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1 DIREITOS CULTURAIS E PATRIMÔNIO CULTURAL NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE

1.7 Quem são os sujeitos do direito cultural coletivo ao patrimônio cultural imaterial: indígenas, quilombolas e comunidades

tradicionais como grupos formadores da sociedade brasileira O Estado Sociocultural Democrático de Direito, inaugurado pela Constituição Federal de 1988, é diverso, multicultural, pluriétnico. Por essa razão, assegura direitos coletivos específicos a coletividades sociais, a fim de garantir a igualdade material entre os diferentes grupos formadores da sociedade brasileira. A situação de presumível vulnerabilidade social, econômica, ambiental e cultural, fez com que a Constituição de 1988 ampliasse a proteção dos direitos fundamentais a outros grupos sociais historicamente excluídos da garantia de benefícios sociais e recursos materiais para sobrevivência mínima, existência digna e continuidade de suas práticas e especificidades culturais.

Dessa maneira, os direitos culturais coletivos para certos grupos sociais são o que Inês Virginia Soares (2009, p. 76) denomina de direitos de desigualdade, direitos conferidos à diversidade de coletividades para equilibrar relações sociojurídicas desiguais. O pressuposto desses direitos é uma noção, dentro do princípio da igualdade, de direito à diferença, em geral reivindicado por grupos que lutam por ter reconhecida ou manter suas particularidades culturais, seus modos de vida, sua identidade etc.

Como dimensão da igualdade, o direito à diferença significa que todos são merecedores de igual dignidade, ainda que existam identidades coletivas heterogêneas, porém nem sempre as regras jurídicas que são válidas para um alcançam a todos. Na concepção multicultural de Boaventura de Sousa Santos (2003, p. 458), igualdade e diferença não são princípios opostos, pois “temos o direito a ser iguais quando a diferença nos inferioriza; temos direitos a ser diferentes quando a igualdade nos descaracteriza”. Nessa acepção, a igualdade inclui um maior número de

36 Tradução livre do original em espanhol: “[…] muy nítida la necesidad de

definir si la titularidade de los derechos que protege corresponde que sean exigidos ya no sólo por invididuos sino por comunidades”.

sujeitos, destacados por circunstâncias específicas ou por particularidades cujas postulações requerem uma proteção diferenciada.

No caso dos direitos culturais, o critério que rege o direito à diferença é a referência cultural, isto é, os valores pelos quais esses grupos mobilizam sua memória coletiva, transmitem suas tradições, criam, dão continuidade aos seus saberes, fazeres e viveres, estabelecem contatos, cruzamentos, intercâmbios e fronteiras com outros e se organizam socialmente.

O direito à diferença é revelador, assim, da diversidade cultural humana. Para a Convenção da Diversidade Cultural de 2005, conforme o artigo 4 (1), ela é a maneira pela qual uma multiplicidade de formas culturais coletivas se manifesta, cuja transmissão ocorre no interior de grupos e sociedades, mas também na interculturalidade. O patrimônio cultural, então, seria o meio privilegiado dessas expressões e transmissões, assim, também, motor dos ciclos de criação, formação, produção e reprodução de novos bens culturais, quaisquer que sejam os meios empregados para esse fim.

Assim, a diversidade desnuda a expressão das identidades humanas, seus inúmeros traços culturais distintivos, mas, igualmente, as hegemonias sociais e as tendências homogeneizadoras que portam consigo, ainda, noções como assimilacionismo e colonialismo.

Dessa forma, a proteção do patrimônio cultural imaterial é o reflexo do reconhecimento do compartilhamento de valores de referência comunitária a um ou mais grupos, ou da sociedade em seu sentido mais abstrato e geral, e, em alguns casos, até da humanidade. Pelos bens culturais, em particular através dos imateriais, identificam-se os integrantes de um grupo social, visualizam-se as fronteiras étnicas entre uns e outros, processos de exclusão e inclusão (BARTH, 2011, p. 188) nos quais se permite saber quem faz parte da comunidade, que bens são a ela vinculadas, quem são os terceiros interessados em com ela se relacionar, seus bens acessar etc. (LIXINSKI, 2013, p. 219).

