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24 XXVII SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA CONHECIMENTO HISTÓRICO E DIÁLOGO SOCIAL Natal, Rio Grande do Norte, 22-26 julho, 2013.

1.4. JOÃO DO NORTE E JOÃO DO RIO

2.1.2. AS ESCALAS ESPACIAIS E OS PERSONAGENS

Barroso trabalha no livro em discussão as escalas do espaço internacional e toma como pressuposto de todos os textos a escala do nacional. Com efeito, cada capítulo do livro discute uma realidade nacional especificamente (Índia, China, Sérvia, Itália, dentre outros) como se as nações e os nacionalismos automaticamente sucedessem o período pré-histórico, nesse sentido, identificando-se as nações às civilizações.

Deve-se notar que o autor subentende o surgimento da humanidade a partir de um ponto de vista dos difusionistas, colocando como ponto de partida as iniciativas privadas e os anseios da espécie (o anseio de perpetuação da espécie é o maior dos anseios, de acordo com Darwin) como formadores das tribos e dos agrupamentos humanos; a humanidade começara com cada humanoide disperso do outro, tendo as ideias mais peso do que as necessidades materiais117. Com apenas uma menção à realidade luso-brasileira, justamente quando sobre o papel do sertão à época dos Descobrimentos118, ele difere e muito da abordagem feita em Ideias e Palavras, conforme abordado no nosso primeiro capítulo. Neste livro, Barroso forja- se enquanto um intelectual das realidades macro políticas e sociais; “Gustavo Barroso” quer dizer, pois um problema do conhecimento de abrangência internacional e um intelectual que se projeta em escala internacional, de modo que a dimensão internacional é percebida como a dimensão fundamental da compreensão e da experiência da cultura contemporânea.

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BARROSO, Gustavo. Op. cit. p. 329-330. 117

BARROSO, Gustavo. Op. cit. p. 12-20. 118 BARROSO, Gustavo. Op. cit. p. 261-270.

59 É nesse espírito de força internacionalista que todos os personagens são produzidos. Além dos personagens apresentados no capítulo anterior, o autor estabelece como protagonistas de suas tramas discursivas, com o enredo particular de cada conto: Ulisses da Grécia, Alexandre da Macedônia, Maomé, Juvenal, o rei Dagoberto, o papa Paulo III, Chica da Silva e o português Rodrigues, os amigos internacionalistas, os dragões do rei, Dom Garcia, os índios antropófagos, Licofronte, um padre franciscano da Roma Antiga, enfim, são geralmente personalidades históricas consolidadas, em sua maioria homens, que são narrados enquanto líderes ou formadores culturais das diversas nações, com exceção do papel desempenhado pelas figuras judaicas, as quais sempre aparecem como degradantes dos espaços nacionais, seja pela influência econômica, seja por meio de uma iniciativa de promiscuidade.

Para tentar demonstrar a produção de personagens enquanto formadoras de espaços nacionais, vamos lançar mão agora de alguns exemplos extraídos do livro.

No capítulo “Salomé do Sertão” (notem a referência bíblica), os personagens principais são a escrava liberta Chica da Silva, o bandeirante Gaspar Carrilho, o português João Fernandes de Oliveira e a judia Judith. O autor discorre sobre a identidade brasileira, sobre a interação entre os grupos sociais que formaram e perpetuaram um jeito de ser da “raça brasileira”. Nessa interação, no mundo das Minas e da penetração bandeirante no “sertão”, no qual o autor se fixa, pouco interessava a condição social da escravidão ou o sistema de dominação e cerceamento da liberdade ao qualos negros africanos estavam submetidos, porque em torno da casa de Gaspar Carrilho, e a convite de seu filho, se desenrola anualmente por ocasião da festa do Natal um grande espetáculo de confraternização social e étnica, ou seja, “o grande batuque que os negros faziam na senzala” juntamente com os escravos de outras “fazendas da redondeza”. O autor assim descreveu o espetáculo:

Ao meio de um pátio atijolado, onde fumegavam fogueiras e fachos, à frente de uma fileira de casinholas caiadas de branco, realizava-se o batuque. Acocorados a um canto, careteando, com trejeitos esquisitos, dois negros velhos da Outra-Banda, que ainda não sabiam a língua da terra em que trabalhavam, tocavam em pandeiros rudes uma espécie de baião primitivo, repisado, hierático, selvagem e ao mesmo tempo, duma bárbara sensualidade. E, ao som desses instrumentos africanos, negros e negras, mulatos e mulatas, curibocas e cafuzes, em promiscuidade, dançavam lentamente, fetichisticamente, farandolando à luz crua das fogueiras. 119

