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As variadas maneiras de o Direito Penal se aproximar do Direito

No documento MESTRADO EM DIREITO SÃO PAULO 2012 (páginas 92-96)

Capítulo 3. As técnicas de tutela utilizadas no Direito Penal Ambiental

3.2. As relações entre o Direito Penal Ambiental e o Direito Administrativo:

3.2.1. As variadas maneiras de o Direito Penal se aproximar do Direito

Reconhecida a aproximação entre o Direito Penal e o Direito Administrativo e o seu aprofundamento, sobretudo no contexto da atual sociedade pós-industrial286, é hora de

283 No capítulo seguinte será colocada a questão de saber se o Direito Penal Ambiental verdadeiramente é efetivo e cumpre

seus reais objetivos ou se efetivamente produz apenas efeitos simbólicos e é ineficaz para conter a criminalidade ambiental.

284

Ibidem.

285 Precisamente sobre esses aspectos debruçou-se GUILHERME GOUVÊA DE FIGUEIREDO: ―Particularmente, o recurso

legislativo a figuras típicas construídas sob o modelo da acessoriedade administrativa (...) entra em tensão com o princípio constitucional da reserva legal, na medida em que a formulação de normas penais em branco retira do legislador penal o poder de determinar os limites da atuação proibida, deixando-o a cargo da Administração Pública. Por outro lado, a tipificação de crimes formulados a partir dessa mesma técnica merece redobrada atenção da perspectiva do princípio da

ofensividade, ao menos se se quiser que os crimes em questão continuem a proteger um qualquer bem jurídico, e não as

funções de controle e governo da sociedade (funções normalmente atribuídas aos entes administrativos‖ (Ob. cit., p. 198).

286 Como visto no item 2.3. deste trabalho, o fenômeno da Administrativização do Direito Penal surgiu em razão de

exigências por cobertura penal a novos bens jurídicos e da incessante angústia da sociedade pós-industrial em produzir segurança aos cidadãos, o que bem demonstra a intensa aproximação das duas disciplinas. Todavia, naquele item procurou-se

clarificar as formas de acessoriedade existentes entre estes ramos do ordenamento jurídico e os problemas jurídico-dogmáticos que derivam desta técnica de tutela legislativa. Como se verá, cada uma dessas formas de acessoriedade apresenta perfil correspondente à intensidade com que o Direito Administrativo relaciona-se com o Direito Penal, isto é, os níveis de acessoriedade e o modo como se revelam estão ligados ao grau de proximidade entre as disciplinas referidas.

Assim é que, na esteira das considerações teóricas formuladas por GÜNTER HEINE, pode-se falar em três maneiras de expressão da acessoriedade administrativa ou de três formas de relação entre o Direito Penal e o Direito Administrativo. Segundo a classificação tripartida do autor, é possível que o Direito Penal figure como: a) absolutamente dependente da Administração; b) absolutamente independente da Administração; c) relativamente dependente da Administração287.

No primeiro dos modelos mencionados, o Direito Penal é vocacionado a garantir concretamente o cumprimento das decisões jurídico-administrativas, subordinando-se às funções e aos objetivos do Direito Administrativo. Suas finalidades de proteção são, assim, desenvolvidas com a finalidade de assegurar a execução administrativa e o seu controle e supervisão por parte das autoridades e de garantir o cumprimento dos standards administrativos288, de tal maneira que o Direito Penal tem sua autonomia consideravelmente reduzida, e se presta apenas para reforçar as resoluções administrativas e a, singelamente, punir desobediências administrativas289, assumindo natureza sancionatória, avesso ao robusto entendimento doutrinário que vê no crime uma ofensa não-insignificante a um bem jurídico- penalmente tutelado.

Por sua vez, o modelo de Direito Penal absolutamente desprendido da Administração intervém autonomamente em relação a esta, já que a importância dos bens jurídicos em jogo e a gravidade da conduta lesiva ao tipo penal tornam desnecessária qualquer integração ou

contextualizar o aparecimento de novas demandas de criminalização a condutas que se acomodariam sem problemas nos limites da normatividade jurídico-administrativa, ou em outro setor do ordenamento jurídico, porque os problemas de caráter sistêmico associados a essas demandas são mais bem resolvidos por meio de uma política global de controle dos riscos, sendo insatisfatória a intervenção pontual e setorizada do Direito Penal; aqui, ao ensejo da análise da técnica da acessoriedade administrativa, o intento é diverso, embora se tenha em mente a inadiável necessidade de demarcar o espaço de atuação de cada uma das disciplinas: trata-se de dilucidar jurídico-dogmaticamente se os instrumentos legislativos decorrentes da aproximação do Direito Penal com o Direito Administrativo traduzem-se em violações aos tradicionais princípios limitadores do poder de punir estatal.

