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SUMÁRIO ... 35 INTRODUÇÃO ... 37 1 DIREITOS CULTURAIS E PATRIMÔNIO CULTURAL NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 ... 55 1.1 Labirintos entre cultura e direito ... 56 1.2 Direitos culturais como direitos fundamentais ... 62 1.3 Tríade artes-memória coletiva-fluxo de saberes/ fazeres/viveres e transtemporalidade ... 82 1.4 Direitos culturais nas dimensões de direitos fundamentais ... 92 1.5 Princípios dos direitos culturais na Constituição Federal de 1988 ... 113 1.6 As dimensões do (direito ao) patrimônio cultural ... 124 1.7 Quem são os sujeitos do direito cultural coletivo ao patrimônio cultural imaterial: indígenas, quilombolas e comunidades

tradicionais como grupos formadores da sociedade brasileira ... 142 2 HISTÓRIA DA PROTEÇÃO DO PATRIMÔNIO CULTURAL BRASILEIRO: O LUGAR DO IMATERIAL ... 167 2.1 A proteção do patrimônio cultural no Brasil: um histórico de ausências do imaterial ... 169 2.2 O Anteprojeto Macunaímico de Mário de Andrade e a cultura popular ... 182 2.3 Aloisio Magalhães e o “triunfo” das culturas e referências populares ... 200 2.4 A cultura popular e o folclore sob as lentes da propriedade intelectual ... 211 2.5 A Carta de Fortaleza de 1997: direcionamentos para

regulamentação do Registro ... 223 3 O REGISTRO COMO MECANISMO DE PROTEÇÃO DO PATRIMÔNIO CULTURAL IMATERIAL ... 229 3.1 A Comissão e o Grupo de Trabalho do Patrimônio Imaterial e a formatação do Decreto nº 3.551/2000 ... 229 3.2 Adequação ou inadequação da figura normativa do Decreto para o Registro do PCI: o princípio de juridicidade na

concretização constitucional do patrimônio cultural ... 251 3.3 O processo do Registro do Patrimônio Cultural Imaterial do Decreto nº 3.551/2000 ... 267 3.3.1 Os requisitos materiais da continuidade histórica e da relevância nacional ... 285

3.3.2 Princípios do Registro: mínima intervenção e participação popular ... 294 3.4 Efeitos jurídicos do Registro ... 314 3.4.1 Efeitos Imediatos Explícitos Declaratórios ... 318 3.4.2 Efeitos Mediatos Implícitos Constitutivos ... 336 4 OS USOS DO REGISTRO DO PATRIMÔNIO CULTURAL IMATERIAL PARA RECONHECIMENTO DE DIREITOS INTELECTUAIS COLETIVOS: O QUE DIZEM OS PROCESSOS ADMINISTRATIVOS DO IPHAN ... 349 4.1 Aspectos gerais dos processos administrativos do Registro do PCI – Guia de análise ... 352 4.2 As disputas no Livro das Formas de Expressão ... 376 4.2.1 O caso da apropriação indevida da Arte Kusiwa – Pintura

Corporal e Arte Gráfica Wajãpi ... 376 4.2.1.1 Os direitos autorais modernos e a Portaria da FUNAI sobre direitos autorais indígenas como solução ... 387 4.2.1.2 Jurisprudência: as expressões tradicionais e o domínio público ... 401 4.2.2 O caso do Samba de Roda do Recôncavo e a repatriação de acervos ... 404 4.3 As disputas no Livro dos Saberes ... 410 4.3.1 A propriedade intelectual contra o patrimônio cultural imaterial: o caso da Viola-de-Cocho ... 410 4.3.2 O caso do Ofício das Baianas de Acarajé ... 418 4.3.3 O caso da Produção Tradicional e das Práticas Socioculturais associadas à Cajuína do Piauí e o Refrigerante de Caju ... 427 4.4 Antropofagia da propriedade intelectual: os bens culturais imateriais registrados no INPI ... 433 4.4.1 O caso do Ofício das Paneleiras de Goiabeiras ... 455 4.4.2 O caso do Modo Artesanal de Fazer Queijo de Minas ... 458 CONCLUSÃO ... 465 REFERÊNCIAS ... 473

