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O poder em mãos do governo central: a troca de favores e a liberação

2. O DESVIO DE RECURSOS E SUA RELAÇÃO COM O FEDERALISMO

4.5 Os poderes conferidos ao Congresso Nacional na questão orçamentária

4.5.4 O poder em mãos do governo central: a troca de favores e a liberação

objeto das emendas

Estudou-se no item 4.4.2 a possibilidade de o Presidente da República vetar total ou

parcialmente a redação final do projeto de lei orçamentária; pode ele, dessa forma, também

vetar as emendas ao orçamento apresentadas pelos parlamentares ou pelas bancadas

estaduais.

Essa faculdade, no entanto, é utilizada pelo chefe do Poder Executivo de forma

esporádica, uma vez que seu uso, nessa fase, apenas precipitaria o surgimento de desgastes

políticos. Ora, por ser o orçamento considerado uma lei autorizativa e não impositiva, o

Executivo, no mais das vezes, não executa todas as despesas previstas na peça orçamentária,

mas somente o que lhe convém. Eventual gasto público contido em emenda parlamentar

poderá, dessa forma, ser simplesmente ignorado pelo poder central na fase de execução do

orçamento.

485 Em nome das “bases”: política, favor e dependência pessoal. Rio de Janeiro: Relume Dumará/Núcleo

de Antropologia da Política, 1999, pp. 231-254, passim.

486 Existe um projeto de lei (PL 1202/2007) em trâmite na Câmara dos Deputados que propõe a

regulamentação da atividade de lobby, bem como a atuação de grupos de pressão ou de interesse e assemelhados no âmbito dos órgãos e entidades da Administração Pública Federal.

487 A expressão “clandestina” é utilizada no sentido de “oculta”, e não na acepção de ilegítima ou ilegal,

Surge, com isso, um instrumento de barganha utilizado pelo governo central para

viabilizar seus projetos, muito similar à prática do logrolling.

O termo logrolling (assistência mútua) significa a troca de favores entre

parlamentares com o objetivo de obter aprovação em projetos de lei de seu interesse

488

. No

âmbito do Congresso Nacional brasileiro e de outros parlamentos no mundo essa prática não

é rara. Afirma Hugo Borsani que, em razão de os legisladores possuírem diferentes níveis de

interesse nas propostas de lei apresentadas no Congresso, o logrolling é facilitado,

permitindo “negociações por leis e emendas, freqüentes na maioria dos sistemas

democráticos, cujo objetivo é que todos os integrantes da negociação fiquem satisfeitos com

o resultado”

489

.

A prática do logrolling está intimamente ligada à presença de minorias no Poder

Legislativo – principalmente no Brasil, em que a super-representação de estados menores

inibe o poder da maioria democrática (demos constraining)

490

–, pois “abre a possibilidade

para que as minorias, se representadas no Parlamento, encontrem, mediante negociações,

espaço para aprovação de projetos”

491

.

O seu exercício pode ou não representar prejuízo à federação, dependendo da forma

como é realizado. Se o resultado social final for positivo, é um indicativo de que o logrolling

alcançou o equilíbrio na troca de votos. De acordo com Hugo Borsani, isso “acontece

quando o custo de votar determinada medida iguala o benefício esperado pela aprovação

da opção mais intensamente preferida. Assim, o bem-estar é otimizado pela combinação da

regra da maioria com logrolling”

492

.

O problema é quando a troca de favores é utilizada como mecanismo para

estruturar uma coalizão com o propósito de viabilizar a administração por parte do poder

central, situação que ocorre no Brasil

493

.

488 Ressalta Hugo Borsani (Relações entre política e economia: Teoria da Escolha Pública. In: ARVATE,

Paulo; BIDERMAN, Ciro (org.). Economia do setor público no Brasil. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 111) que a expressão indica “o intercâmbio de votos (vote trade) entre os legisladores para aprovação de diferentes leis”.

489 Relações entre política e economia: Teoria da Escolha Pública. In: ARVATE, Paulo; BIDERMAN, Ciro

(org.). Economia do setor público no Brasil. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 111.

