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As estratégias comerciais das microcelebridades: o self-branding e a intimidade ilusória

PARTE I ENQUADRAMENTO TEÓRICO

3. O YouTube e seus influenciadores digitais, as microcelebridades da atualidade

3.3. As estratégias comerciais das microcelebridades: o self-branding e a intimidade ilusória

O self-branding é uma prática comum entre as microcelebridades e “envolve indivíduos que desenvolvem uma imagem pública distinta para ganho comercial e/ou capital cultural” (Khamis, Ang & Welling, 2016, p.1), por meio de uma retórica carismática e autêntica, que vai ao encontro das necessidades do público. Tobias Raun (2018) afirma que as microcelebriades devem transmitir ideias de acessibilidade, presença, conectividade e, a mais importante de todas, autenticidade; características que pressupõem a existência também de intimidade.

Segundo Alice Marwick (2010), há uma construção cultural valorativa de “ser você mesmo”, e uma espécie de “performance de autenticidade” associada ao self-branding. As audiências percebem as microcelebridades como mais autênticas pelo facto de dispensarem “os filtros de entretenimento corporativo, como agentes ou empresários” (Marwick, 2010, p. 17), comuns às celebridades tradicionais, e interagirem diretamente com seus fãs, por meio de seus canais privados nas redes sociais.

Khamis et al. (2016) afirmam que a estratégia do self-branding não é nova. A literatura de negócios, desde 1920, fala em self-improvement; e o marketing, há pelo menos 20 anos, identificou o marketing pessoal e as melhores formas do indivíduo garantir uma imagem pessoal positiva e ganhar credibilidade entre os círculos sociais aos quais pertence. Os autores comentam um artigo publicado em 1997, intitulado “The brand called you”, em que o autor, Tom Peters, afirma que uma pessoa tem uma “identidade de marca” que deve

explorá-la tal como uma empresa. Peters diz que “somos CEOs das nossas próprias empresas: Me Inc.” (Khamis et al., 2016, p. 2).

Entretanto o self-branding como estratégia utilizada por usuários comuns de blogues, sites e media

sociais, para alcançar o estrelato é um fenómeno novo e que está em plena ascensão. Khamis et al. (2016) apontam três hipóteses que justificam este crescimento. A primeira delas é que o self-branding corresponde aos anseios da cultura capitalista do consumo e da política neoliberal iniciada no final do século XX. A visão individualista e o trabalho autónomo e empreendedor são bem-vistos e podem ser devidamente recompensados por sucesso e dinheiro. O self-branding mostra:

…como indivíduos privados internalizaram ideias que foram projetadas para a comercialização de mercadorias e, portanto, representa um ponto de virada seminal em como a própria subjetividade é entendida e articulada. Há uma lógica histórica para isso: o capitalismo global, juntamente com as tecnologias de comunicação dos media sociais, provocou uma significativa reviravolta cultural, económica e política, e o conceito de self-branding se manifesta como uma estratégia apropriada para os vulneráveis, oprimidos indivíduos. (Khamis et al., 2016, p. 10)

A segunda hipótese para a maior valorização do self-branding está centrada na ideia de que a dinâmica dos media sociais incentiva práticas de microcelebridade, como produção de conteúdo autêntico, discurso íntimo e trabalho afetivo (Raun, 2018), para ser cooptado e capitalizado, prometendo fama e riqueza às pessoas comuns. Por último, os autores defendem que o sucesso alcançado por alguns influenciadores digitais cria a ilusão de que qualquer pessoa pode ser famosa e bem-sucedida por meio da Internet. Se antes, o self-branding

era muito utilizado por quem já tinha realizado algo notável ou nascera hierarquicamente privilegiado, como a realeza, artistas do cinema e da música, atletas de elite ou personalidades políticas, agora pessoas sem um “talento aparente” podem assumir identidades públicas capazes de sustentar grandes audiências.

A lógica da microcelebridade, portanto, é comportar-se no ambiente digital como se estivesse em um palco a ser assistido por uma plateia, “porque, em um sentido muito real, o é. (…) Ela gerencia seu self online

com o tipo de cuidado e consistência normalmente exibidos por aqueles que historicamente acreditavam ser seu próprio produto: artistas e empreendedores” (Senft, 2013, p. 2).

