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Posições legitimadoras

No documento MESTRADO EM DIREITO SÃO PAULO 2012 (páginas 69-75)

Capítulo 2. Bens jurídicos coletivos e a tutela penal do meio ambiente

2.4. É possível a tutela penal de bens jurídicos coletivos?

2.4.2. Posições legitimadoras

Não há como negar a existência de novos objetos de proteção por parte do Direito Penal, cuja particularidade reside em seu caráter massivo e universal198, e que eles são fruto

que provém da vontade geral expressa pelo povo e de um Estado social que interfere, direta e imediatamente, no jogo social; é a fusão entre o Estado-guardião do cidadão e do Estado intervencionista nas relações sociais, a que se acresce a idéia da democracia, isto é, do Estado que a exclui a prepotência e é, por sua formação e por seu conteúdo organizacional, democraticamente, legitimado‖ (Código Penal e sua interpretação: doutrina e jurisprudência, p. 34).

196 DÍEZ RIPOLLÉS, José Luis, La contextualización del bien jurídico protegido en un derecho penal garantista, p. 26. 197 CORCOY BIDASOLO, Mirentxu, ¿Cabe limitar la expansión del Derecho Penal?, p. 154.

198 Na ótica de ROLAND HEFENDEHL, duas características são essenciais para a definição do conceito de bem jurídico

coletivo, quais sejam, ―no exclusión [Nicht-Ausschliessbarkeit] en el uso y de no-rivalidad [Nicht-Rivalität] en el consumo‖ (Ob. cit., p. 188). Além disso, para diferenciar os bens jurídicos coletivos dos bens jurídicos individuais o autor também utiliza o critério da não-distributividade. De acordo com esta noção, ―un bien será colectivo si es conceptual, real o jurídicamente imposible dividir este bien en partes y asignárselas a los individuos como porciones‖ (Idem, p. 189).

do desenvolvimento social e tecnológico referido199. Caracterizado o Direito Penal como um dos instrumentos de controle social de que dispõem as sociedades organizadas, é razoável que se lhe atribua o dever de tomar atenção às novas situações impostas pelo desenvolvimento da técnica, investindo para tanto na criação de bens jurídicos coletivos200. Todavia, o consenso aqui atingido destoa do atual estado das discussões que se travam quanto ao conteúdo e a forma de concreção dos bens jurídicos coletivos.

JUAN BUSTOS RAMIREZ201, por exemplo, defende que os bens jurídicos coletivos guardam uma relação de complementaridade com os bens jurídicos individuais e servem ao funcionamento do sistema, ou melhor, aos processos ou funções que este deve cumprir, possibilitando-se o asseguramento material das bases e condições das relações microssociais, dividindo-os da seguinte forma: a) Bens jurídicos institucionais: estão ligados a determinadas instituições básicas para o funcionamento do sistema e estabelecem vias ou procedimentos organizativo-conceituais para assegurar os bens jurídicos pessoais (administração da justiça, fé pública, segurança no trânsito, por exemplo, que são seus objetos de proteção); b) Bens jurídicos coletivos: destinam-se à satisfação de necessidades socioeconômicas e à participação de todos no processo econômico social; c) Bens jurídicos de controle: seu emprego é válido à organização do aparato estatal, visando ao cumprimento de suas funções, constituindo exemplos de tais bens os delitos contra a autoridade e contra a segurança interior e exterior.

ROLAND HEFENDEHL elaborou sistematização própria dos bens jurídicos coletivos, partilhando-os em estruturas diversas conforme a finalidade visada pela correspondente incriminação, a fim de adequá-las a específicas estruturas delitivas e visando à eliminação de bens jurídicos coletivos aparentes. Desse modo, o autor distingue três ordens de bens jurídicos coletivos: a) os delitos de proteção do Estado; b) os delitos protetivos dos

199 Nesse sentido, JUAN BUSTOS RAMIREZ considera que ―resulta innegable el surgimiento de entidades nuevas de

protección del Derecho penal, cualquiera sea el nombre con el cual se les quiera designar. Su particularidad residiría en que acentúan el carácter masivo y universal‖ (Ob. cit., p. 158).