Os bens culturais imateriais são as representações dos elos espirituais (sensoriais) da cultura com o seio comunitário. É, em regra, em grupos sociais determinados que expressões, conhecimentos, práticas, técnicas também são veículos não apenas de suas aspirações coletivas mais específicas e particulares, mas, igualmente, de reivindicações de titularidade sobre o legado que esse patrimônio cultural imaterial representa. Isso porque se veem como responsáveis por sua transmissão, continuidade e proteção, ainda que somente um de seus membros, parte da comunidade agindo em conjunto, ou uma ou mais pessoas empreguem o PCI em alguma atividade específica (SAMBUC, 2003, p. 220). Todos

são titulares; todos participam da vida coletiva em que mais do que marcas do passado, o PCI é mobilizado e constantemente recriado nos atos de transmissão entre gerações; de alguma forma, toda comunidade está sempre envolvida, qualquer afetação, dano, apropriação ou violação aos bens culturais imateriais é sempre uma violação dos direitos culturais coletivos desses grupos, atos atentatórios contra seu próprio sistema de valores e de sua própria existência.

Não à toa que esses grupos são chamados de guardiões, depositários, comunidades de custódia ou fideicomissários do patrimônio cultural imaterial, pois além de serem exímios conhecedores de seus elementos essenciais, colocando-os na prática viva de seus cotidianos, exercem sobre ele algum tipo de controle e domínio que limita o interesse ou a apropriação de terceiros, estranhos à coletividade, em utilizá-los e disporem deles de maneira dissociada dos contextos, valores de uso e de troca assentidos na vida comunitária e no sistema social particular.

Há, portanto, existência não apenas do vínculo comunitário na constituição do patrimônio cultural imaterial, mas também de pessoas e comunidades como fonte de produção, ou seja, as bases originárias para sua criação. É nessa acepção dinâmica, calcada no diálogo intertemporal entre passado, futuro e presente, no significado dos valores de proteção e na solidariedade intergeracional, e na diversidade, que as comunidades, seus membros – ainda que não participem ativamente de sua proteção – , mantêm vivo um patrimônio cultural.

Vale destacar que sob essa ótica é de se admitir que, sobre o patrimônio cultural, repousam dois tipos de interesses (meta) transindividuais; um coletivo primário dos “depositários” e das “comunidades locais”, cuja relação com os bens culturais é de maior proximidade, já que fazem parte da sua vivência cotidiana, e um difuso, oriundo de um escalonamento para o interesse mais geral e comum de qualquer pessoa em função do valor referencial que possui. A participação comunitária na designação do patrimônio cultural põe em relevo, no mesmo patamar, enquanto obrigação do Estado, a proteção, contra apropriação indevida por terceiros, de expressões e conhecimentos culturais tradicionais do PCI.

Porém, a quem se é referido juridicamente quando se mencionam “comunidades”, “grupos”, “populações tradicionais”, “povos” detentores desse patrimônio cultural? Quem são esses sujeitos coletivos?

As terminologias acima são empregadas para designar um significativo número de grupos heterogêneos, incluindo minorias étnicas, religiosas ou nacionais, nos quais há também um pluralismo interno (SHIRAISHI NETO; DANTAS, 2008 p. 123). Essa diversidade concreta,

terminológica e conceitual também está presente na Constituição Federal, na legislação brasileira e internacional. É difícil identificar princípios comuns referentes a esses sujeitos, ainda mais quando o próprio Direito utiliza termos distintos para designar situações similares, induzindo a uma diferença somente aparente. Isso implica também que uma mesma norma pode se aplicar a uma pluralidade de grupos diferentes, quando esses sujeitos estão juntos sob signos designativos mais abrangentes, mormente as normas constitutivas e atributivas de direitos.

Em geral, esses grupos partilham de uma identidade cultural comum, cuja consequência mais expressa é o reconhecimento mediante um direito de autoatribuição de seus traços distintivos e particulares. Essa identidade é responsável por sua organização social e por empreender lutas contrahegemônicas contra padrões socionormativos dominantes dos modos de vida em sociedade. Por serem espoliados sistematicamente de seus modos de criar, fazer e viver, e por serem alvos do assimilacionismo ou de situações críticas de violações de direitos humanos que são responsáveis por seu genocídio, extermínio, e/ou desaparecimento, desintegração, pauperização, discriminação e criminalização, esses grupos são tidos presumidamente como vítimas de uma vulnerabilidade jurídico-social, e, de outra forma, podem se encontrar também em situação de hipossuficiência.

