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Capítulo 1. Vinculação da tutela penal à proteção de bens jurídicos

1.3. A proteção de bens jurídicos como missão do Direito Penal

1.3.5. O neokantismo

Em momento posterior ao tratamento positivista da noção de bem jurídico, assiste-se à introdução da linha neokantiana de pensamento, revestida de método peculiar, referida a valores59, responsável pela penetração nas categorias integrantes do delito de conteúdos valorativos. Com ela, promove-se a separação do ser, inerente às ciências naturais, do dever

ser, típico das ciências culturais, colocando-os em compartimentos estanques e

incomunicáveis60, procedimento a que se nominou dualismo metodológico.

O conceito de bem jurídico construído por FRANZ VON LISZT, com apoio no mundo exterior, nos interesses humanos vitais, apreensível materialmente, é substituído por uma visão espiritualizada e com viés normativo propugnada pelo neokantismo, resultando na perda de sua capacidade crítica e de orientação ao legislador61.

Em 1919, HONIG publica seu trabalho sobre O Consentimento do Ofendido e inaugura uma nova fase na trilha histórica do bem jurídico. Influenciado pela linha

57―A justificação da pena finalística está na necessidade dela para a manutenção da ordem jurídica e conseqüentemente

para a manutenção do Estado‖ (Ob. cit., p. 159).

58 ―Também será de salientar a continuidade do pensamento de Liszt em relação aos ideais da concepção iluminista, no que

diz respeito à defesa da liberdade e individualidade pessoal, nomeadamente através da defesa de limites ao poder punitivo estadual‖ (CUNHA, Maria da Conceição Ferreira da, ob. cit., p. 63). LISZT procurou conciliar a defesa da sociedade com a defesa da liberdade, visto que além das exigências de defesa social, dizia também cumprir ao Direito Penal ser a Magna Carta do delinquente.

59 LUIS GRECO assim descreve o método próprio da linha neokantiana: ―Com a filosofia de valores do sudoeste alemão

(Windelband, Rickert), ao lado das ciências naturais são revalorizadas as agora chamadas ciências da cultura, que voltam a merecer a denominação de ciência, sobretudo por possuírem um método próprio: o método referido a valores‖ (Introdução à

dogmática funcionalista do delito, p. 217).

60 Conforme a lição de FÁBIO ANDRÉ GUARAGNI, ―a linha neokantiana de pensamento, ao revalorizar esta distinção

metodológica, promoveu verdadeiro racha entre os universos do ser, referido a fenômenos da natureza, e do dever-ser, referido a valores. Ambos os universos deveriam permanecer separados e incomunicáveis, porquanto cada qual era guiado por métodos sem qualquer traço comum, compreendendo a realidade a partir de enfoques distintos‖ (As teorias da conduta

em direito penal, p. 103).

61 Conforme MARIA DA CONCEIÇÃO FERREIRA DA CUNHA, ―a evolução ulterior foi no sentido da espiritualização e

normativização do conceito de bem jurídico, libertando-se, por um lado, da sua matriz empírico-naturalista – como ‗objecto do mundo exterior‘, de natureza material, apreensível pelos sentidos – e, por outro, da sua potencialidade crítica, delimitadora, transistemática‖ (Ob. cit., p. 64).

neokantiana, propõe uma concepção metodológica ou teleológica do bem jurídico, direcionada ao reconhecimento das finalidades das prescrições penais62, o que acaba acarretando sua completa identificação com a ratio legis das normas penais63.

A função do bem jurídico de limitar o jus puniendi é enfraquecida e substituída por uma função meramente interpretativa, passando a se confundir com o próprio conteúdo da norma. Deixa o bem jurídico de exercer, portanto, qualquer contribuição crítica e torna-se uma categoria jurídica irrelevante, quase desnecessária64.

Reduzida a noção de bem jurídico à função interpretativa, o crime passa a ser visto como mera violação de um dever65, sendo desimportante a identificação da ofensividade da conduta do agente para configuração do ilícito penal, já que a esta concepção interessa apenas a vigência formal da norma. Em síntese, o delito passa a ser constituído ―(a) pela violação de um dever, ou (b) pelo desvalor de uma intenção interior, ou (c) pelo rompimento da fidelidade do sujeito ou, ainda, (d) pela violação de um valor cultural‖66.

