismo, é que se coloca a impossibilidade de aceder à operação de alienação, uma vez que o Outro se apresenta como pura ausência. Em decorrência, o autista fica mergulhado num Real indiferenciado, ocupando o lugar de objeto não especularizado no meio de tantos outros.

Quanto a operação de separação, podemos afirmar que os autistas não são capazes de efetuá-la, uma vez que o Outro não o toma como objeto que vem a completar sua falta,

mas como se fosse parte de sua própria libido. Assim, não pode haver queda de um objeto do Real, ficando a própria criança neste lugar de objeto que cai, inerte (SOLER, 1999, p. 231).

Vimos que para que se constitua um sujeito, é necessário que o Outro se apresente barrado, de modo que sua falta permita a inscrição significante. A partir daí, o grito da criança pode ser interpelado pelo Outro enquanto apelo, a ser respondido a partir de suas próprias marcas simbólicas. O autista parece atestar a recusa mais radical à falta no Outro, pois encarna o próprio deserto do desejo.

O Outro se apresenta à criança autista como completo e não é capaz de inscrever uma falta a ser simbolizada. O que o autista denuncia é que o Outro não é capaz de exercer sua função de interpretação, de tal modo que o que deveria advir como apelo, fica reduzido a dimensão de urros, gritos e gemidos. Segundo VIDAL & VIDAL:

“Os psicanalistas que se dedicaram ao tratamento de crianças autistas, se re3ferem à depressão materna que precede o nascimento. A mãe estaria absorvida por uma perda irreparável que não permitiria constituir o lugar de uma falta em que o filho viria a alojar-se. sem a marca da libido objetal, não há lugar para o corte que instaura um valor de gozo. Com isso a criança não acede a dimensão de valor que é relativa a perda.” (1995, p. 129).

Para o autista, o Outro não se comporta como saber que pode vir a responder uma demanda, não permitindo sua inserção na cadeia significante. Sem cadeia, não há também intervalo, nem tão pouco lugar para a causa do desejo. Para VIDAL & VIDAL:

“Nada no autista permite supor a ex-sistência do inconsciente como trabalho de um saber destinado à perda. Sem o desejo do Outro, o autista não tem acesso à dimensão da verdade, como ficção própria da palavra, nem ao equivoco do inconsciente.” (1995, p. 130).

Excluído da causa do desejo, o autista fica reduzido a puro objeto da necessidade, encarnando o objeto auto-erótico do Outro primordial. Se em condições ideais, é da falta

simbólica do Outro que irá se operar uma perda no Real para que emerja daí o traço unário, que é aquele que permite a primeira identificação ao Ideal de Eu, no autismo, se o Outro se apresenta não atravessado pela falta, temos uma situação bem diferente. Para o autista, o S1 que é inscrito pelo Outro o petrifica, pois não comporta valor de traço. É puro significante sem significância, não contempla a diferença que supõe a alteridade do Um. É um S1 que o congela, que não o representa frente a outro significante, o S2, e acaba por retornar no Real nos característicos automatismos de linguagem.

Como efeito do que acaba de ser colocado, vemos na fala do autista, se esta se apresenta, os objetos sendo diretamente designados, tal como o sujeito, sem passar por uma articulação significante. Em função da falta da fluidez da cadeia, o objeto é apenas um nome sem propriedade, tem somente um atributo, não possue valor de representante e, por não haver mediação da linguagem, ameaça invadí-lo. Daí a necessidade de manter o mundo a seu redor rígido, estável, perpetuando rituais incessantes.

Também o nome próprio fica impossível de ser pensado. Havendo a holófrase do par significante, S1 e S2, a construção de uma produção que nomeie o interlocutor enquanto sujeito tornasse inviável para o autista. Assim nos deparamos com seu discurso repleto de ecolalias, repetindo falas e colocações pronominais, tal como as ouve (RODRIGUEZ, 1999, p. 252).