O patrimônio cultural imaterial é idiossincrático. Sua proteção está intimamente relacionada com a imprescindibilidade da identidade cultural para a existência desses grupos. Protegê-lo é proteger igualmente seus grupos detentores, seus modos de vida particulares e assegurar sua continuidade (LIXINSKI, 2013, p. 146).

Segundo o sociólogo Manuel Castells (1999), identidade é um processo construtivo de atribuição de significados culturais, cuja interrelação faz que uma fonte de significação prepondere sobre outras. Para ele (1999, p. 22-28), há três tipos de identidade: a legitimadora, a resistência e projeto. A princípio, a identidade legitimadora é aquela na qual esse processo de construção de significados se racionaliza e se impõe como traço dominante, homogêneo, tal qual acontece na formação dos Estados-nacionais. A identidade resistência estaria mais próxima da ideia de grupos que desempenham lutas contrahegemônicas frente à exclusão discriminadora, em que a reação positiva é manifesta em reivindicações de valorização, reconhecimento. Nesse último caso, uma identidade de resistência pode um dia vir a se tornar uma identidade legitimadora. Complementar ao sentido primeiro de identidade de resistência, a identidade projeto é aquela na qual esses grupos se caracterizam como sujeitos de direitos coletivos, e procuram se inserir na arena pública dos

debates e da participação política no Estado.

Independentemente do caráter político-social da classificação, esses grupos, além de possuírem identidades resistência e de projetos, possuem traços distintivos culturais comuns fundamentais para desempenhar a proteção de seus direitos coletivos como o do patrimônio cultural imaterial. Essa singularidade não significa que são guetos, grupos fechados, em isolamento ou “ilhas pelágicas” (BARTH, 2011, p. 211). Há, no entanto, um pressuposto de que, embora construída a partir da comunicação, interação e intercâmbio com outros grupos, a identidade cultural permanece com traços que os distinguem uns dos outros e cuja manutenção depende muito mais da delimitação de fronteiras, que permitem identificar critérios de pertencimento declarados pelos próprios grupos, e não constituídos por fatores comparativos entre eles, apesar de suas interdependências positivas. Por isso, as distinções não se dão por uma suposta ausência de contato com outros grupos, pois as interações sociais são dados permanentes. De fato, o que importa perceber é que, apesar das transformações, mudanças, interações, o grupo permanece como unidade significativa em razão das próprias diferenças.

Segundo Fredrik Barth (2011, p. 195), “se um grupo conserva sua identidade quando os membros interagem com outros, isso implica critérios para determinar a pertença e meios para tornar manifestas a pertença e a exclusão”. Esses limites podem persistir, mesmo com mudanças nas formas de organização social ou diásporas. Porém, há partes imunes mesmo diante do contato, que permitem demarcar sua atribuição como as diferenças, para o grupo, mais relevantes, a padronização de um conjunto de valores em seu interior e uma estabilidade perene mesmo no intercâmbio do sistema social mais abrangente (BARTH, 2011, p. 200-201).

Essas identidades culturais têm relativa autonomia ao Estado. Com suas estratégias discursivas e lutas contrahegemônicas, buscam impedir limitações, violações ou negações a seus direitos decorrentes de discriminações negativas sistemáticas e pontuais pela sociedade em geral, ainda que muitas vezes sua participação na sociedade política seja prejudicada por um déficit de cidadania e representatividade também ocasionada pelas relações sociais em desigualdade.

Por essa razão, segundo Axel Honneth (2003, p. 29), a luta por reconhecimento é uma forma de pressão no interior das sociedades que exigem das instituições respostas práticas e políticas. Conforme a definição de Honneth (2009, p. 156), essas lutas são “moralmente motivadas de grupos sociais, sua tentativa de estabelecer institucional e culturalmente formas ampliadas de reconhecimento recíproco, aquilo por

do qual vem a se realizar a transformação normativamente gerida das sociedades”. Assim, apesar de a modernidade ter universalizado a igualdade (formal) nos sistemas jurídicos, tendo todos os seres humanos o mesmo status de partilha da dignidade como atribuição comum nas relações jurídicas, o reconhecimento também se dá no âmbito da solidariedade dessas relações, no qual além do respeito produzido pelo atributo da igualdade, há de se referir, da mesma forma, à estima social positiva de um conjunto de características particulares e concretas (HONNETH, 2009, p. 198). Na ótica de Axel Honneth (2009, p. 210),