INTRODUÇÃO

A centralidade da cultura no mundo contemporâneo explica-se, dentre outras razões, pela importância social, valorativa e econômica que certos elementos seus possuem na vida em sociedade ou mesmo para o sistema econômico. Conhecimentos, saberes, informações, expressões, obras intelectuais, invenções, inovações, tecnologias, bens, conteúdos, atividades e serviços culturais são representativos do aspecto intangível, imaterial, dos processos de formação, produção e reprodução cultural dos seres humanos.

Um ou outro aspecto mais evidente faz com que cientistas sociais procurem classificá-la de acordo com a preponderância de suas razões teóricas na observação das sociedades atuais. Assim, por exemplo, fazem Manual Castells (2011), com os conceitos de sociedade da informação e sociedade informacional para designar o papel crucial que a informação desempenha nas sociedades atuais, no primeiro caso, e, no segundo, para acentuar a informação como insumo da produtividade e das inovações tecnológicas, ou André Gorz (2005, p. 59), para quem o atual estágio do sistema econômico permite afirmar que se está diante de um capitalismo do conhecimento no qual há abundância do capital intelectual humano transformado em escassez artificial pela apropriação monopolística e exclusivista dos saberes. O mesmo ocorre com os termos economia criativa, economia do conhecimento, sociedade do conhecimento, sociedade da inovação etc.

Em quaisquer casos, percebe-se que, tanto no aspecto da produção da riqueza, quanto no mundo da vida, esses elementos são associados a uma característica comum: a imaterialidade. Os componentes intangíveis da cultura não se restringem ou se circunscrevem a valores simbólicos ou sistema de significados, mas podem igualmente aludir à categoria de bens jurídicos que também possuem funcionalidade econômica aplicada a outras searas que não necessariamente a do desenvolvimento humano em seu sentido espiritual. Nesse caminho, a imaterialidade se transforma em mercadoria, objeto de pecúnia, criando-se alterações em valores de uso e troca comumente adotados em práticas cotidianas e sistemas de significações que extrapolam os interesses de mercado. Vezes se transfigura em monopólio na forma de propriedade individual de alguém, ainda que tenha por base ou origem bens coletivos ou comuns.

Apesar de frequentemente ser ressaltada a imaterialidade no âmbito das transformações e mudanças tecnológicas, ela é foco de uma categoria de bens jurídicos cujo interesse reside na sua importância para definição da identidade, resguardo da memória, manutenção da

solidariedade e responsabilidade entre gerações para transmissão dos valores e saberes que portam, e continuidade da existência histórica e da sobrevivência material de comunidades, grupos e indivíduos. É o chamado patrimônio cultural imaterial (PCI).

Essa dimensão do patrimônio cultural é alvo de conflitos e disputas entre aqueles para os quais seus bens são referências culturais para que se instituam uma identidade cultural e uma memória coletiva, fonte de subsistência comunitária, e aqueles que os veem como potencialidades de um valor monetizado em formato de produto. Contudo, esse desequilíbrio gravitacional em torno dos bens culturais imateriais nem sempre ocorreu, é fruto do pós-Segunda Guerra, de duas consequências contraditórias da valorização do imaterial: aumento da visibilidade do PCI de grupos humanos e crescente interesse sobre usos e exploração desses bens.

Particularmente, a ampliação da noção de patrimônio cultural está associada ao ingresso de novos tipos de bens culturais e valores de sujeitos historicamente excluídos ou negados nos processos de patrimonialização. Sabe-se que os Estados nacionais modernos na formação de sua identidade catalogavam como bens merecedores de proteção estatal os integrantes do patrimônio cultural material: monumentos, imóveis, coleções, que, pelos critérios de valorização, simbolicamente representavam singularidade e excepcionalidade e se reportavam culturalmente às elites políticas, à aristocracia, à classe burguesa ou aos intelectuais.

