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O difícil ajuste entre as funções fiscais no âmbito do federalismo e o

2. O DESVIO DE RECURSOS E SUA RELAÇÃO COM O FEDERALISMO

2.1 O difícil ajuste entre as funções fiscais no âmbito do federalismo e o

clientelismo e coronelismo: 2.3.1 Origem do patrimonialismo e seu significado atual; 2.3.2

Clientelismo; 2.3.3 Coronelismo – 2.4 Corrupção: 2.4.1 Conceito de corrupção; 2.4.2 A corrupção

como risco à República; 2.4.3 A corrupção e a democracia; 2.4.4 A corrupção, o desenvolvimento

econômico e social, a ética e o papel do Estado – 2.5 Há relação entre o desvio de recursos públicos

e o federalismo fiscal?: 2.5.1 O desvio de recursos públicos e suas consequências para as funções

fiscais; 2.5.2 O desvio de recursos públicos e sua relação com o tipo de estrutura do federalismo

fiscal.

2.1 O difícil ajuste entre as funções fiscais no âmbito do federalismo e o

problema do desvio de recursos públicos

Fez-se menção no capítulo anterior à importância e aplicação das três funções fiscais

criadas e desenvolvidas por Richard Abel Musgrave. O estudo dessas funções –

denominadas alocativa, distributiva e estabilizadora – é importante não só para a

compreensão do federalismo fiscal, mas também para lançar bases para o desenvolvimento

do próprio federalismo.

Importante que se diga que a teoria desenvolvida por Musgrave, do ponto de vista

econômico, é normativa, ou seja, estabelece o modelo ideal de como determinada coisa deve

ser realizada, ao contrário da teoria positiva, que se preocupa com o estudo dos fatos como

eles ocorrem

79

. As diretrizes de seu posicionamento partem do pressuposto de um Estado em

79 Marcos Mendes. Federalismo fiscal. In: ARVATE, Paulo; BIDERMAN, Ciro (org.). Economia do setor

público no Brasil. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 429. O mesmo autor expõe quais “são os exemplos da literatura normativa sobre federalismo fiscal: Banco Mundial (2000), Ahmad & Craig (1997), Burki, Perry y Dillinger (1999), Hemming & Spahn (1997), McLure Jr. (1997), Ter-Minassian (1997), Shah (1994), Musgrave (1983), Gramlich (1993), Bahl & Linn (1994), Inman & Rubinfeld (1996)”. Acrescente-se a essa lista os estudos de Wallace Eugene Oates.

que estão presentes “padrões eficientes de planejamento fiscal”

80

e visam estabelecer um

modelo ideal de federalismo.

A realidade econômica, no entanto, acaba divergindo dos modelos teórico-

normativos

81

. Essa diferença ocorre porque as estruturas dos diversos Estados federados

existentes, no mais das vezes, não apresentam o grau de planejamento fiscal desejado ou

ideal, repercutindo negativamente na correta integração das funções alocativa, distributiva e

estabilizadora.

Outra explicação também está na forma pela qual as relações fiscais cooperativas ou

competitivas predominam no âmbito da Federação. Essas relações podem se materializar sob

as formas horizontal, vertical e mista: a horizontal é aquela que ocorre entre entidades

governamentais de mesmo nível; a vertical refere-se às situadas entre uma unidade federativa

de maior grau e outra de nível inferior; já a mista envolve relações no âmbito de vários entes

federativos de mesmo nível, de nível inferior e de nível superior. Se nessas relações fiscais

entre os entes federativos houver a presença de padrões imperfeitos de competitividade e

cooperação, todo o arcabouço fiscal da Federação poderá ser prejudicado.

80 Richard Abel Musgrave. Teoria das finanças públicas: um estudo de economia governamental.

Tradução de Auriphebo Berrance Simões. São Paulo: Atlas; Brasília: INL, 1973, v. 1, p. 25. Título original: The theory of public finance: a study in public economy.

81 Nesse sentido, importante é a crítica externada por Jonathan Rodden (Federalismo e descentralização em

perspectiva comparada: sobre significados e medidas. In: Revista de Sociologia e Política. Curitiba, n° 24, jun. 2005, p. 20. Tradução de Miriam Adelman e Marta Arretche. Título original: Comparative federalism and decentralization: on meaning and measurement) ao alertar para a diferença existente entre a literatura teórica sobre o federalismo fiscal e os aspectos empíricos que envolvem o tema:

“[...] É pouco freqüente que a descentralização fiscal e de políticas envolva um deslocamento de uma quantidade fixa de autoridade ou recursos do governo central para os governos regionais ou locais. Ao contrário, a descentralização geralmente envolve acrescentar novas camadas ou novos recursos e responsabilidades para os níveis inferiores de governo, em um contexto de superposição de esferas de autoridade.