Jorge, Marôpo e Nunes (2018) coadunam com Senft (2008, 2013) ao afirmarem que microcelebridades se comportam como uma pessoa pública e têm nos seguidores que as acompanham, verdadeiros fãs, tal como uma celebridade. As pesquisadoras também ressaltam o facto das relações se estabelecerem por meio de uma “intimidade estratégica”, que transmite a ideia de proximidade e autenticidade. Uma microcelebridade entende que precisa compartilhar assuntos de cunho pessoal ou emocional para que a relação com a audiência seja fortalecida. É neste aspeto que se encontra a maior diferença em relação às celebridades tradicionais do cinema

e da televisão, como defende Senft (2008). A conexão das microcelebridades com seu público é maior e mais “real”. Estes produtores de conteúdo demonstram ter mais afinidades com suas audiências, aparentam viver experiências semelhantes às das suas audiências e ainda investem num relacionamento mais próximo com seus seguidores. Enquanto o público das celebridades tradicionais fica a levantar hipóteses se elas são como realmente se apresentam, as audiências das microcelebridades sentem que as conhecem verdadeiramente e que sabem detalhes particulares das suas rotinas, que as aproximam entre si. Um fã de uma microcelebridade do YouTube, por exemplo, sabe o seu pequeno-almoço preferido, já viu detalhes da decoração do seu quarto, local onde, normalmente, grava seus vídeos; “conhece” pessoas próximas, como a irmã ou a mãe, que, vez por outra, aparecem na frente da câmara; ou seja, sabem de particularidades que apenas amigos e pessoas de confiança têm acesso. É importante ressaltar, contudo, que “fora” daquele nicho específico, as microcelebridades se tornam pessoas comuns e que podem, inclusive, não ser reconhecidas em locais públicos.

No âmbito da chamada “economia da atenção” (Marwick, 2010, Senft, 2013, García-Rapp, 2017), em que os influenciadores disputam, não só a atenção, mas a fidelização de uma audiência já saturada, a fim de conquistar cada vez mais visibilidade, popularidade e chances de rentabilização, o discurso afetivo e o discurso comercial se mesclam. Florencia García-Rapp (2017) fez um estudo sobre a categoria youtuber de beleza, que reúne mais de 180.000 produtores de conteúdo e mais de 200 marcas do segmento. Estes youtubers carregam por dia cerca de 100 horas de conteúdo, onde apresentam produtos, ensinam a utilizá-los por meio de tutoriais, mostram cenas pessoais do seu dia-a-dia, por meio de vlogs e desabafam sobre questões subjectivas de suas vidas.

García-Rapp (2017) identificou dois tipos de espetadores da categoria youtubers de beleza, os casuais e os assinantes fiéis; bem como dois tipos de conteúdo pensados para falar com cada um destes públicos específicos: os conteúdos que pertencem à “Esfera Comercial” e os que pertencem à “Esfera da Comunidade”. O espetador casual é atraído por tutoriais com passo-a-passo de como fazer um tipo de maquilhagem ou pelos

reviews, vídeos em que os influenciadores apresentam produtos que compraram ou que receberam das marcas, evidenciando embalagem, formato, textura e modos de uso. Estes uploads são marcados pelo conteúdo e pela informação, costumam ter um formato fixo; neles, os influenciadores falam de marcas e emitem abertamente suas opiniões. De acordo com García-Rapp (2017), estes vídeos, portanto, fazem parte da Esfera Comercial. O espetador casual encontra-os ao pesquisar por palavras-chave. Estas, por sua vez, são estrategicamente pensadas pelo influenciador para estarem nos títulos dos vídeos e facilitar a busca do público.