287

Acessoriedad administrativa en el Derecho penal del Medio Ambiente, pp. 293 e ss., passim.

288 Ibidem.

289 Nesse sentido, a doutrina de HELENA REGINA LOBO DA COSTA: ―Já num modelo típico de absoluta dependência, o

tipo penal objetivo se aperfeiçoa com a mera desobediência administrativa, sem questionamentos materiais relacionados à afetação do bem jurídico meio ambiente. A proteção penal está, em tal modelo, voltada à tutela imediata da atividade administrativa relacionada ao meio ambiente― (Ob. cit., p. 70).

complementação administrativa. Como não há a possibilidade de o Estado concordar com esse tipo de prática, a solução encontrada nesse modelo é a de intervir jurídico-penalmente; todavia, caso o indivíduo tenha obtido autorização legal para assim agir e tenha atuado em total conformidade com esta, em homenagem ao princípio da unidade do ordenamento jurídico e da vedação que se impõe ao Estado de tomar decisões contraditórias entre si, parece que, nessa hipótese, não é possível a imposição de sanção penal.

Após analisar o conteúdo desses dois primeiros modelos, MORALES PRAT identifica pontos importantes de fragilidade de cada um deles:

O desconhecimento da exigência de que, do ponto de vista das técnicas de tutela, suscita um modelo de intervenção penal equilibrado para a tutela do ambiente, pode produzir múltiplas conseqüências perturbadoras: 1º Na hipótese de um modelo de tutela penal do ambiente excessivamente

autônomo, produz-se a ignorância da própria lógica interna do modelo

institucional de meio ambiente pelo qual se optou extrapenalmente, com o conseqüente risco de intervenções do direito penal orientadas não tanto a salvaguardar os interesses que se reclamam social e institucionalmente quanto a por em questionamento o próprio modelo funcional de meio ambiente. 2º Pelo contrário, se se adopta um modelo de intervenção penal

excessivamente dependente do modelo institucional extrapenal de meio

ambiente (principalmente expresso através de legislação ambiental), de cunho meramente sancionador, em claro desprezo à relativa autonomia do direito penal na hora de fixar os postulados valorativo-teleológicos da intervenção punitiva, o princípio da ofensividade ao bem jurídico se desvanece. Nesta hipótese o direito penal acaba por tutelar aspectos formais da própria legislação ambiental ou meras funções administrativas de

prevenção ou controle no setor ambiental290.

No último modelo mencionado, o Direito Penal caracteriza-se por depender sua atuação da existência de normas administrativas a que o tipo penal faz referência. Nessa forma de relacionamento, o Direito Penal traça os contornos essenciais da incriminação, transferindo ao Direito Administrativo a incumbência de preencher, quer por meio de normas, quer por meio de atos concretos, a lacuna existente no tipo legal de crime.

Neste tipo de acessoriedade compete à Administração regular normativamente os aspectos técnicos relativos à proteção do meio ambiente, estabelecendo valores-limite de exploração dos recursos naturais, cujos vetores serão observados pelo intérprete da lei penal. É pertinente ressaltar, contudo, que não bastará à configuração do ilícito ambiental a mera transgressão da normatividade administrativa, sendo necessária, ainda, a demonstração de

290

La estructura del delito de contaminación ambiental, pp. 476-8, apud GUILHERME GOUVÊA DE FIGUEIREDO, p.

efetivo prejuízo ao meio ambiente decorrente da conduta do agente291, evitando-se a alteração da missão conferida ao Direito Penal de tutela de bens jurídicos fundamentais à ―tutela do bom funcionamento da Administração‖292.

Deveras, na medida que só se legitima a intervenção penal para o rechaço de condutas que violem significativamente um bem jurídico-penal digno de tutela, daí se segue ser descabida a intervenção penal com o intuito exclusivo de reprovar a mera desobediência administrativa. Nesses casos, desacompanhada aquela de um juízo de desvalor mais intenso por força do agir do agente ou do resultado por ele produzido, deverá ser excluída a via penal, porque não figura em si mesma merecedora de proteção penal a mera desconformidade aos preceitos jurídico-administrativos293, isso se não se quiser usar o Direito Penal como instrumento político-promocional das funções administrativas de proteção ao meio ambiente.