[...] estimar-se simetricamente nesse sentido significa considerar-se reciprocamente à luz de valores que fazem as capacidades e propriedades do respectivo outro aparecer como significativas para a práxis comum. Relações dessa espécie podem se chamar ‘solidárias’ porque elas não despertam somente a tolerância para com a particularidade individual da outra pessoa, mas também o interesse afetivo por essa particularidade: só na medida em que eu cuido ativamente de que suas propriedades, estranhas a mim, possam se desdobrar, os objetivos que nos são comuns passam a ser realizáveis.

No caso desses grupos sociais que partilham uma mesma identidade cultural, há um constante enfrentamento para manutenção de seus modos de vida e suas referências culturais e simbólicas. Daí o patrimônio cultural imaterial declarado pelos mecanismos e instrumentos enunciados pelo Estado possuir a função de reconhecer não apenas os bens culturais imateriais desses grupos, mas servir de meio de elevação e valorização da estima social por meio do reconhecimento.

Isso porque a imprescindibilidade do reconhecimento é engendrada por formas de desrespeito a esses sujeitos. A primeira forma é a privação, denegação das pretensões jurídicas às quais esses grupos teriam direito simplesmente por integrarem a sociedade em igual valor com os seus demais membros. Lesados na sua condição de sujeitos de direito, não há apenas uma perda moral de autorrespeito como, consequentemente, a impossibilidade de se autorreferir como iguais. Do mesmo modo, esse desrespeito tem uma segunda implicação na estima social que o grupo tem perante aos demais da sociedade e a si mesmo; o valor negativo e depreciativo às suas características, aos seus sistemas de valores, representa um rebaixamento social da sua capacidade de autodeterminação e autonomia para conduzir seus destinos e modos de

vida da maneira positiva, como por si mesmos entendem (HONNETH, 2009, p. 216-218).

O reconhecimento desses grupos é importante para afastar o negligenciamento de forma solidária a produzir sua autoestima, bem como sua estima social perante outros grupos. Para tanto, não obstante o respeito à diferença dos valores na forma do reconhecimento, a participação social em condições de igualdade se deve também dar em condições materiais de justiça social (BAUMAN, 2003, p. 72; FRASER, 2008). Assim, também, a proteção de bens culturais imateriais é uma questão de como a desigualdade material desses sujeitos coletivos afeta sua continuidade, transmissão, difusão intergeracional e compromete a sua própria existência. Por isso, o reconhecimento dos sujeitos também deve tomar em conta as disparidades sociais e econômicas que afligem esses grupos e identificar suas necessidades a fim de, equanimemente, equilibrar relações jurídicas desiguais.

Em regra, esses grupos são vítimas tanto de violações aos seus direitos culturais em razão de seu status social representado pelos seus modos particulares de vida, quanto da brutal desigualdade da distribuição equânime dos recursos e bens econômicos em sociedade. Por isso, diante da hibridização das injustiças (FRASER, 2008, p. 174-178), qualquer equilíbrio em relações jurídicas com esses sujeitos deve pautar-se em seu reconhecimento, mas, igualmente, na superação das condições socioeconômicas, o que se denomina de redistribuição. Por isso, a presunção jurídica de sua vulnerabilidade.

Isso não indica a capacidade política, jurídica e de organização desses grupos para fazer frente a denegações, desrespeitos a seus direitos culturais, ou de se mobilizar para reivindicações, mas significa que, diante de situações desiguais, socioeconômicas e culturais, nas quais, numa relação jurídica com terceiros, há também desequilíbrio de poder, o Estado deve intervir para criar paridade horizontal entre essas partes. Relaciona-se com a vulnerabilidade, via de regra, a hipossuficiência desses sujeitos, que é a constatação da insuficiência de recursos materiais para satisfação, proteção ou defesa de seus direitos e interesses. Tanto uma quanto a outra podem ser combatidas pelo reconhecimento legal ou disponibilização do Estado de meios infraestruturais, econômicos, sociais e culturais que os ponham em condições de paridade numa relação jurídica, e não deixe em situação de fragilidade o bem jurídico em questão. Para Eliane Moreira (2006, p. 110)

Vulnerável é a condição de quem está sujeito a um poder maior, e com poucas condições de resisti-lo. Se todos os povos tradicionais são vulneráveis, é

certo que nem todos são hipossuficientes. Serão hipossuficientes quanto mais extrema for a relação de poder exercido como dominação, isto é, hipossuficiente será o povo que se encontrar em circunstância de extrema desvantagem da qual, com esforço razoável, não seria capaz de sair. Imagine-se, por exemplo, um povo cujas crianças estão morrendo de fome e que é procurado por uma empresa que se propõe a utilizar seus saberes, mas que não pretende obedecer a todos os ditames legais.