Portanto, o que se concebe hoje como patrimônio cultural imaterial era associado à cultura popular, às expressões, aos conhecimentos e às técnicas das classes sociais trabalhadoras, de grupos minoritários no interior dos Estados nacionais, de povos colonizados ou escravizados ou de suas descendências, de grupos étnicos e tradicionais que viviam à margem da garantia dos direitos de cidadania e de outros direitos humanos. Não havia qualquer interesse maior manifesto nesses bens porque eram invisibilizados pela desigualdade, pelo racismo, pela discriminação e pela eliminação física dos sujeitos responsáveis por sua transmissão e continuidade. Assim, também, não havia sobre eles qualquer interesse econômico dos atores do mercado, senão pelas marcas do exotismo.

Após a Segunda Guerra, com o fim do colonialismo em muitos países, a universalização dos direitos humanos, as lutas e a reivindicações de direitos de liberdade, econômicos, sociais e culturais e de solidariedade, como o direito ao próprio patrimônio cultural, esses povos, grupos e comunidades tradicionais começaram a demandar a mesma dignidade e isonomia na garantia de salvaguarda de seus bens culturais,

em sua maior parte marcados pela oralidade, por expressões e conhecimentos tradicionais mobilizados temporalmente; começaram a exigir do Estado o mesmo estatuto de proteção conferido aos bens culturais materiais dos segmentos sociais majoritários e hegemônicos. Demandaram, portanto, o reconhecimento e a valorização de seus bens culturais, bem como a atribuição de seus direitos sobre eles. Contraditoriamente, a maior visibilidade desses bens de natureza processual, viva, dinâmica e mutável, representou, com a crescente intangibilidade do sistema econômico, um maior interesse na sua apropriação privada.

Dessa feita, a ampliação da noção de patrimônio cultural é, em grande medida, decorrente do reconhecimento e da defesa de direitos culturais (FONSECA, 2005, p. 70). No âmbito constitucional brasileiro, a expressão “direitos culturais”, compreendida como direitos fundamentais de todos, aparece pela primeira vez na Constituição Federal de 1988 juntamente com a dimensão imaterial do patrimônio cultural evidenciada.

Esse marco normativo é uma guinada histórica no processo de patrimonialização dos bens culturais reconhecidos pelo Estado, muito em decorrência da cidadania ativa que protagonizou a Assembleia Nacional Constituinte, incluindo os valores de sujeitos coletivos como referências culturais integrantes do patrimônio cultural material e imaterial brasileiro. Povos indígenas, quilombolas, grupos afrodescendentes, comunidades tradicionais, cientistas sociais, folcloristas, organizações não- governamentais, órgãos de proteção e preservação do patrimônio garantiram a inserção dos direitos culturais no texto constitucional como resultado do reconhecimento do pluralismo e da diversidade cultural brasileira.

A Constituição Federal de 1988 é considerada Constituição Cultural, inauguradora de um Estado Sociocultural Democrático de Direito, por possuir conjunto de normas, princípios, direitos, diretrizes político-programáticas e garantias, relacionado ao âmbito autônomo da área da cultura, que, juntamente com os âmbitos ambiental, político, social e econômico, aliados à democracia, qualificam o Estado brasileiro (MORENO, 2003, p. 137-152). Em outro sentido, o desenvolvimento social e humano dos cidadãos e dos grupos formadores da sociedade brasileira está assentado na difusão da cultura enquanto fator de fortalecimento democrático.