A descentralização política também se acrescenta à natureza complexa e imbricada do governo de múltiplos níveis. Quando a autoridade sobre as políticas e sobre as finanças imbrica-se, não surpreende que a avaliação que os eleitores fazem das autoridades centrais e subnacionais também se inter-relacione. A literatura normativa sobre o federalismo fiscal, assim como as teorias constitucionais norte-americanas sobre o federalismo dual, tem tido efeitos obscurecedores. Muito freqüentemente, economistas e cientistas políticos teorizam sobre descentralização como se ela significasse uma divisão nítida de tarefas, em que o centro só entra para a provisão de bens coletivos nacionais e para corrigir desvios. As noções de federalismo que prevalecem na Ciência Política criam um problema parecido. O federalismo não necessariamente acarreta uma autoridade maior dos governos subnacionais sobre os impostos, gastos ou qualquer outra coisa. O federalismo não implica que o centro e os estados sejam soberanos, cada um protegido contra a interferência do outro. Ao contrário, as federações têm evoluído para contratos incompletos em andamento e pela sua própria natureza estão sob constante renegociação. Na maior parte das federações, o centro depende das províncias para implementar e fazer valer muitas das suas decisões e não pode efetuar mudanças do status quo em algumas áreas sem o consentimento das unidades constituintes”.

Não por acaso é que se admite a existência de conflitos fiscais no âmbito do

federalismo. Exemplo claro disso, aliás, é a possibilidade de que a utilização de meios

dirigidos ao alcance de uma determinada função fiscal ocasione empecilhos ao atingimento

de outras funções, possibilitando a ocorrência de colisão entre as funções fiscais (função

alocativa versus função distributiva; função distributiva versus função estabilizadora; função

alocativa versus função estabilizadora)

82

.

A existência de todos esses conflitos exige a realização de ajustes (transferências

governamentais, por exemplo), a real cooperação entre os entes federados e a coordenação

do governo central, tudo com o intuito de harmonizar as divergências e alcançar um padrão

de federalismo mais próximo do considerado ótimo. Sem o eficaz funcionamento desses

mecanismos de equalização, será a própria Federação quem estará em risco.

Sabe-se, ainda, que a existência de todos os problemas acima mencionados, relativos

ao federalismo fiscal, é capaz de gerar outros, principalmente em âmbito mais abrangente,

tais como a ausência de crescimento do Estado e a estagnação de políticas públicas.

É nesse contexto que se deve situar a importância de um dos objetos do presente

estudo, qual seja, o de perscrutar, sob o ponto de vista fiscal, se a descentralização do Estado

sob a forma federativa também é capaz de estimular, encobrir ou evitar o desvio de recursos.

Como os recursos públicos são a própria “matéria-prima” da atividade financeira

estatal, poderia, numa primeira análise, até parecer paradoxal tal proposta de exame, uma vez

que o federalismo fiscal tem como objetivo, justamente, bem direcionar esses recursos para o

alcance das finalidades do Estado. Ocorre que um federalismo fiscal desestruturado não

apenas pode ser incapaz de bem exercer suas finalidades precípuas, como também provocar

dificuldades ainda maiores, prejudiciais para a manutenção da própria Federação, como é

exemplo o descaminho de recursos.

Antes, porém, da análise mais restrita sobre a relação existente entre federalismo

fiscal e a questão do desvio de recursos, importante a perfeita delimitação desse último

aspecto, de forma a permitir uma melhor compreensão sobre o objeto do presente trabalho,

que terá como finalidade última o estudo do caso brasileiro

83

.

82 Mauro Santos Silva. Teoria do federalismo fiscal: notas sobre as contribuições de Oates, Musgrave, Shah

e Ter-Minassian. In: Nova Economia. Belo Horizonte, jan-abr de 2005, p. 132.

83 A questão específica envolvendo o federalismo fiscal brasileiro e o desvio de recursos será explicitada

A palavra desvio significa o afastamento de algo do seu direcionamento normal. O

desvio de recursos, então, representa o desencaminhamento do dinheiro público de seu

destino programado ou ideal.

Não se tratará, aqui, do desvio de recursos econômicos provocado pela tributação em

relação a diferentes aplicações e localidades

84

. De fato, não representa objeto do presente

estudo perscrutar, por exemplo, qual seria o imposto adequado a determinada sociedade de

forma a evitar desvio de recursos de uma aplicação tributada para outra igualmente tributada,

mas menos onerosa ao contribuinte

85

; tampouco se discutirá qual imposto, por exemplo, é

capaz de provocar ou de evitar o desvio do contribuinte de uma localidade para outra

86

. Tais

questões, embora tenham relação com o federalismo fiscal, não interessam para o objetivo

deste trabalho.