Em decorrência tanto da vulnerabilidade, quanto da hipossuficiência impõe-se ao Estado o dever de intervir, com a finalidade de re-equilibrar, ao menos artificialmente, a relação, devendo, quando estiver perante interesses de sujeitos hipossuficientes, ir para além do papel de ‘fiel da balança’ a fim de que exija da outra parte esforços que permitam a defesa dos interesses desses povos, é o caso a inversão do ônus da prova, quando necessária à defesa de um direito cultural. Essas características mais gerais desses grupos são importantes para, diante da litigiosidade constante entre interesses econômicos das indústrias culturais, dos empreendimentos turísticos, da indústria do entretenimento, e os representados por esses sujeitos coletivos, se considerar, para efeitos da constatação da apropriação indevida de um patrimônio cultural imaterial específico, as formas de participação pretérita no controle daquilo que eles podem identificar como lesão, ameaça, ou dano aos seus bens culturais imateriais, e exigir do Estado providências para equilibrar relações travadas com terceiros, mediante o respeito às suas identidades culturais, sua autodeterminação, sua autonomia e sua condição social.

Ainda assim, traçadas essas características elementares dos grupos detentores do patrimônio cultural imaterial (compartilhamento de uma identidade cultural comum, autoatribuição identitária, reivindicação de reconhecimento jurídico-social e redistribuição de bens socioeconômicos, e vulnerabilidade e hipossuficiência sociocultural), resta aclarar sua identificação legislativa concreta. Adverte-se, por conseguinte, que essa sistematização será tratada de forma ampla, sem adentrar nas especificidades das heterogeneidades e forma de organização social de cada grupo ou definição jurídica representativa dessas coletividades. Far- se-á apenas um esboço geral de suas definições e direitos que se

apresentam como mecanismo do exercício de controle coletivo sobre seus bens culturais imateriais.

Em relatório da UNESCO para implementação da Convenção para Salvaguarda do PCI de 2003 (2006, p. 9), apresenta-se uma definição não vinculante de comunidade e outra para grupos, tendo em vista a noção de identidade e que a própria Convenção, apesar de tratá-los como sujeitos coletivos, não traz qualquer tipo de definição.

Comunidades são redes de pessoas cujo senso de identidade ou conexão emerge de uma relação histórica compartilhada que está enraizada na prática e transmissão, ou envolvimento, com seu patrimônio cultural imaterial.

Grupos compreendem pessoas dentro de uma ou em várias comunidades que compartilham características como competências, experiências e conhecimentos especiais, e, assim, realizam funções específicas nas práticas presentes e futuras de recriação e/ou transmissão do seu patrimônio cultural imaterial como, por exemplo, curadores, praticantes ou aprendizes37.

Além do elemento agregador da identidade cultural, conforme essas definições, esses sujeitos coletivos se diferenciam pelos papéis que desempenham na função de transmissão, continuidade e mutabilidade criativa do PCI. Assim como o patrimônio cultural imaterial é mutável, essas identidades também se modificam e, embora estejam vezes atribuídas a determinados territórios, podem se encontrar em diversos locais pelos quais esses sujeitos passaram (CABRAL, 2011, p. 42), transcendendo as fronteiras dos Estados nacionais em alguns casos.

A Constituição Federal de 1988, como visto, muito pelas pressões sociais que esses grupos fizeram durante a Assembleia Nacional Constituinte – ANC, determinou, após garantir a todos os direitos

37 Tradução livre do original em inglês: “Communities are networks of people

whose sense of identity or connectedness emerges from a shared historical relationship that is rooted in the practice and transmission of, or engagement with, their ICH; Groups comprise people within or across communities who share characteristics such as skills, experience and special knowledge, and thus perform specific roles in the present and future practice, re-creation