490 Vide item 3.7.1 do presente estudo.

491 Hugo Borsani. Relações entre política e economia: Teoria da Escolha Pública. In: ARVATE, Paulo;

BIDERMAN, Ciro (org.). Economia do setor público no Brasil. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 113).

492 Relações entre política e economia: Teoria da Escolha Pública. In: ARVATE, Paulo; BIDERMAN, Ciro

(org.). Economia do setor público no Brasil. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 113.

493 Sobre essa questão, Hugo Borsani (Relações entre política e economia: Teoria da Escolha Pública. In:

Aliás, a utilização do logrolling como instrumento para atrair votos favoráveis a

projetos de interesse do governo central é objeto de estudo da doutrina. Márcio André de

Carvalho, ao analisar a atuação de deputados nos anos de 1995 a 1998 – época em que o

então Presidente da República Fernando Henrique Cardoso apresentou diversas emendas

constitucionais de índole econômica e social –, concluiu que a troca de votos provocou um

efeito pérfido à sociedade, gerando custos não previstos pelo governo federal.

Institucionalizou-se um sistema prejudicial ao interesse público: em troca de seus votos,

necessários à aprovação das propostas governamentais, os deputados passaram a sempre

exigir algum tipo de contrapartida

494

.

No Brasil, essa troca de favores com o objetivo de proporcionar a coalizão do

governo federal também é exercida no âmbito do orçamento, envolvendo o Poder

Executivo e parlamentares. Ocorre que, nesse caso, a situação é ainda mais prejudicial e de

efeitos imediatos, pois são utilizados como moeda de troca recursos orçamentários,

previstos em emendas parlamentares, para fazer prevalecer os projetos do governo central.

Ademais, ao se considerar que determinadas emendas deveriam ser vetadas pelo

Presidente da República já na fase anterior à aprovação da lei orçamentária, sua utilização

como barganha política somente confirma o alto custo social a ser suportado pela

Elsevier, 2004, p. 112) apresenta dados concretos a respeito da ocorrência do fenômeno no Brasil: “Um exemplo de logrolling no Brasil foi o recente processo de aprovação das Reformas Previdenciária e Tributária (ano 2003). A coalizão majoritária no governo negociou a aprovação do subteto da remuneração dos desembargadores e a contribuição previdenciária dos inativos no âmbito da Reforma Previdenciária (...), em troca do aumento da participação dos estados da federação nas receitas decorrentes da CIDE (Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico) e da CPMF – Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (...) – no bojo da Reforma tributária (...). A moeda de troca foi o voto dos parlamentares fiéis aos governadores. O processo de logrolling foi coordenado e negociado pelo presidente da República, pelos governadores dos estados e pelos líderes partidários no Legislativo”.

494 How logrolling can explain the failure of the government coalition in Brazil. In: Revista de

Administração Pública, Rio de Janeiro, v. 40, n. 5, set-out de 2006, pp. 865-882. Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-76122006000500006&lng=pt&nrm=iso, acessado em 04.01.2010. O autor afirma que, no período indicado, existiam três grupos na Câmara dos Deputados: a) um grupo estável de coalizão governamental, mas com número insuficiente para aprovar as emendas constitucionais; b) um grupo formado pela oposição, que poderia votar contra os interesses do governo; c) um grupo que oscilava entre a oposição e a base governamental, dependendo dos favores que poderiam ou não obter do poder central. No original: “The movement of representatives in and out of the governmental coalition indicate that logrolling was the strategy used by the government in order to have the necessary number votes to approve the constitutional amendments proposed by the president. Therefore, during the period 1995-98, members of the House of Representatives could have been part of three groups: a stable governmental coalition – not large enough to approve the constitutional amendments; the opposition that would always vote against the government; or a group that would oscillate between government and opposition, depending on the benefits that it could trade – logroll – with the government” (Op. cit., p. 868).

sociedade. Vale dizer, mais uma vez os recursos são desviados de seu destino, deixando de

atender o interesse nacional para servir a pleitos regionalizados ou de comunidades locais.