A esfera comercial, centrada no mercado, consiste no YouTube como uma plataforma de negócios. Os tutoriais são exemplos emblemáticos dessa esfera e da comunidade de beleza do YouTube em geral. Por meio destes vídeos de instruções rápidas, fáceis de acompanhar e

simples, Bubz27 reforça e legitima sua posição como renomada guru da beleza, destacando o

seu conhecimento temático e a sua criatividade. (García-Rapp, 2017, p. 235)

O segundo perfil das pessoas que assistem aos vídeos de beleza no YouTube, nomeado de “assinantes fieis”, tem um interesse maior pelo youtuber e por sua vida. Para este grupo, que já subscreveu o canal e retorna a ele sempre que recebe o aviso de novos uploads, os influenciadores focam ainda mais no self- branding, por meio dos vlogs e vídeos sobre temas como amor, amizade, medos ou carreira. São produções que mostram os bastidores da vida do influenciador, em um tom confessional, onde o espetador é envolvido e se torna um testemunho da intimidade do youtuber. Estes videos, de cunho relacional e motivacional, fazem parte da Esfera da Comunidade e “mostram um grau mais alto de subjetividade, intimidade e espontaneidade. Através de seus vídeos relacionais - principalmente vlogs - Bubz fala de coração para coração com seus espetadores, abordando-os como amigos” (García-Rapp, 2017, p. 237).

A conclusão a que a pesquisadora chegou com o seu estudo sobre os vloggers de beleza é que o principal objeto de desejo de um criador de conteúdo é o seu número de subscritores em permanente ascensão. Isso significa agir no sentido das pessoas, voluntariamente, demonstrarem interesse em acompanhar as atualizações do seu canal. Caso contrário, o youtuber não consegue sustentar a sua popularidade ao longo dos anos e, consequentemente, perde credibilidade junto aos anunciantes. O que se percebe, portanto, é que os

youtubers precisam de estar sempre monitorando suas audiências e analisando a eficácia do seu self

“autêntico” (Khamis et al., 2016). Eles “têm que se esforçar para manter constantemente o público trabalhando a seu favor” (Jorge et al.,2018, p. 81).

Uma audiência fiel trabalha a favor do influenciador, com altos índices de engajamento, medidos por meio de visualizações, likes e comentários. Esta audiência contribui diretamente com o processo de “celebrificação” do produtor de conteúdo (Tomaz, 2017). Desta forma, a microcelebridade precisa conquistar o espetador casual, por meio do self-branding e de uma intimidade ilusória. O discurso de mercado, da Esfera Comercial, atrai o espetador, mas é o discurso afetivo, da Esfera da Comunidade, que sustenta a audiência e assegura uma atenção duradoura.

“É sabido que os 'pequenos' influenciadores digitais podem ter audiências mais leais, onde as recomendações podem ser mais eficiente” (Jorge et al., 2018, p. 81). Os microinfluenciadores, portanto, podem ser uma aposta vantajosa para as marcas. Jonah Berger (2016) comprova esta hipótese com a pesquisa que desenvolveu juntamente com o Keller Fay Group, com mais de 6.000 pessoas nos Estados Unidos. O estudo indica que os microinfluenciadores têm 22,2 vezes mais “conversas sobre compras” com recomendações de produtos que um consumidor médio. Em relação ao comportamento de consumo da

audiência, 82% das pessoas responderam que tem grande probabilidade de seguir uma recomendação feita por um microinfluenciador. A pesquisa também identificou as cinco categorias de produtos mais recomendadas pelos microinfluenciadores: artigos esportivos, moda/calçado, fitness/nutrição/bem-estar, beleza e, por último, eletrónicos.

A rápida globalização do capitalismo de consumo avançado obviamente ampliou o escopo e a escala de todo o brand marketing, mas é a ascensão e o entrincheiramento do self-branding que possibilitou as formas como esse fenómeno liga noções dominantes de sucesso individual, responsabilidade pessoal e subjetividade a uma economia política definida quase completamente pela lógica consumista. (Khamis et al., 2016, p. 15)

Na atual cultura do consumo, portanto, um processo de “mão dupla” surgiu com as novas tecnologias digitais. Por um lado, temos pessoas comuns, prosumers, que viram um “campo fértil” nos media digitais, onde poderiam produzir conteúdo, se autopromover, atrair a atenção de um nicho específico da audiência e lucrar com a mercantilização deste público. Por outro, temos o mercado que vislumbrou nas microcelebridades uma nova forma de alcançar sua audiência, espelhando a credibilidade alcançada pelos influenciadores e capitalizando por meio das relações criadas por eles para serem íntimas e autênticas.