200 Nesse sentido, manifesta-se BERNARDO FEIJOO SANCHEZ: ―De acordo com o que foi dito, o direito penal, como

instrumento de controle social de uma determinada sociedade, não pode ser impermeável nem às novas situações que os avanços técnicos vão configurando, nem à existência de interesses coletivos relacionados com o papel social e intervencionista do Estado‖ (Ob. cit., p. 37). No particular, AUGUSTO SILVA DIAS também tem posição favorável à modernização do Direito Penal, já que ―seria publicamente inaceitável que novos bens reputados essenciais à convivência ficassem desguarnecidos de tutela ou fossem inadequadamente protegidos por outros ordenamentos sancionatórios, em nome da dita pureza iluminista do Direito Penal‖ (“Delicta in se” e “delicta mere prohibita”, p. 272). O erro em que pode incorrer o novo Direito Penal, resultando em sua crise de legitimidade, reside precisamente em sua funcionalização, administrativização e desformalização (Idem, p. 259).

recursos estatais; c) os recursos ambientais202, propugnando, para cada qual, uma estrutura delitiva determinada203.

Há quem atribua aos bens jurídicos coletivos uma função de pioneirismo, como o faz KLAUS TIEDEMANN, vocacionando-os à sedimentação de novos valores na sociedade. Coerente com sua linha de pensamento, o autor propõe um novo olhar sobre o princípio da subsidiariedade do Direito Penal, convicto de que nem sempre a intervenção penal é mais gravosa que a sanção administrativa, conferindo-se, assim, uma extensa discricionariedade de avaliação ao legislador quanto à escolha do meio de proteção mais idôneo, que, de todo modo, deve ser respeitada204.

Fala-se, também, na utilização dos crimes de perigo abstrato, técnica de que se costuma valer o legislador para proteção dos bens jurídicos coletivos, para o fim de tutelar a segurança, elevando-a à condição de bem jurídico. URS KONRAD KINDHÄUSER projeta seu pensamento mirando a segurança que deve existir na relação entre o bem jurídico e o seu beneficiário, sem a qual se reduz o valor do bem protegido205. A intervenção penal mediante o uso dos crimes de perigo abstrato presta-se a castigar condutas que representem um menoscabo às condições de disposição descuidada dos bens, impedindo seu desenvolvimento seguro e o seu gozo tranquilo e racional206.

Embora seja importante o reconhecimento da existência de novos bens jurídicos e o esmiuçar de seus contornos, entende-se de igual relevância – quiçá até mesmo de maior relevância – perquirir de que forma se concretizará a proteção desses bens. Quer dizer, os bens jurídicos coletivos têm autônoma existência e prescindem da lesão – imediata ou mediata

202

Uma teoría social do bem jurídico, pp. 112-3.

203 Como será visto no próximo capítulo, o autor citado é favorável à adoção da lógica da acumulação nos tipos penais

concernentes a condutas ofensivas ao meio ambiente, combinando essa técnica delitiva com a estrutura do bem coletivo ambiental.

204 GRECO, Luís, ob. cit., p. 05. GIOVANNI FIANDACA e ENZO MUSCO, a propósito do princípio da subsidiariedade,

dividem-no em duas concepções: a) em sentido estrito: a tutela penal é rejeitada se a lesão pode ser impedida por meios estranhos ao Direito Penal; b) em sentido amplo: ainda que a regulação extra-penal possa regular adequadamente determinado conflito social, recorre-se à tutela penal com o objetivo de reafirmar mais energicamente o valor protegido pela norma. Posicionam-se os autores italianos favoravelmente à adoção da subsidiariedade em sentido estrito (Ob. cit., pp. 57-8). Ao cotejar o pensamento de KLAUS TIEDMANN com a classificação delineada, pode-se afirmar que ele se aproxima mais da ótica ampla do princípio da subsidiariedade. Embora o autor ponha em destaque o caráter mais gravoso que uma sanção administrativa pode assumir em comparação a uma sanção penal, apresentando-se a intervenção penal como de menor intensidade nesses casos, ele acentua a função de reforço de novos valores sociais que o Direito Penal pode exercer, de maneira que se posiciona favoravelmente a uma maior ampliação deste ramo do Direito, perdendo a noção de bem jurídico, ao nosso juízo, qualquer utilidade crítica e limitadora, sendo utilizada, ao contrário, com um sentido criminalizante.

205

Derecho penal de la culpabilidad y conducta peligrosa, p. 81.

206

– de interesses individuais, constituindo estes uma mera ratio legis, ou sua configuração típica reclama a afetação de bens pessoais?207

Do lado de quem propugna por uma concepção autônoma dos bens jurídicos coletivos, cuja existência independe da causação de danos a interesses individuais, está GÜNTHER STRATENWERTH, que ancora seu pensamento a respeito dos riscos da modernidade no necessário abandono da visão essencialmente antropocêntrica dos bens jurídicos e na proteção das gerações futuras e da natureza em si considerada. Portanto, para esse autor, é necessário ―criar um direito penal referido ao futuro, que seria um caminho intermediário entre a dissolução funcionalista de todos os princípios e a miopia individualista-liberal que pugna por um retorno a um suposto direito penal clássico‖208.

