• Nenhum resultado encontrado

As exigências de modernização do Direito Penal

No documento MESTRADO EM DIREITO SÃO PAULO 2012 (páginas 67-69)

Capítulo 2. Bens jurídicos coletivos e a tutela penal do meio ambiente

2.4. É possível a tutela penal de bens jurídicos coletivos?

2.4.1. As exigências de modernização do Direito Penal

Como afirmado anteriormente, o processo de modernização do Direito Penal às novas formas de criminalidade provocou demandas de ampliação do seu marco jurídico-regulatório, colocando-o à frente não só de bens jurídicos individuais como também de bens jurídicos coletivos191.

Em 1975, fazendo referência aos novos interesses resultantes do desenvolvimento técnico e social, FILIPPO SGUBBI escreve a obra ―Tutela penale di interessi difusi‖ e nela chama a atenção a interesses de titularidade difusa, os quais, diferentemente do interesse público, fruível pela totalidade da população, não pertencem ―a ninguém em particular mas aos membros de uma determinada colectividade em geral, ou seja, da pessoa enquanto sujeito social indefinido mas definível‖192.

Dessa maneira, a questão concernente à legitimidade da intervenção penal para a tutela dos novos riscos tem lugar no momento em que se discute a capacidade de reação do Direito

191 Prefere-se o emprego do vocábulo ―coletivo‖ para designar a nova feição de que se reveste o bem jurídico ao termo

―supra-individual‖, porque este poderia autorizar a interpretação de que estariam em nível normativo superior à proteção do indivíduo, prescindindo da realização desta tutela para legitimar-se. Quanto à exigência de os bens jurídico-penais coletivos estarem ligados às necessidades dos indivíduos, pontua JUAN BUSTOS RAMIREZ que ―hay que definirlos a partir de una

relación social basada en la satisfacción de necesidades de cada uno de los miembros de la sociedad o de un colectivo y en conformidad al funcionamiento del sistema social‖ (Los bienes jurídicos colectivos, p. 159).

Penal aos desafios da modernidade e tem, em última análise, a finalidade de questionar a atitude do Estado diante desse fenômeno. Em outras palavras, o Estado deve manter seu papel de garantidor dos direitos fundamentais, instituídos em favor do indivíduo e por ele oponível face àquele em uma relação verticalizada, protegendo apenas bens jurídicos de cariz liberal, ou é necessário que assuma o dever de intervir nos processos socioeconômicos, reparando disfunções e passando a proteger bens jurídicos coletivos, comprometendo-se com os postulados de um Estado Social?

Colocadas essas observações, põe-se em destaque a crise por que passa a noção de bem jurídico, originalmente entendida como dotada de potencial crítico e limitador do poder de punir e tradicionalmente associada aos contornos de um Estado Clássico-liberal, resultando tal situação no enfraquecimento de suas tradicionais funções de garantia e no malogro do intento de construir um conceito material de crime.

Sem dúvida, a emergência do Estado de feição liberal, fundado no respeito à legalidade, moldou seu sistema punitivo orientado à proteção da pessoa, visando à garantia da liberdade e da propriedade contra formações monárquicas absolutistas, de existência comum naquele período histórico. Todavia, embora as criminalizações dirigidas à tutela da vida, da liberdade, da honra dentre outros compusessem o núcleo central do Direito Penal, também se tem notícia de que o Estado liberal abrigou em seu âmbito normativo-penal bens jurídicos de natureza coletiva, como a fé pública, a administração da justiça e a segurança do Estado193.

O panorama muda de feição, quando se incorpora ao Estado Democrático de Direito componentes de conteúdo social, e se assiste à passagem de um Estado de Direito Formal a um Estado de Direito Material194. A obediência à legalidade democraticamente legitimada e o mero absenteísmo estatal já não satisfazem, exigindo-se do Estado, para além da vertente negativa e garantidora da liberdade individual, uma atuação positiva visando à promoção das necessidades sociais indispensáveis ao desenvolvimento dos indivíduos, transformando-o em um Estado Democrático e Social de Direito195. É, portanto, no contexto de um Estado assim

193 BUSTOS RAMIREZ, Juan, ob. cit., p. 153. Isto é, não se negava a existência de bens coletivos, ―lo que sí sucedía era que,

al considerarse al Estado con una función simplemente de guardián, no se visualizaba la necesidad de intervenir en las disfunciones de los procesos sociales y económicos‖ (Ibidem).

194 Conforme JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, essa expressão quer designar aquele ente político ―que, por uma parte,

mantenha incólume a sua ligação ao Direito e mesmo a um esquema rígido de legalidade no que toca à definição formal dos seus pressupostos, ao processo da sua actuação constitucional e ao respeito e garantia dos direitos fundamentais; mas que, por outra parte, se mova dentro deste esquema em função de considerações axiológicas materiais de justiça na promoção de todas as condições (económicas, sociais e culturais) de livre desenvolvimento da personalidade do homem‖ (Para uma dogmática

do direito penal secundário, p. 41).

195 A expressão Estado Social e Democrático de Direito, segundo ALBERTO SILVA FRANCO, traduz-se naquela

configurado, preocupado em assegurar a convivência social de forma pacífica e igualitária – mediante a concessão a todos os indivíduos de determinados pressupostos materiais196 – que passa a adquirir revelo os denominados bens jurídicos coletivos.

Na atualidade, intensifica-se a exigência do papel interventor do Estado, sobretudo porque, como dito, está-se a viver em uma sociedade cercada de riscos e ameaças ao futuro da humanidade e vive-se constantemente um sentimento de insegurança. Em uma sociedade altamente técnica e industrializada, repleta de interações interpessoais anônimas, a discussão a respeito de tais ameaças é tão intensa que faz com que ―a sociedade ocidental vá assumindo a necessidade de intervenção penal para a prevenção de novos riscos que têm sua origem na complexidade estrutural destas sociedades‖197.

No âmbito político-criminal, propõem-se mudanças no Direito Penal e este, como reflexo de tais reivindicações, produz uma série de novos bens jurídicos de natureza coletiva, valendo-se amplamente da técnica dos crimes de perigo, como, por exemplo, a proteção da ordem econômica, a preservação do meio ambiente, a tutela das relações de consumo dentre outros, todos ligados ao asseguramento do futuro, ameaçado com a emergência dos atuais riscos sociais. Essas neocriminalizações dividem espaço com os clássicos bens jurídicos, referentes ao indivíduo e privilegiadores dos delitos de resultado, típicos do ideário liberal- burguês.

No documento MESTRADO EM DIREITO SÃO PAULO 2012 (páginas 67-69)