No artigo 216 da Constituição Federal de 1988, estabeleceu-se a indivisibilidade entre as dimensões material e imaterial do patrimônio (BARBOSA, 2015, p. 82). Assim também, seus bens culturais integrantes

são os portadores de referência cultural à memória, à ação e à identidade de quaisquer dos grupos formadores da sociedade brasileira. Além da ampliação da noção de patrimônio cultural, com a inclusão dos bens culturais de natureza imaterial, ampliaram-se igualmente os mecanismos e instrumentos previstos para sua proteção, quais sejam inventários, registros, vigilância e outras formas de acautelamento e preservação (§ 1º do artigo 216), transcendendo a figura do tombamento, exigindo-se a colaboração da comunidade com o Estado na sua proteção. A previsão de um maior número de instrumentos corresponde à ideia basilar de que, a depender da natureza do bem, exige-se um mecanismo ou instrumento adequado.

No caso do patrimônio cultural imaterial, esse instrumento corresponde ao Registro dos bens culturais de natureza imaterial. Porém, a regulamentação do instituto só adveio mais de dez anos após a promulgação da Constituição de 1988, com a edição do Decreto nº 3.551, de 04 de agosto de 2000, que disciplinou diretamente o mecanismo prescrito § 1º no art. 216, e criou o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial – PNPI. Atualmente, segundo o Banco de Dados de Bens Culturais Imateriais Registrados, até o fechamento desta tese, o Brasil possui 40 bens registrados, e cerca de 20 em processo de reconhecimento. Após mais de quinze anos de vigência e prática do Registro, são poucos ou quase inexistentes as pesquisas jurídicas, trabalhos acadêmicos de todos os níveis do ensino superior do Direito no Brasil, e referências bibliográficas da ciência jurídica a seu respeito. Em sua maior parte, as teses, dissertações, e monografias sobre o mecanismo são oriundas da antropologia social, da história, da sociologia, quando não produzidas por servidores da autarquia federal de proteção do patrimônio cultural no Brasil, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN. Ainda assim, privilegiam estudos de caso de bens culturais imateriais registrados ou a prática administrativa das ações e políticas de salvaguarda do IPHAN.

As inquietações sobre os efeitos e as lacunas do Decreto nº 3.551/2000 acompanham as pesquisas que se desenvolveram desde a graduação em Direito na Universidade de Fortaleza, principalmente sobre as relações de proximidade e as diferenças entre o Registro e o Tombamento. No aspecto social, viu-se que em Estados e Municípios que replicavam a norma federal para salvaguarda de seus bens imateriais defensores do patrimônio cultural enfrentavam situações jurídicas nas quais acreditavam que o Registro teria efeitos limitadores semelhantes ao tombamento, porém os entes federados sempre arguiam em sua defesa a ideia de que o mecanismo apenas criava obrigações de reconhecimento e

fomento aos órgãos culturais, nada podendo fazer em relação às violações que sempre demandavam dos poderes locais muito mais do que financiar ações e projetos de salvaguarda.

Além disso, muitas vezes, a formulação de análises jurídicas sobre o Registro circunscreve-se à descrição de seus procedimentos ou à identificação da natureza do seu objeto de proteção, ignorando as problemáticas sobre os efeitos decorrentes de sua aplicação. Isso porque, embora concebido como mecanismo declaratório de reconhecimento e valorização do patrimônio cultural imaterial, desde a sua concepção estabeleceu-se certa confusão acerca dos seus efeitos jurídicos entre o IPHAN e os atores sociais que viriam posteriormente a ter suas práticas, lugares, expressões e conhecimentos tradicionais declarados e titulados como pertencentes ao patrimônio cultural brasileiro, denominados detentores.

Entende-se por detentores o universo heterogêneo de comunidades, grupos, povos e indivíduos que, historicamente, ao longo de gerações, possuem uma relação direta com o bem cultural imaterial registrado, para quem é referência cultural, mobilizando, acionando e transmitindo conhecimentos específicos na dinâmica de formação, produção e reprodução cultural do PCI (VIANNA et al., 2014, p. 9; SAMBUC, 2003, p. 44). Além dos bens culturais imateriais, inevitavelmente, o Registro reconhece seus detentores não apenas como sujeitos para quem o patrimônio é referente, mas como sujeitos de direito ao próprio patrimônio cultural. Em regra, sua conformação e organização social são coletivas e indivisíveis. A eles são atribuíveis direitos fundamentais de natureza coletiva, como certas espécies de direitos culturais.

