• Nenhum resultado encontrado

1 DIREITOS CULTURAIS E PATRIMÔNIO CULTURAL NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE

1.6 As dimensões do (direito ao) patrimônio cultural

O direito ao patrimônio cultural é um dos prolongamentos dos direitos culturais. Sua garantia representa um legado das gerações presentes para as gerações futuras. Sua proteção, além de estabelecer esse elo, cria laços de solidariedade em torno de uma memória coletiva comum, sobre a qual se devem satisfazer as necessidades culturais para o completo desenvolvimento humano, individual e coletivo, em condições de equidade e equilíbrio partilhadas entre as sociedades do passado, presente e futuro. A partilha dessa memória representativa estabelece e fortalece a identidade cultural de uma pluralidade de grupos e referencia seus valores na convivência em alteridade e no respeito à diversidade cultural humana.

Como direito cultural fundamental, o patrimônio cultural tem uma dimensão subjetiva e outra objetiva. Na primeira, o direito ao patrimônio cultural é de titularidade individual de uma pessoa ou de um grupo específico, podendo ser acionado contra ingerências do Estado na defesa de suas manifestações e expressões para garantia de suas liberdades culturais. Na segunda, reconhece-se que o patrimônio cultural é em si um instituto juridicamente protegido por representar os valores culturais da sociedade brasileira, vinculando normas infraconstitucionais e orientando a interpretação jurídica (SOARES, 2009, p.108-109). Nesse sentido, de

continuidade e transmissão dos valores e da memória coletiva de uma geração a outra, a proteção do patrimônio cultural desponta como dever do Estado para assegurar à geração futura os benefícios individuais e coletivos da fruição e do acesso aos bens culturais.

Ainda como dimensão objetiva, esse dever se desdobra em tarefas subsidiadas por instrumentos, mecanismos e recursos, cujo emprego é sistematizado na forma de políticas culturais. O dever de proteger o patrimônio cultural, ou seja, a função que os instrumentos e mecanismos de preservação, conservação e salvaguarda de bens culturais desempenha é, ao fim, uma garantia do direito fundamental cultural ao patrimônio cultural. A proteção de bens culturais em si mesma é uma obrigação que leva em consideração a dimensão subjetiva dos direitos culturais de pessoas e comunidades, a relação destas com o próprio objeto da proteção que se desdobra em novas fontes de produção, reprodução e formação cultural. Essa dupla dimensão confere ao direito ao patrimônio cultural uma exigibilidade jurídica tanto de respeito à diversidade cultural representativa das referências culturais, quanto de acessibilidade e fruibilidade (PAIVA, 2015, p. 42).

As dimensões subjetiva e objetiva recaem sobre formas distintas do patrimônio cultural, ou seja, em como os bens que integram o seu conjunto se apresentam. Por isso, o caput do artigo 216 dicotomiza o patrimônio entre bens de natureza material e imaterial portadores de referência cultural para a diversidade dos grupos que compõe a sociedade brasileira, exemplificando, em uma lista enumerativa não exaustiva, algumas de suas representações mais corriqueiras (formas de expressão, modos de fazer, criar e viver, edificações, sítios históricos etc.). As dimensões material e imaterial compõem o conteúdo substancial das normas de proteção ao direito fundamental ao patrimônio cultural. Essas dimensões conteudísticas não são absolutas ou incomunicáveis, apesar da aparente oposição e distanciamento; são interdependentes, mas há bens culturais cujos elementos preponderantes pertencem a uma categoria e não a outra. Como visto, isso é determinante para o Estado empregar os instrumentos corretos e adequados na proteção do patrimônio, bem como encetar as políticas culturais necessárias a sua preservação.

