2. O DESVIO DE RECURSOS E SUA RELAÇÃO COM O FEDERALISMO
4.5 Os poderes conferidos ao Congresso Nacional na questão orçamentária
4.5.2 As emendas ao orçamento e a relação dos parlamentares com suas
Estudou-se no item anterior que, apesar de os parlamentares possuírem consciência
de que o pork-barrel é prejudicial à federação, não possuem incentivos para atuar de modo
diverso. O dilema enfrentado por deputados e senadores pode ser explicado diante das
pressões exercidas pelas suas respectivas bases eleitorais
463, o que faz com que, na questão
das emendas ao orçamento, o interesse local ganhe relevância maior. De fato, “como se crê
que são os pleitos que trazem os votos, do ponto de vista eleitoral, por conseguinte, as ações
dirigidas para as bases [eleitorais] são tidas freqüentemente como algo mais importante do
que as que têm como motivação as questões nacionais”
464.
Regis Fernandes de Oliveira
465, ao criticar a concessão de subvenções sociais
(transferências para fazer frente às despesas de custeio de “instituições públicas ou privadas
de caráter assistencial, ou cultural, sem finalidade lucrativa”
466) por intermédio de emendas
ao orçamento, ressalta o esforço empreendido pelas bases eleitorais sobre os parlamentares e
a perpetuação da lógica clientelista:
Em verdade, há um acordo partidário que permite que cada deputado insira no teor do
orçamento anual verbas destinadas a sua base eleitoral. Tal situação é absurda. Em primeiro
lugar, beneficia o local em que é votado o deputado, o que discrimina outros, que não tiveram
o privilégio de eleger um parlamentar. É odiosa, porque ajuda a reeleição de deputados e
senadores que, sendo assim, ficam em posição de superioridade em relação a outros possíveis
candidatos. Nada, eticamente, ampara tal providência anual ocorrida no Congresso Nacional.
Tal providência, inclusive, leva à dependência dos parlamentares da base do governo à
liberação posterior das verbas. Dependendo da matéria em votação, haverá ou não a liberação
ministerial dos recursos, o que redundará no voto favorável do parlamentar à pretensão do
governo.
463 De acordo com Marcos Otávio Bezerra (Em nome das “bases”: política, favor e dependência pessoal.
Rio de Janeiro: Relume Dumará/Núcleo de Antropologia da Política, 1999, p. 102), a definição de base eleitoral é ampla, não podendo ser sempre confundida com região geográfica de origem do parlamentar: “Um primeiro aspecto que chama a atenção é a mobilidade da categoria base eleitoral. Ela não remete a uma realidade fixa, mas a diferentes referentes: uma rua, um bairro ou uma cidade. A base é definida ora pelo local de residência, ora pelas relações sociais que o político mantém nas localidades. Neste sentido, e este é outro aspecto, ela não delimita simplesmente uma unidade geográfica ou administrativa, apesar do conceito de lugar ser fundamental para a definição da noção de base eleitoral, mas, sobretudo, um espaço de relações sociais”.
464 Marcos Otávio Bezerra. Em nome das “bases”: política, favor e dependência pessoal. Rio de Janeiro:
Relume Dumará/Núcleo de Antropologia da Política, 1999, p. 117.
465 Curso de direito financeiro. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 378. 466 Artigo 12, § 3°, inciso I, da Lei 4.320/1964.
Nada justifica este estado de coisas, cabendo à sociedade repudiar tal comportamento. O
problema que ocorre é a pressão da base eleitoral para a liberação de recursos. Se o deputado
não conseguir verbas para os Municípios que nele votaram, o parlamentar ‘não presta’, ‘não
tem força’, e passa a ser desprestigiado.
Deve-se afirmar que é legítimo o direito de os parlamentares buscarem formas de
beneficiar sua base eleitoral. Aliás, o artigo 226, inciso V, do Regimento Interno da Câmara
dos Deputados
467lhes assegura o direito de “promover, perante quaisquer autoridades,
entidades ou órgãos da administração federal, estadual ou municipal, direta ou indireta e
fundacional, os interesses públicos ou reivindicações coletivas de âmbito nacional ou das
comunidades representadas” (destaque inserido). O problema ocorre quando o esforço
parlamentar se concentra em beneficiar os interesses das bases eleitorais em prejuízo do
interesse nacional
468.
A respeito da atuação parlamentar, Marcos Otávio Bezerra argumenta que ela ocorre,
basicamente, sob duas bases: a) as atividades inerentes à função legislativa; e b) as atividades
dirigidas às bases eleitorais. A primeira ação é inerente e comum à atuação parlamentar, pois
se refere à possibilidade de o deputado ou senador bem atuar para fazer valer suas
proposições nas respectivas Casas Legislativas, bem como deliberar, participar de reuniões
de comissões, de sessões legislativas etc. Já as ações direcionadas às bases eleitorais são
mais complexas e abrangentes, pois envolvem não apenas as ações voltadas à obtenção de
recursos federais a estados e municípios, como também o atendimento a solicitações
particulares de comunidades e eleitores, este último envolvendo comumente a mediação do
parlamentar junto a setores governamentais
469.