GÜNTHER STRATENWERTH redireciona a missão do Direito Penal à tutela de contextos da vida enquanto tais sem que seja ―necessário reconduzir a necessidade de protecção a interesses (pessoais) de qualquer dos participantes num dado contexto (nomeadamente nos domínios do ambiente ou da genética)‖, reconhecendo, inclusive, delitos destituídos de bem jurídico209. Nesse sentido, propõe o autor a proteção jurídico-penal de ―‗normas de conduta referidas ao futuro‘ sem ‗retro-referência a interesses individuais‘‖210.

Por sua vez, KLAUS TIEDEMANN, também favorável à tutela de bens jurídicos coletivos desconectada de interesses individuais, sustenta sua posição com apoio no modelo do Estado Social, visto que esta configuração sociopolítica impõe aos agentes públicos deveres de proteção e medidas de intervenção no processo socioeconômico. Nesse contexto, ao Estado compete assumir tarefas interventivas visando à garantia do conjunto de pressupostos naturais das pessoas, considerados como valores comunitários autônomos (por

207 Correlata a essa indagação, a discussão relativa à figura dos crimes de perigo abstrato será analisada em tópico próprio no

próximo capítulo.

208 GRECO, Luís, ob. cit., p. 10.

209 Neles seriam censuradas violações a normas comuns de comportamento. É de se ressaltar, porém, que GÜNTHER

STRATENWERTH não é absolutamente contrário à ideia de proteção de bens jurídicos, senão que é favorável ao desenvolvimento de um sistema penal cujas normas não dependam necessariamente dessa idéia: ―Claro que é também importante proteger a liberdade pessoal, e este é o âmbito legítimo da ideia de bem jurídico. Mas igual relevância tem o caráter geral dessa sociedade, de modo que nós com ela nos identifiquemos, que nela encontremos algum sentido, também tendo em vista tarefas que vão bem além da proteção de interesses individuais, como realizar um mínimo de justiça social e preservar as condições de vida de gerações futuras. Para conseguir isso, não é necessário ‗diluir‘ o bem jurídico até que ele se torne irreconhecível. Apenas tem-se de reconhecer que também normas incapazes de serem reconduzidas a essa ideia podem pertencer à nossa cultura de convivência‖ (Sobre o Conceito de “Bem Jurídico”, p. 115).

210 FERNANDES, Paulo Silva, ob. cit., p. 81. Em sentido próximo ao entendimento de GÜNTHER STRATENWERTH está

o pensamento de CORCOY BIDASOLO: ―Por consiguiente, para resolver la cuestión del ‗aseguramiento del futuro con los medios del Derecho Penal‘, proponemos aquí una ‗tercera vía‘, sin que ello obedezca a una concepción del Derecho Penal puramente funcionalista, recomendando ir más allá de la protección de bienes jurídicos anclada en el pensamiento antropocéntrico, protegiendo jurídico-penalmente ‗normas de conducta referidas al futuro‘ sin ‗retro-referencia a intereses individuales‘‖ (CORCOY BIDASOLO, Mirentxu, ob. cit., p. 157).

exemplo, o funcionamento da ordem econômica ou a preservação do meio ambiente), independentemente de garantir a indenidade de concretos interesses individuais211.

Propugnando por um Direito Penal diferenciado do tradicional ou de justiça, atrelado aos clássicos direitos, liberdades e garantias fundamentais, JORGE DE FIGUEIREDO DIAS defende a inclusão nos quadros do Direito Penal de um braço protetivo dos direitos sociais e econômicos, conformador de um Direito Penal Administrativo, também nominado como Direito Penal secundário. No tocante a este, a personalidade do homem é desenvolvida como fenômeno social, atuando ele como integrante da comunidade e em dependência recíproca dela212.

De acordo com o autor, a autonomia dos dois âmbitos de proteção do Direito Penal está escorada na dupla maneira de realização do homem na comunidade. De um lado, sua realização pessoal, devendo o Estado atuar no sentido de proteger a esfera individual da pessoa; por outro, o homem realiza-se na comunidade sendo uma parte do todo, o que obriga o Estado a atuar positivamente visando à satisfação dos interesses inerentes à conformação comunitária213, aí residindo a distinção entre o Direito Penal clássico e o Direito Penal secundário214.