Essa divisão sem precedentes na história constitucional brasileira não foi criada pela Constituinte para desvelar supostos antagonismos entre as duas naturezas, mas para, diante do histórico da política de proteção do patrimônio cultural no Brasil, dar maior destaque e relevância aos bens culturais imateriais. Até então, proteção do patrimônio cultural

era sinônimo de tombamento33 de bens materiais; então móveis e imóveis, bens corpóreos, ocupavam lugar central na atenção do Estado. Em verdade, o uso do mecanismo do tombamento sobrepujou a própria natureza dos bens que tutela, e o verbo da ação protetiva estatal, de instrumento passou a ser confundido com o objeto que justifica sua existência. Segundo Sônia Rabello de Castro (2009, p. 19):

Comumente, costuma-se entender e usar como se sinônimos fossem os conceitos de preservação e de tombamento. É importante, porém, distingui-los, já que diferem quanto aos seus efeitos no mundo jurídico, mormente para apreensão mais rigorosa do que seja o ato do tombamento. Preservação é o conceito genérico. Nele podemos compreender toda e qualquer ação do Estado que vise conservar a memória de fatos ou valores culturais de uma Nação. É importante acentuar esse aspecto já que, do ponto de vista normativo, existem várias possibilidades de formas legais de preservação. A par da legislação, há também as atividades administrativas do Estado que, sem restringir ou conformar direitos, se caracterizam como ações de fomento que têm como consequência a preservação da memória. Portanto, o conceito de preservação é genérico, não se restringindo a uma única lei, ou forma de preservação específica.

A vertente imaterial do patrimônio foi uma das novidades trazidas pela Constituição de 1988 junto com a terminologia direitos culturais para sua garantia como direito de todos. O artigo 216 da Constituição trata isonomicamente as duas dimensões substanciais do patrimônio brasileiro. O fundamento histórico da previsão está associado com a ampliação do conceito de patrimônio cultural para incluir bens cuja referência cultural é legitimada por grupos sociais marginalizados, excluídos ou vulnerabilizados pela política cultural de preservação que, durante muito tempo, privilegiou a preservação de bens culturais valorizados pelas elites e classes sociais mais abastadas da sociedade brasileira, assim também

33 O octogenário tombamento foi criado pelo Decreto-Lei 25, de 30 de

novembro de 1937, no início do Estado Novo de Vargas. Está vigente até hoje, tendo sido recepcionado pela Constituição Federal de 1988 com status de lei ordinária. Sobre o tombamento, dedicar-se-á notas conceituais e o âmbito de aplicação no segundo capítulo sobre a história da preservação do patrimônio cultural no Brasil.

pelos técnicos e intelectuais que a conduziram dentro da organização administrativa do Estado, selecionando e separando os bens merecedores de proteção, diferenciando-os das expressões da cultura sem excepcionalidade, despidas de autenticidade ou não vinculadas a fatos vultosos, notáveis e memoráveis de personagens históricos relacionados à demonstração de poder desses atores.

Somente com a organização de movimentos sociais, de povos indígenas, de grupos afrodescendentes, de comunidades tradicionais e organizações não-governamentais, em prol da cidadania ativa e da ampliação de direitos fundamentais na Constituinte, impulsionada por mudanças internacionais protagonizadas por países tidos como periféricos ou ex-colônias europeias, e por projetos pontuais da Administração brasileira para a cultura popular, é que houve a inclusão dessa outra dimensão do patrimônio cultural na Constituição. Essa reivindicação inclusiva não se relacionou apenas com natureza dos bens, mas com maior abrangência dos valores que justificassem a proteção. De outro modo, o campo patrimonial englobou outros sujeitos na prática da preservação. Não à toa que o artigo 215, § 1º, da Constituição protegeu constitucionalmente as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional, ou o artigo 216, § 5º, tombou os documentos e os sítios históricos dos quilombolas.

Assim, vê-se que a origem e o horizonte da face imaterial do patrimônio não deixam de ser o princípio da igualdade, mormente a igualdade material e o valor comunitário da dignidade, onde, face ao pluralismo cultural, todos os bens culturais referentes são merecedores de proteção, porque os sujeitos para quem têm valor também o são. Igualmente, também fruto do Estado Democrático de Direito inaugurado pela Constituição Federal de 1988, diante do princípio da participação popular, as ações de proteção estatal só serão legítimas se realizadas em colaboração com a comunidade. De certa forma, a ampliação dos instrumentos e mecanismos mencionados constitucionalmente é um reflexo da abrangência do conceito de patrimônio cultural.