Essa visão desafia o sujeito de direito da modernidade, no qual o indivíduo geral, universal e abstrato possui centralidade no sistema jurídico, mormente em sua relação com coisas, bens jurídicos, em condições de igualdade formal, abstraído das situações factuais, econômicas e culturais, potencialmente proprietário. Pois, de outra forma, possuem formas particulares de se relacionarem com os bens culturais imateriais, de acordo com suas próprias representações, usos e modos de vida, em lógica distinta do sujeito de direito moderno individual e proprietário (SHIRAISHI NETO; DANTAS, 2008 p. 124-125).

Esses sujeitos de direitos coletivos, detentores do patrimônio cultural imaterial, de modo geral, adotam, ao lado ou apesar do direito estatal, um direito costumeiro que, por definição, são normas sociais cimentadas em sua cosmovisão, integradas pela dimensão econômica, social, cultural e espiritual da sua organização social (SAMBUC, 2003,

p. 47). Trata-se dos direitos consuetudinários de sujeitos coletivos oprimidos cujas reivindicações por reconhecimento são resistências frente às culturas e padrões homogeneizantes (BENSAID, 2017, p. 63).

Os detentores alimentaram com o Registro a expectativa de que o instrumento fosse constitutivo de direitos sobre os bens, não apenas limitado à declaração de reconhecimento e valorização do bem cultural imaterial. Essa ótica se potencializou na prática das ações e planos de salvaguarda pós-Registro, mas permeia a história de sua formulação pelo Grupo de Trabalho do Patrimônio Imaterial e pela Comissão do Ministério da Cultura, ao final da década de 1990, em que surgiram propostas de que o mecanismo constituisse direitos intelectuais coletivos sobre os bens culturais imateriais registrados, especialmente expressões e conhecimentos tradicionais.

Na acepção aqui empregada, por direitos intelectuais coletivos compreendem-se aqueles de titularidade coletiva, indivisíveis, imprescritíveis, inembargáveis, impenhoráveis e intransferíveis, dos detentores sobre bens culturais imateriais registrados sob formas de expressão e modos de saber-fazer, conhecimentos tradicionais, associados ou não a bens materiais, produtos e resultados de suas dinâmicas, exercidos de acordo com as regras do seu direito costumeiro, cuja violação representa danos coletivos (SAMBUC, 2003, p. 203). Apesar de não existir legislação própria com essa proteção, a definição não elimina essa necessidade2. Outra coisa distinta, é o que se denomina de propriedade intelectual convencional (PI), monopólios na forma de direitos relativos, eventualmente de titularidade individual, conforme a Convenção da Organização Mundial da Propriedade Intelectual,

[...] às obras literárias, artísticas e científicas, às interpretações dos artistas intérpretes e às execuções dos artistas executantes, aos

2 Adverte-se, desde já, que não se está tratando dos sistemas sui generis de

proteção a conhecimentos tradicionais associados ao patrimônio genético e à biodiversidade, disciplinados pela Convenção da Diversidade Biológica e pelo seu suplemento o Protocolo de Nagoya sobre Acesso a Recursos Genéticos e Repartição de Benefícios decorrentes da sua utilização, tampouco da Lei brasileira nº 13.123, de 20 de maio de 2015 que regulamenta a Convenção, pois este não é o objetivo da tese. Assim também, não se pretende estabelecer qualquer método comparativo entre o Registro e o sistema sui generis adotado pelo país, pois o foco central do trabalho são os efeitos jurídicos do mecanismo de reconhecimento do PCI como instrumento de proteção de direitos intelectuais coletivos decorrentes desses bens culturais imateriais declarados.

fonogramas e às emissões de radiodifusão, às invenções em todos os domínios da atividade humana, às descobertas científicas, aos desenhos e modelos industriais, às marcas industriais, comerciais e de serviço, bem como às firmas comerciais e denominações comerciais, à proteção contra a concorrência desleal e todos os outros direitos inerentes à atividade intelectual nos domínios industrial, científico, literário e artístico.