Uma vez que o S1 não tem valor de traço, o autista não se faz representar neste lugar. É isto que vem a causar a primeira estranheza no contato com uma criança autista. Como apontam VIDAL & VIDAL:

“O Outro é tórico, pois comporta o buraco da privação. Fora dele, o autista repete o significante sem par que não pode significar a questão do sujeito diante do Outro. Ele não se faz representar nesse lugar. Nada o representa; não representa nada. Causa surpresa, desconcerto, horror. Também indiferença, apatia, desconsolo. Como o Outro reconheceria algo que é tão diferente dele? Ele é levado, mostrado, observado como uma coisa esquisita e imutável.” (1995, p. 130).

Se não há inscrição do traço unário enquanto marca da linguagem, podemos concluir que para o autista não há também estruturação de uma imagem em torno de sua função. É assim que encontramos o corpo do autista feito de pedaços sem unificação. O Outro não é capaz de lhe proporcionar um olhar de reconhecimento de sua unidade, supondo que ali onde vê a criança deveria advir um sujeito, o que vem a ser fonte das mais diversas perturbações.

Se não há entrada na questão jubilatória do Espelho, nos deparamos na clínica com crianças com déficits especiais, tais como dificuldades na coordenação motora, falta de continência e toda sorte de distúrbios de linguagem, como já foi apreciado.

O corpo do autista também acaba por evidenciar a falha do Outro em lhe prover de uma borda, já que muitas vezes nos deparamos com crianças incapazes de conter urina e fezes, que apresentam secreção constante nas vias nasais e cujo próprio olhar denota um vazio. É como se ao olho do autista carecesse a capacidade de olhar, tal como a ele faltou um olhar inaugural do Outro.

SOLER aponta que é comum encontrarmos crianças que se comportam como se seu corpo fosse um prolongamento do corpo do Outro, de modo que nada em suas atitudes para com os objetos deflagre que existe um erro de percepção quanto aos limites da imagem, o que nos leva a concluir que o que ocorre é uma perturbação do instrumento-libido. A autora enfatiza que: “Tudo se passa como se a sua inclusão no Outro do significante ao nível do corpo se traduzisse no fato de que a libido também é do Outro.” (1999, p. 231).

Por não haver bordas constituídas, ainda é comum encontrarmos na clínica crianças que chegam com um diagnóstico de surdez, o que logo é descartado com a possibilidade de realizar exames mais detalhadas. Não é o órgão que está lesionado, como aconteceria a uma criança surda, mas sua função que está prejudicada. Isto parece evidenciar mais um aspecto da relação do autista com o Outro: uma vez que este se mostra todo, completo, se torna intrusivo, causando a necessidade de se extraviar das evidências de sua presença. Os comentários de SOLER sobre esta questão tornam-se esclarecedores:

“...são crianças que são como que perseguidas pelos sinais (signos) da presença do Outro, e especialmente por dois objetos: o olhar e a voz. Daí o fato de certos autores, pela simples experiência, sem Ter qualquer idéia do

objeto, compreenderem que é melhor abordar essas crianças de costas, se esconder um pouco, falar cantarolando, para dar a impressão de que é mais um barulho do que uma voz. (...) essa estratégia responde evidentemente à constatação de que a criança reage de maneira paroxística – ela berra, bate os pés, arranca os cabelos... – ao encontro do olhar e da voz ou, de maneira mais geral, a tudo que é imprevisível. Considero o imprevisível na mesma série, ou seja, como um índice da presença. A perseguição, da qual essas crianças parecem objeto, é aliás correlata ao que os autores descrevem como uma inclinação para o ritual: é preciso que nada se mova; a presença é intrusiva.” (1999, p. 224).

Todos esses traços que pudemos destacar ao abordar a relação do autista e do Outro, nos levam a pensar que o autismo é, para além de uma perturbação das primeiras relações objetais, uma patologia da libido. Desta forma, gostaria de tecer alguns comentários acerca da questão do circuito pulsional e de sua constituição para o autista.

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