84 Estudo interessante a respeito desse aspecto é encontrado no trabalho desenvolvido por Hugh Dalton

(Princípios de finanças públicas. Tradução de Maria de Lourdes Modiano. 4ª ed. Rio de Janeiro: FGV, 1980, pp. 118-125. Título original: Principles of public finance), ex-Chanceler do Erário Inglês, que examina os efeitos dos desvios econômicos de seus “canais naturais” e a repercussão na produção.

85 No tocante a esse assunto, Hugh Dalton (Princípios de finanças públicas. Tradução de Maria de Lourdes

Modiano. 4ª ed. Rio de Janeiro: FGV, 1980, pp. 118-119. Título original: Principles of public finance) esclarece: “§ 11. No que diz respeito às diferentes aplicações dos recursos econômicos, há impostos que têm sido defendidos sob a alegação de causarem pouco ou nenhum desvio; estão nesse número os impostos sobre enriquecimentos aleatórios, os impostos sobre o valor de localização da propriedade, os impostos sobre monopolistas (quando não provocam alteração da produção nem do preço de venda), e certos tributos que oneram igualmente todas as aplicações da riqueza.

Em geral, a maneira pela qual ocorre o desvio é a seguinte: uma pessoa que possua ou represente recursos econômicos aplicados em objetos sujeitos a imposto procurará escapar a esse imposto pelo desvio dos mesmos recursos para alguma outra aplicação, na qual não terá imposto a pagar ou terá um imposto menor. Esse desvio lhe será proveitoso, desde que o prejuízo de renda – independentemente do imposto que resulta da mudança de aplicação – seja inferior à vantagem que provém do pagamento de menor imposto. A extensão em que determinado imposto provocará desvios de recursos de uma aplicação tributada para outra, bem como redução na oferta do produto, depende [...] da elasticidade da procura desse produto e da elasticidade da respectiva oferta”.

86 O mesmo Hugh Dalton (Princípios de finanças públicas. Tradução de Maria de Lourdes Modiano. 4ª ed.

Rio de Janeiro: FGV, 1980, p. 122. Título original: Principles of public finance) exemplifica o fenômeno: “Assim, na Inglaterra, entre as duas guerras mundiais, a pesada tributação nas áreas atingidas por um oneroso e prolongado desemprego – distressed areas, como eram chamadas – concorreu, a despeito das reduções de impostos, para arruinar as indústrias existentes naquelas áreas e impedir nelas o advento de novas indústrias. Após a Segunda Guerra Mundial, esta pesada tributação local foi mitigada por uma nova subvenção (Exchequer Equalisation Grant), idealizada durante meu período como Chanceler do Erário. Esse auxílio compensava a deficiência em qualquer área de valor local tributável abaixo da média nacional, enquanto que com minha Lei de Distribuição da Indústria, planejada quando era eu Presidente do Conselho de Comércio (Board of Trade), passaram a ser concedidos incentivos especiais às novas indústrias que se instalassem nas antigas distressed areas – hoje chamadas áreas de desenvolvimento (development areas). Esta lei, promovendo pleno emprego e empregos mais diversificados nas referidas áreas, inclusive novos empregos para mulheres, certamente auxiliou o aumento da produção nacional. Tôda essa benéfica transformação resultou de uma combinação de modificações tributárias, subvenções, contrôles físicos e outras providências administrativas. Foi um benefício, não só por desviar indústrias e outros empregos das mesmas decorrentes para essas áreas, cuja vida social foi reavivada, como por impedir o desvio (ao cabo de longo período de desemprego e degeneração física e espiritual) de homens e mulheres destas áreas para as grandes cidades, cujo crescimento excessivo em quase todos os países do mundo demonstra as nefastas conseqüências de navegar-se indolentemente pelos ‘canais naturais’”.

A análise proposta restringir-se-á àqueles casos de desvios de recursos em que, de

alguma forma, estão presentes atos de clientelismo e de corrupção ou os que, embora não

diretamente ligados a esses fatores, acabam por impedir a correta destinação do dinheiro

público, prejudicando, em razão disso, a própria sociedade.

Para um completo julgamento a respeito desses pontos, necessária é a delimitação de

alguns conceitos tais como o de rent-seeking, patrimonialismo, clientelismo, coronelismo e

corrupção. A exata noção desses termos permitirá que se investigue posteriormente, com

maior clareza, se é possível estabelecer uma relação entre federalismo fiscal e a questão do

desvio de recursos.