Dentro do conceito abrangente do caput do artigo 216, o patrimônio cultural abriga bens culturais formalmente declarados por esses mecanismos e instrumentos como reveladores do interesse público na proteção, ainda que em graus distintos, bem como os bens culturais reais, nos quais, inobstante a inexistência de instrumento protetivo sobre o bem, a própria comunidade o reconhece como tal, pois o valora (MIRANDA, 2006, p. 54-55). Dessa forma, como previsto constitucionalmente, o critério para sua proteção se assenta na referência

cultural coletiva de quaisquer dos grupos integrantes da sociedade brasileira. Para Maria Cecília Londres Fonseca (2001, p.112, grifo original):

Quando se fala em referências culturais, se pressupõem sujeitos para os quais essas referências façam sentido (referências para quem?). Essa perspectiva veio deslocar o foco dos bens – que em geral se impõem por sua monumentalidade, por sua riqueza, por seu ‘peso’ material e simbólico – para a dinâmica de atribuição de sentidos e valores. Ou seja, para o fato de que os bens culturais não valem por si mesmos, não têm um valor intrínseco. O valor lhes é sempre atribuído por sujeitos particulares e em função de determinados critérios e interesses historicamente condicionados. Levada às últimas conseqüências, essa perspectiva afirma a relatividade de qualquer processo de atribuição de valor – seja valor histórico, artístico, nacional etc. – a bens, e põe em questão os critérios até então adotados para a constituição de patrimônios culturais, legitimados por disciplinas como a história, a história da arte, a arqueologia, a etnografia etc. Relativizando o critério do saber, chamava-se atenção para o papel do poder. Não obstante a existência de bens culturais reais, formalmente eles só integram o patrimônio cultural strictu sensu, compreendido como conjunto de bens culturais protegidos por qualquer dos mecanismos ou formas de acautelamento exemplificados pela Constituição de 1988, quando alcançados por um dos instrumentos de proteção. Na perspectiva de Mário Pragmácio (2010, p. 17), um bem é uma coisa sobre a qual se refere um valor, não importando se essa coisa é corpórea ou se atine “a tudo que pode ser apreendido ou conhecido pelo pensamento humano, quer real ou imaginário”. Portanto, para haver bem cultural, em sua fórmula, tem de existir atribuição de valor cultural a uma coisa.

Mas, para fins constitucionais, que valores seriam esses? Seriam todos os valores vinculados àquelas matérias expressas na tríade transtemporal dos conteúdos dos direitos culturais. Alguns são mencionados na própria Constituição pelos artigos 215 e 216, mas a abrangência do conceito de patrimônio cultural e a diversidade cultural brasileira permitem a incorporação dos mais plurais valores sociais que justifiquem a proteção de um bem cultural, desde que não violem ou ofendam os demais princípios e regras constitucionais, principalmente

outros direitos fundamentais.

Ainda assim, para integrar formalmente o patrimônio cultural, segundo Mário Pragmácio (2010, p. 21), isto é, fazer parte do conjunto de bens culturais selecionados e “oficiais”, um bem cultural atravessa um processo de patrimonialização no qual o valor cultural depositado pelos sujeitos para os quais têm referência é qualificado uma segunda vez, por critérios técnicos dos órgãos de proteção, em que se atribui qualitativamente novos valores ou se reconhece, através de um mecanismo, o valor que possui para a identidade, a ação e a memória de um dos grupos da sociedade brasileira. Portanto, não basta que o bem cultural tenha valor histórico, simbólico etc. Esse valor tem de possuir referência cultural coletiva, consubstanciada nas condicionantes da identidade, ação e memória; porém, o que define cada uma são as disputas de poder, não obstante nessas relações os discursos das ciências sociais ajudem a preencher o conceito aberto de patrimônio cultural (TELLES, 2010, p. 23). A patrimonialização, no caso, é uma ressonância do valor de referência do bem cultural, apesar da heterogeneidade das formas como pode se apresentar.

Dessa forma, “todo patrimônio cultural é bem cultural, mas nem todo bem cultural é patrimônio cultural. O conceito de patrimônio cultural, portanto, contém o de bem cultural” (TELLES, 2010, p. 23). Segundo Cecília Londres (2005, p. 42), muito embora um bem cultural possua valores de uso, econômico, predominando seu caráter simbólico da identidade coletiva, referente a um grupo, a sua seleção estatal é realizada por técnicas de agenciamento, “de construção e de elaboração, nos motivos são apreendidas referências ao modo e às condições de produção desses bens, a um tempo, a um espaço, a uma organização social [...] cuja definição tem em vista unidades políticas”. De outra forma, para Carlos Magno Paiva (2015, p. 86): “Os bens culturais são aqueles elementos eleitos da cultura entre todas as suas possibilidades, como representativos dos valores culturais de uma comunidade”.