Valendo-se da debilidade apresentada pela nova versão do bem jurídico, antes considerada excessivamente liberal pelos representantes da Escola de Kiel67, a ditadura nacional-socialista estabelece um Direito Penal da vontade de cunho ético, dirigido ao núcleo de proteção relacionado ao são sentimento do povo68, tudo isso à custa da ausência de potencial crítico de uma noção de bem jurídico que se confunde com a própria norma.

62 Nesse sentido, a doutrina de MANUEL DA COSTA ANDRADE: ―Em síntese, segundo a formulação de HONIG, o bem

jurídico é o ‗fim reconhecido pelo legislador nas prescrições penais na sua formulação mais breve‘, ‗aquela síntese categorial com a qual o pensamento jurídico tenta captar o sentido e o fim das singulares prescrições penais‘‖ (A nova lei dos crimes

contra a economia [Dec.-Lei n. 28/84, de 20 de Janeiro], p. 393).

63 ―Sob a influência directa da filosofia neo-kantiana vai assistir-se ao triunfo duma concepção metodológica-teleológica do

bem jurídico, doravante identificado com o telos ou a ratio legis das normas incriminatórias. O bem jurídico converte-se, assim, numa categoria omnicompreensiva à qual se reconduzem todos os elementos relevantes da factualidade típica, inclusive as modalidades de acção e as atitudes pessoais do agente‖ (Idem, p. 392).

64 Conforme enfatiza MARIA DA CONCEIÇÃO FERREIRA DA CUNHA, ―é claro que com este entendimento de bem

jurídico ele passa a identificar-se com o conteúdo da norma, perdendo completamente a autonomia e transformando-se assim num ‗conceito absolutamente supérfluo‘, sem qualquer capacidade dogmática ou crítica‖ (Ob. cit., p. 69).

65―El cambio que se produjo en la relación entre el Estado y el ciudadano, a causa de la revolución nacional-socialista, puso

como elemento central de la concepción de delito a la violación del deber de fidelidad al Estado ético, personalizado por el Fuhrer‖ (FIANDACA, Giovanni; MUSCO, Enzo, ob. cit., p. 37).

66 GOMES, Luiz Flávio, Norma e Bem Jurídico no Direito Penal, p. 80.

67 Todavia, ao notarem a falta de ressonância crítica do bem jurídico no labor legislativo, a Escola revisou seu pensamento:

―Especialmente a Escola de Kiel (Kieler Schule), que refutou, num primeiro momento, o dogma do bem jurídico por ser incompatível com as diretrizes do Estado totalitário, para admiti-lo posteriormente, quando perdeu sua identidade e não passava de instrumento inócuo. Essa Escola – representada, principalmente, por F. Schaffstein e G. Dahm – sustentou o chamado Direito Penal da vontade (Willensstrafrecht) ou Direito Penal do autor (Taterstrafrecht), procurando construir uma base teórica para o Direito Penal do nacional-socialismo‖ (PRADO, Luiz Regis, ob. cit., p. 33).

68 ―El ‗sano sentimiento popular‘, impregnado de valores éticos, deviene en el criterio de determinación de la lesividad

criminal de los comportamientos punibles, por lo que se asiste a una progresiva absorción de la esfera del derecho en la esfera de la ética‖ (FIANDACA, Giovanni; MUSCO, Enzo, ob. cit., p. 37).

Vê-se, assim, que a base neokantiana de pensamento caracterizou-se por favorecer a introdução de uma noção meramente formal das incriminações, assentando-se o Direito Penal mais na proibição de condutas contrárias a normas valorativas dotadas de um dever respectivo que propriamente na proscrição de condutas ofensivas à convivência comunitária pacífica. Nesse modelo, a missão do Direito Penal não radica tanto na punição de fatos, mas, ao contrário, concentra-se mais no modo de ser do agente.

Por não oferecer qualquer base de legitimação aos tipos legais de crime e de se demitir da importante tarefa de estabelecer limites à função legislativa, a linha neokantiana foi fortemente contestada pela linha teórica que se seguiu após a segunda guerra mundial, ancorada na obediência aos vetores constitucionais e no respeito ao indivíduo, traduzidos, na seara penal, numa concepção material do ilícito penal e na colocação de limites ao legislador, revitalizando, assim, a noção de bem jurídico.

No documento MESTRADO EM DIREITO SÃO PAULO 2012 (páginas 31-33)