Dentre as atividades concentradas no atendimento às bases eleitorais, pode-se
destacar a relação entre os parlamentares e as lideranças políticas locais, ou seja,
467 Resolução n° 17, de 1989.
468 Marcos Otávio Bezerra (Em nome das “bases”: política, favor e dependência pessoal. Rio de Janeiro:
Relume Dumará/Núcleo de Antropologia da Política, 1999, p. 109) exemplifica como o atendimento aos pleitos das bases eleitorais consome o tempo dos parlamentares: “A importância atribuída aos pleitos como elemento de desempenho da função parlamentar e instrumento de manutenção de vínculo com as bases eleitorais expressa-se, por exemplo, no fato de gabinetes possuírem funcionários encarregados exclusivamente do cuidado desses pedidos. Recebê-los, cadastrá-los, tomar as providências para que sejam atendidos se for o caso, manter contato com o solicitante, são algumas das tarefas de que se ocupam. Em alguns gabinetes, como informou o assessor de um senador a partir de uma estimativa impressionista, o trabalho em torno dos pleitos corresponde a 50% de suas atividades. Em dois gabinetes de senadores – ambos líderes partidários – tive informações a respeito do número de pleitos registrados no momento. No primeiro, o assessor falou em 86 e, no segundo, cadastrado em nove meses, constavam cerca de 450 pleitos”.
469 Em nome das “bases”: política, favor e dependência pessoal. Rio de Janeiro: Relume Dumará/Núcleo
governadores, prefeitos e demais autoridades (vereadores e deputados estaduais, por
exemplo).
A respeito dos mencionados agentes, não somente as emendas ao orçamento
constituem importante elo nesse relacionamento, mas também a liberação dos valores
previstos nas emendas, ou seja, o momento da execução orçamentária, em que os
parlamentares trabalham junto aos órgãos ministeriais do Poder Executivo para a
disponibilização dos recursos aprovados naquelas emendas.
Outro fator que favorece a aproximação entre as bases eleitorais e os parlamentares é
a possibilidade de esses últimos influírem na proposta de lei orçamentária a ser apresentada
pelo Poder Executivo. Vale dizer, antes mesmo das negociações no âmbito do Congresso
Nacional, alguns deputados e senadores tentam incluir seus projetos nos planejamentos
elaborados pelos ministérios e demais órgãos federais, o que já representaria uma vantagem
considerável em relação aos demais parlamentares, que teriam que aguardar a fase das
emendas individuais ou de bancada
470.
A vinculação entre parlamentares e as lideranças locais é alimentada, no entanto,
mediante a troca de favores
471, o apoio político das autoridades governamentais (prefeitos e
governadores)
472e os votos da base eleitoral, influenciando decisivamente no incentivo à
470 De acordo com Carlos Pereira e Bernardo Mueller (Comportamento estratégico em presidencialismo de
coalizão: as relações entre Executivo e Legislativo na elaboração do orçamento brasileiro. In: Dados – Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 45, n° 2, 2002, p. 269. Também disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0011-52582002000200004&lng=en&nrm=iso, acessado em 05.01.2010), “esses parlamentares saltam um estágio importante das negociações no Congresso, fazendo constar seus pedidos já no projeto enviado pelo presidente da República. É nessa fase que se dão as negociações mais ardilosas dentro do Poder Executivo, com cada parte buscando alargar seu quinhão do orçamento e o Tesouro procurando conter as reivindicações de todos”.
471 Marcos Otávio Bezerra (Em nome das “bases”: política, favor e dependência pessoal. Rio de Janeiro:
Relume Dumará/Núcleo de Antropologia da Política, 1999, p. 135) exemplifica essa situação: “A troca de favores e serviços entre parlamentares e prefeitos pode incluir o pedido do parlamentar para que uma pessoa de suas relações ocupe um cargo na administração municipal. Além de chamar a atenção para a intervenção do parlamentar na administração municipal, estes casos apontam para o fato de que os pedidos de favores e serviços seguem nas duas direções, ou seja, dos prefeitos para os parlamentares e vice-versa. Como no caso do encaminhamento dos pleitos pelo parlamentar junto à burocracia federal, indicar uma pessoa para ocupar um cargo municipal é uma forma do parlamentar amarrar – o termo expressa em termos nativos a relação de dependência pessoal instituída – essa pessoa e integrantes de sua rede de relações”.
472 O apoio político de prefeitos e governadores de algumas regiões do país denota claramente a existência
de vínculos clientelistas e até coronelistas. Essa situação fica evidente no exemplo descrito por Marcos Otávio Bezerra (Em nome das “bases”: política, favor e dependência pessoal. Rio de Janeiro: Relume Dumará/Núcleo de Antropologia da Política, 1999, p. 133): “Para o parlamentar, o poder do prefeito resulta, entre outros aspectos, do controle sobre a administração municipal e de seu prestígio político no município, isto é, em última instância, do apoio que é capaz de lhe proporcionar através da mobilização dos membros locais de suas redes políticas e de seus pedidos de votos para o candidato. Este poder está associado, entre outros aspectos, ao controle que a gestão da prefeitura lhe assegura de distribuição dos benefícios e recursos públicos locais. Como informa o mesmo senador (PMDB-PB): ‘A grande força