Muito embora aqui se adote uma noção ampliada de patrimônio cultural, como o Registro do PCI é um instrumento a priori declaratório de reconhecimento de bem cultural imaterial, trabalhar-se-á a perspectiva da seleção de bens culturais pelos mecanismos enunciados na Constituição Federal de 1988. Nessa acepção, importa ressaltar que a Constituição enuncia as dimensões substanciais do patrimônio e suas naturezas, assim como traduz os elementos de identificação da referência cultural.

Quanto às naturezas dos bens culturais e do patrimônio cultural, se há uma solidificação de uma dessas noções certamente é a de bem cultural

material. Não somente porque, como se verá no 2º capítulo, a trajetória da história da proteção do patrimônio cultural é notada e preponderamente voltada para a preservação, conservação, restauração e reparação de bens materiais, móveis e imóveis, individuais ou em conjunto, como coleções, sítios históricos, arqueológicos e urbanos, mas porque, na perspectiva dos sentidos humanos, eles são mais palpáveis e perceptíveis. São objetos culturais que têm suportes corpóreos que referenciam os traços culturais dos grupos os quais a Constituição Federal de 1988 menciona.

Já isso não ocorre quando se está diante do conceito de patrimônio cultural imaterial. Primeiramente, a terminologia é empregada sem se ater que os bens culturais imateriais não são absolutamente intangíveis, impalpáveis, intocáveis, pois se apresentam às vezes sob bases materiais ainda que temporárias ou efêmeras, bem como podem estar associados a bens corpóreos ou suas expressões exprimirem produtos, resultados materiais. É certo que a mobilização de bens materiais associados e integrados aos bens culturais imateriais também podem obedecer à temporalidade da ocorrência dos processos nos quais se manifestem formas de fazer, criar, viver, de expressão, porém eles são acessórios, partes integrantes. Por outro lado, esses produtos e resultados podem se constituir em novos bens culturais imateriais em sentido amplo, ou seja, aqueles que fazem parte do patrimônio intelectual e criativo da coletividade (obras intelectuais, livros, músicas, danças etc.), mas não foram reconhecidos ou declarados como integrantes do patrimônio cultural strictu sensu.

Além disso, não raro o conceito de patrimônio cultural imaterial é usado como sinônimo de cultura tradicional ou popular34, uma de suas formas de se exprimir, porém associadas à noção da cultura de uma classe social em particular. De resto, é substituído pela expressão patrimônio oral, uma das maneiras pelas quais se dá sua transmissão intergeracional. Ademais, há também o termo patrimônio intangível, mas que, tal qual já explicitado, remete ainda à apreensão da natureza dos bens pelos sentidos humanos. Por isso, preferem-se os termos patrimônio cultural imaterial e bens culturais imateriais, por expressa referência a essa dimensão no texto normativo do caput do artigo 216 da Constituição de 1988. Mas o que é o patrimônio cultural imaterial? O que é um bem cultural imaterial?

A Constituição não define conceito de patrimônio cultural, tampouco sua faceta imaterial, embora exemplifique algumas de suas formas: manifestações, as formas de expressão, os modos de criar, fazer

e viver, as criações científicas, artísticas e tecnológicas, dentre outros. Assim, dado que o Brasil é signatário da Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial da UNESCO de 2003, instrumento multilateral de caráter vinculante, compreende-se, conforme seu artigo 2º, por:

[...] ‘patrimônio cultural imaterial’ as práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas – junto com os instrumentos, objetos, artefatos e lugares culturais que lhes são associados – que as comunidades, os grupos e, em alguns casos, os indivíduos reconhecem como parte integrante de seu patrimônio cultural. Este patrimônio cultural imaterial, que se transmite de geração em geração, é constantemente recriado pelas comunidades e grupos em função de seu ambiente, de sua interação com a natureza e de sua história, gerando um sentimento de identidade e continuidade e contribuindo assim para promover o respeito à diversidade cultural e à criatividade humana.

[...]