Diferencia-se uma terminologia da outra para designar os direitos intelectuais coletivos, como aqueles a priori não protegidos pela propriedade intelectual moderna. Isso não aparta a possibilidade que os detentores têm de utilizar os instrumentos da PI para proteger seus bens intelectuais coletivos, como de fato acontece no Registro, com a sobreposição do mecanismo de reconhecimento a indicações geográficas e marcas coletivas para fortalecimento da proteção de produtos e resultados de modos de saber-fazer registrados como bens culturais imateriais. No próprio histórico da construção do Registro, falava-se em propriedade intelectual coletiva. Porém, não será em todo caso que esse uso será adequado; é o choque, por exemplo, que há entre expressões culturais tradicionais e os direitos autorais3, com a reprodução do falso axioma de que expressões do folclore ou manifestações artísticas populares estariam em domínio público4 (FRAGOSO, 2009, p. 337).

Apesar de o IPHAN, após o início da vigência do Decreto e durante a aplicação do instrumento, ratificar sua posição final de que os efeitos jurídicos do Registro eram apenas declaratórios, de reconhecimento, valorização, com fins de promover apoios e fomentos para a transmissão e continuidade do bem, isso não foi suficiente para demover os detentores de utilizar o Registro como certificador de seus direitos coletivos sobre o PCI. Isso porque interpretam a titulação e a certificação do PCI como limitadores de apropriações indevidas sobre os bens culturais imateriais,

3 Utilizar-se-á indistintamente as expressões direitos autorais e direitos de

autor para se referir a proteção conferida a obras intelectuais, inclusive

direitos conexos, presente na Lei nº 9.610, de 19 de fevereiro de 1998.

4 Enquanto há essa referência constante às expressões culturais tradicionais

em domínio público, o artigo 45, inciso II, da Lei de Direitos Autorais, que trata das obras caídas em domínio público, faz ressalva à proteção dos conhecimentos étnicos e tradicionais, mas sem mencionar que proteção seria essa: Art. 45. Além das obras em relação às quais decorreu o prazo de proteção aos direitos patrimoniais, pertencem ao domínio público: I - as de autores falecidos que não tenham deixado sucessores; II - as de autor desconhecido, ressalvada a proteção legal aos conhecimentos étnicos e tradicionais” (Grifou-se em negrito).

isto é, usos e explorações por eles não autorizados, bem como danos, lesões ou ameaças que comprometem a sua continuidade e a transmissão intergeracional. Por outro lado, acreditam que a Constituição Federal de 1988 outorgou-lhes a titularidade coletiva dos bens culturais imateriais reconhecidos formalmente.

A visibilidade nacional ocasionada pela salvaguarda do Registro permitiu que criações, expressões e saberes tradicionais desses coletivos fossem apropriados por terceiros, empresas ou indivíduos, estranhos à dinâmica processual dos bens culturais imateriais e seus produtos, resultados ou objetos associados, gerando consequentemente choque de interesses entre aqueles que tiveram suas práticas e expressões registradas e os atores do mercado. Diante dessas situações, o IPHAN obrigou-se a modificar sua interpretação dos efeitos do Registro, agindo em alguns casos como mediador desses conflitos, em outros intercedendo a favor dos direitos culturais dos detentores.

Dessa maneira, tem-se por efeitos a concepção sociojurídica do fenômeno (SABADELL, 2013, p. 61), ou seja, a repercussão social do