A situação acima mencionada demonstra, aliás, o grande poder exercido pelo

Executivo federal na questão orçamentária.

Importante considerar que o conjunto das emendas individuais e de bancada, em

relação ao valor total do orçamento, representa apenas uma ínfima parcela, denotando que,

na verdade, os parlamentares não exercem domínio sobre grande parte das rubricas

orçamentárias. Conforme ressaltam Carlos Pereira e Bernardo Mueller, “as regras

determinam que o Congresso só pode influir nos recursos da rubrica investimentos, que

tem respondido por apenas 1% a 2% de todas as despesas orçamentárias”

495

.

Percebe-se que é o Executivo, na realidade, que exerce a maior influência sobre o

orçamento, controlando a maioria dos procedimentos referentes à proposição e execução

da lei orçamentária.

Antes do encaminhamento do projeto ao Congresso Nacional, o Poder Executivo é

responsável por coordenar e elaborar a proposta de orçamento anual, momento em que os

ministérios apresentarão suas programações de gastos. De posse dessas informações e

antes do envio da proposta ao Congresso, o Executivo pode barganhar com parlamentares a

inclusão de novos projetos ou o aumento da previsão de receitas para demandas

específicas.

O domínio desempenhado pelo Executivo, contudo, vai além: a) na própria CMO,

realiza controle sobre a indicação de nomes para os principais cargos, interferindo, assim,

nas emendas ao orçamento federal

496

; b) após a aprovação pelo Congresso Nacional, as

495 Comportamento estratégico em presidencialismo de coalizão: as relações entre Executivo e Legislativo

na elaboração do orçamento brasileiro. In: Dados – Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 45, n° 2, 2002, p. 281. Também disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0011- 52582002000200004&lng=en&nrm=iso, acessado em 05.01.2010. Como exemplo dos dados apresentados pelo autor, percebem-se os valores contidos na proposta orçamentária da União para 2010 (aprovada pelo Congresso Nacional e pendente de sanção do Presidente da República): enquanto o orçamento total foi de R$ 1,86 trilhão, o valor orçado para investimentos públicos chegou à quantia de R$ 58,1 bilhões (antes das emendas parlamentares, essa quantia representava R$ 44,5 bilhões). Ressalta- se que mesmo após os descontos de recursos para rolagem da dívida pública (R$ 596, 2 bilhões) o valor total do orçamento ainda se mostra expressivo (R$ 1,26 trilhão).

496 Sobre essa questão, Carlos Pereira e Bernardo Mueller (Comportamento estratégico em presidencialismo

de coalizão: as relações entre Executivo e Legislativo na elaboração do orçamento brasileiro. In: Dados – Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 45, n° 2, 2002, p. 269. Também disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0011-52582002000200004&lng=en&nrm=iso, acessado em 05.01.2010) ressaltam: “Visto que as nomeações para esses cargos são feitas pelas lideranças partidárias, respeitando o tamanho relativo de cada legenda no Congresso, são os líderes dos

emendas podem ser vetadas pelo Presidente da República; c) no momento da execução

orçamentária, escolhe apenas determinadas emendas que lhe possam trazer retorno

político; a liberação de recursos pode ser utilizada, assim, como incentivo à aprovação das

propostas do governo, enquanto que o bloqueio das verbas funciona como punição pela

não cooperação dos parlamentares.

Apesar da pouca influência exercida por deputados e senadores em relação à

totalidade do orçamento, eles dependem dos recursos objeto das emendas; como já

afirmado, é a liberação das verbas que garante o retorno político aos parlamentares e a

fidelidade de suas bases eleitorais. O círculo vicioso clientelista é alimentado pelo próprio

Poder Executivo, uma vez que utiliza a liberação de recursos das emendas como forma de

ampliar seu domínio sobre os votos dos parlamentares em projetos estratégicos do governo

federal. O governo de coalizão é viabilizado, dessa forma, em prejuízo da sociedade, que

se vê privada da alocação adequada e eficaz de recursos públicos.