2. O ‘patrimônio cultural imaterial’, conforme definido no parágrafo 1 acima, se manifesta em particular nos seguintes campos:

a) tradições e expressões orais, incluindo o idioma como veículo do patrimônio cultural imaterial; b) expressões artísticas;

c) práticas sociais, rituais e atos festivos;

d) conhecimentos e práticas relacionados à natureza e ao universo;

e) técnicas artesanais tradicionais.

Segundo a definição da Convenção, pode-se sintetizar que o PCI é um conjunto de expressões, manifestações e conhecimentos, associados ou não a bens culturais materiais ou espaços culturais, reconhecido primordialmente por coletividades, mas também por indivíduos, presente na sua vivência cotidiana, dinâmica e mutável, transmitido intergeracionalmente em função de sua continuidade histórica e do meio ambiente que o circunda, e do respeito à diversidade cultural e à fecundidade da engenhosidade humana, criando um sentimento de identidade no interior das novas e para as futuras gerações. Tal e qual a Constituição Federal de 1988, a Convenção de 2003 da UNESCO exemplifica algumas áreas em que o PCI se manifesta com maior

frequência, mas a elas não se restringe. Para Carlos Frederico Marés (2012, p. 50, grifo e itálico original) acerca da complexidade dessa dimensão:

A caracterização destes bens é muito difícil, e ainda mais complexa, sua ambientação jurídica, exatamente porque o sistema foi elaborado sobre bens materiais. É fácil entender a razão desta dificuldade jurídica. Ocorre que o sistema jurídico ocidental contemporâneo está assentado sobre a propriedade provada, sobre bens de propriedade privada. Por bens o direito sempre entendeu coisas concretas, registráveis ou palpáveis ou documentáveis. Estes bens intangíveis são as manifestações de arte, formas e processos de conhecimento, hábitos, usos, ritmos, danças, processos de transformação e aproveitamento de alimentos etc. É muito difícil determinar o limite em que estes bens passam a ser juridicamente relevantes e, a partir daí, tutelados. Dito de outra forma, é muito difícil definir o limite em que a manifestação passa a ser um bem jurídico. Definido o que constitui o patrimônio cultural imaterial, resta responder o questionamento sobre a natureza do bem cultural imaterial. Para Gustavo Tepedino (2015, p. 274), um bem jurídico é um recorte da realidade juridicamente protegida. No caso do bem cultural imaterial, esse contorno subsume-se ao conceito de patrimônio cultural imaterial da Constituição Federal de 1988 e à definição conteudística e dos seus elementos pela Convenção de 2003 da UNESCO. Contudo, apesar da autonomia do bem cultural imaterial, há uma confusão generalizada entre os valores que justificam a proteção dos bens culturais, de forma geral, e a natureza da imaterialidade presente no PCI, assim também como a natureza do suporte e a titularidade do domínio sobre o bem e/ou sobre o suporte. Para tanto, é necessário retornar à questão do que é o bem cultural. Na definição de José Afonso da Silva (2001, p. 26):

Os bens ou objetos culturais são coisas criadas pelo homem mediante projeções de valores, ‘criadas’ não apenas no sentido de produzidas, não só do mundo construído, mas no sentido de vivência espiritual do objeto, consoante se dá em face de uma paisagem natural de notável beleza, que, sem ser materialmente construída ou produzida, se integra com a presença e participação do espírito

humano.

A essência do bem cultural consiste na sua peculiar estrutura, em que se fundem, numa unidade objetiva, um objeto material e um valor que lhe dá sentido. Por isso se diz que o ser do bem cultural é um ser sentido.

Nessa acepção mais original e comum, um bem cultural é uma coisa sobre a qual projetamos valores na condição de seres humanos. Segundo Francisco Luciano Lima Rodrigues (2008, p. 46), o que caracteriza um objeto como cultural é exatamente o valor. Nessa mesma linha, para Carlos Magno Paiva (2015, p. 40), “os bens culturais possuem um significado atribuído pelo ser humano, referem-se ao ser humano e são relevantes para o ser o humano”. Dessa feita, não existe bem cultural de valor intrínseco; o que existe é uma prática social de atribuição de valor e significado a coisas. Esse entendimento é relevante para assentar que, em matéria de proteção e políticas públicas culturais nos processos de