Essas considerações tornam verdadeira a assertiva de que, embora seja indispensável a utilização pelo Direito Penal de conhecimentos técnicos oriundos da ordenação administrativa, não é possível ―una penalización de todo el Derecho Administrativo‖294, de maneira que o comportamento daquele que descumpre obrigações administrativas, para tornar-se jurídico-penalmente relevante, deve ser dotado de ―cierta idoneidad para dañar el bien penalmente protegido‖295.

Por outro lado, não há como ignorar que o reverso da linha de raciocínio exposta chama atenção para aqueles casos em que, a despeito de o agente ter ocasionado grave perturbação ao bem jurídico-ambiental, sua atuação pautou-se pela estrita obediência aos regramentos – gerais e individuais – expedidos pela autoridade administrativa. Dessa forma,

291 Na mesma linha de entendimento GÜNTER HEINE vai dizer que ―no basta la mera desobediencia administrativa, o sea,

la contravención del ordenamiento jurídico-penal – sin tener en cuenta sus efectos ecológicos – sino que se requieren acciones con consecuencias que (por lo menos potencialmente) puedan perjudicar al medio ambiente‖ (Ob. cit., p. 296). Em sentido próximo, adverte HELENA REGINA LOBO DA COSTA que esse modelo, ―para que não se volte à mera tutela da atividade administrativa, precisa sempre exigir a demonstração do perigo ou da lesão ao bem jurídico como condição necessária para a configuração objetiva do modelo típico‖ (Ob. cit., p. 71).

292 HELENA REGINA LOBO DA COSTA, em complemento à ideia antes citada, conclui que ―é preciso ter sempre

presente, no tratamento do tipo penal, que o recurso ao direito administrativo se dá por exigências da própria matéria, mas que o direito penal não se transmuda, com isso, em meio de tutela do bom funcionamento da administração ou em instrumento para assegurar a eficácia do sistema administrativo ambiental‖ (Ibidem).

293 ―En cuanto la más severa de las reacciones del ordenamiento jurídico, la intervención penal ha de presuponer ese injusto

especialmente diferente del que conlleva la mera aplicación de una sanción administrativa y relacionado con un bien jurídico valioso en sí mismo, un interés que trascienda la esfera de las acciones de la Administración pública y coincida con un valor constitucional. De lo contrario, el Derecho penal no sólo se aleja de su finalidad de protección de bienes jurídicos, sino que se limita a incriminar comportamientos ilegales sin diferenciar el merecimiento o no de pena‘ (MATA BARRANCO, Norberto J. de la; MATA BARRANCO, Ignacio de la, La figura de la autorización en la lesión de bienes jurídico-penales de carácter

supraindividual, p. 494).

294 Ibidem. 295

Idem, p. 495. Converge para essa forma de pensar a doutrina de ANABELA MIRANDA RODRIGUES, para quem, nesse

tipo de acessoriedade administrativa, ―a ilicitude administrativa é condição necessária mas não suficiente da punição. A intervenção penal verificar-se-á, pois, quando estejam em jogo um desvalor adicional e qualificado, isto é, um desvalor que vá para além do puro ilícito administrativo‖ (Direito Penal do Ambiente: uma aproximação ao novo direito português, p. 22).

colocam-se os seguintes questionamentos: deve ser castigado em âmbito penal quem comprovadamente põe em prática processos causais lesivos ao ambiente, mas que, ao mesmo tempo, detém permissão da Administração Pública para cometer tais ações lesivas? É viável juridicamente sustentar que deve ser excluída a intervenção penal porque esse indivíduo causou um risco permitido?296 E se a autorização administrativa padecer de algum vício, ela poderá continuar a produzir efeitos jurídicos, notadamente o de permitir ao particular que persista impunemente a explorar os recursos naturais? Como se vê, são questões complexas e que surgem quando se projeta no sistema punitivo estruturas pertencentes à ambiência prática do Direito Administrativo, que são organicamente bem distintas das do ordenamento penal297.

Sem embargo das dificuldades dogmáticas decorrentes dessa maneira de legislar, os questionamentos acima formulados, que são atinentes à acessoriedade a respeito do ato administrativo, e os problemas oriundos da acessoriedade relativa ao Direito Administrativo, nomeadamente o contraste entre a adoção de leis penais em branco298 e o princípio da reserva legal, bem assim a possibilidade de esta forma de integração normativo-administrativa poder macular o princípio jurídico-organizatório da separação de funções estatais, serão em seguida objeto de análise e enfrentamento.

3.2.2. Formas de revelação da acessoriedade administrativa e os problemas dogmáticos

No documento MESTRADO EM DIREITO SÃO PAULO 2012 (páginas 92-96)