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60 Podemos perceber a reiterada ação do autor de desqualificar as ações dos negros africanos, desqualificação esta que alude à uma vinculação à determinado espaço (“Outra- Banda”), à língua e à cultura representada pelos sons e pela dança africana. O autor esforça-se por fazer valer a associação entre negros e promiscuidade. Tal promiscuidade, vista sempre como algo negativo, parece um dado a priori, um recurso narrativo importante para a enunciação do discurso, uma vez que mais adianta o narrador/autor confessa a sua valoração:

O delírio da África foi a moléstia que matou Portugal. A sede de navegação e de conquista despovoou [...]. Nos areais marroquinos foram aprisionados infantes da casa real e lá se travara a batalha em que se perderam, com o rei, a liberdade e o futuro da nação. A alma portuguesa ansiava pela África e era talvez ainda o atavismo dessa ânsia, desse desvairo, que impelia para os braços das negras os rudes lusitanos que colonizavam o Brasil. 120

Vista como razão da queda do Império Português, a promiscuidade negra seria também o cimento da colonização brasileira, e isso teria sido observado pelo “frêmito de desejo” que o filho do bandeirante sentiu ao observar a negra Chica da Silva dançar. Seria o Brasil, então, desde o início uma terra da promiscuidade. Fato é que movido por profundo desejo de possuir carnalmente a “mulata do batuque”, João Fernandes compra Chica e estabelece com ela uma relação de marido e mulher em que ambos prosperavam economicamente, de modo que tal prosperidade é elencada como o critério pelo autor para a concretização de uma relação social, afetiva e étnica como parecia ser o caso. No entanto, o “frêmito de desejo” e a promiscuidade continuaram impregnados no “brasileiro” filho de bandeirante e foi isso que o fez se aproximar e desejar uma nova mulher que aparecera na cidade, a judia Judith. Apesar de o promíscuo acreditar que a mulher era uma “flor de Israel”, o narrador cuidava logo de esclarecer:

Mal sabia o iludido contratador que a filha honesta e querida do judeu era uma judia de baixa condição, tirada pelo esperto Isaías duma viela da Alfama, para servir aos seus planos e ganhar com ele, a meias, o dinheiro dos mineiros petulantes e tolos. 121

Nesse sentido, teríamos três personagens aparentemente judaicos na trama discursiva que explicaria a formação do Brasil: a própria Chica, que é nomeada também de Salomé; Judith, cujo nome remete a uma essência judaica; e Isaías, cujo nome e cuja nomeação de “judeu de rabo” dizem quem ele é. Desses três resulta claro pelo trecho acima é

120 BARROSO, Gustavo. Op. cit. p. 264-265. 121

61 apenas Isaías é o que desfruta de uma posição inquestionavelmente judaica é Isaías, que com sua esperteza teria produzido Judith com a intenção de ganhar mais dinheiro. A ação de Isaías no fundo é a fundamental porque teria sido a sua cobiça e esperteza que gerou uma movimentação na cidade de Tijuco. Tal movimentação e as suas consequências ficam mais claras pela forma como o narrador/autor encerra o conto:

Dias depois erra assassinada, na fazenda onde vivia, a linda mulher da Alfama, que o judeu Isaías fazia passar por sua filha. A Justiça, apesar de esforços, nunca soube quem tão barbaramente a matou, decepando-lhe a cabeça que jamais se pode encontrar. E, na própria noite do crime, a vingativa mulata mostrava ao amante estupefato a cabeça de Judith, salgada como a dum porco, dentro duma mala de couro. 122

Chica da Silva matou Judith de forma cruel e assim ficou explicado o porquê de ser nomeada, no próprio capítulo do livro, como “Salomé do Sertão”, só que ao invés da Salomé bíblica ela não pede ao rei a cabeça, ela mesma corta a cabeça e faz Judith ir de um extremo de significação a outro, como a distância sintática e semântica entre as expressões “mulher da Alfama” e “salgada como a dum corpo” deixam depreender. Ou seja, no fundo, a verdadeira judia e aparentada de Isaías não era Judith, e sim Chica da Silva. O grande causador da morte e do transtorno, o judeu Isaías, permaneceria ileso, e era essa sua participação na fundação da nacionalidade brasileira, participação degradante, violenta e letal, que Barroso queria mostrar.