Frente à sociedade de risco, dominada por uma série de fenômenos – naturais e sociais – que impõem diversas ameaças ao futuro da humanidade, muitas imprevisíveis e de difícil controle e visibilidade, JORGE DE FIGUEIREDO DIAS anuncia a morte da razão técnico- instrumental calculadora215, exigindo do Direito Penal sua parcela de contribuição na contenção dos novos riscos globais, que poderá contar com a punição dos entes coletivos, a adoção dos delitos cumulativos e a criação de delitos de desobediência para fazer frente às necessidades de proteção das gerações futuras216.

211 GRECO, Luís, ob. cit., p. 05.

212 ―Também no direito penal administrativo, pois como no de justiça, se trata de livre desenvolvimento da personalidade do

homem e, assim, de autênticos bens jurídicos. Só que, no âmbito do direito penal administrativo, a actuação da personalidade do homem apenas é possível como fenómeno social, em comunidade e em dependência dela‖ (Para uma dogmática do

direito penal secundário, p. 46).

213

Idem, p. 48.

214 ―A distinção relativa entre direito penal clássico e secundário – ou entre direito penal de justiça e direito penal

administrativo – vai pois buscar a sua legitimação última à dupla função desempenhada pela personalidade do homem no contexto material do Estado de Direito: surgindo embora sempre como concreto e socializado, o homem realiza a sua personalidade na dupla esfera da sua acctuação pessoal e da sua acctuação comunitária, sem que uma se sobreponha à outra no seu relevo ou na sua validade originária; à protecção daquela se dirige o direito penal clássico (e, só neste sentido, ‗primário‘), à protecção desta o direito penal administrativo (hoc sensu, ‗secundário‘)‖ (Idem, p. 50).

215 JORGE DE FIGUEIREDO DIAS assinala que ela foi responsável por trazer ―um progresso espiritual e material espantoso

à humanidade e lhe deixou um legado irrenunciável de razão crítica, de secularização, de direitos humanos; mas que ao mesmo tempo a colocou nos becos sem saída do modelo do homo aeconomicus e da crença ingénua no progresso material ilimitado‖ (O papel do Direito Penal na proteção das gerações futuras, p. 1.124).

216

Propõe, enfim, a proteção – fragmentária e subsidiária – de bens jurídicos coletivos em si considerados, cuja característica maior é a possibilidade de gozo de todos os indivíduos. Essa possibilidade de gozo por todos, apesar de expressar um interesse individual na manutenção do bem jurídico coletivo, não significa uma relação de dependência entre as espécies de bens jurídicos, ou seja, que a configuração de um bem coletivo dependa da satisfação concreta de interesses pessoais. Ao contrário, como pontua JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, deve o bem coletivo ser dotado de autonomia, visto que a relevância deste advirá ―precisamente da potencial multiplicação indeterminada de interesses de toda e qualquer pessoa, se bem que não individualizáveis em concreto‖217, aproximando-se sua concepção de um Direito Penal do comportamento218.

Crítico contundente da necessidade de referência individual para legitimação dos bens jurídicos coletivos, como o meio ambiente, por exemplo, BERND SCHÜNEMANN compartilha do pensamento de que se deve partir da noção de contrato social para fundamentar o sistema punitivo219, ideia surgida com os ideais iluministas, objetando, contudo, a consideração de que somente os indivíduos que vivem em um determinado momento sejam integrantes deste contrato, já que nele também se devem incluir as futuras gerações220.

Tendo em conta as dimensões das distintas potencialidades de lesão de uma determinada sociedade em função de seu estado de desenvolvimento tecnológico, defende o autor a mudança de um Direito Penal de classe baixa para um Direito Penal de classe alta como resposta às ameaças típicas da sociedade industrial pós-moderna, concedendo à proteção do meio ambiente assento privilegiado na política criminal moderna221. De fato, incisivo a esse respeito, o autor considera que, diante da excessiva e constante exploração dos recursos naturais, a defesa de um Direito Penal centrado nos delitos patrimoniais, atribuindo à esfera administrativa a maior parte das lesões contra o meio ambiente, ―tiene que parecer

217

Idem, p. 1.132.

218 ―Neste sentido acabo por me aproximar, de certo modo, da ideia segundo a qual a tutela jurídico-penal das gerações

futuras passa pela assunção de um direito penal do comportamento em que são penalizadas e punidas puras relações da vida

como tais‖ (Idem, p. 1.138).

219 ―O ancoramento na concepção do contrato social, à luz da ideia reitora de que o Estado deve assegurar a possibilidade do

livre desenvolvimento do indivíduo, fornece uma linha de orientação a respeito de o que pode o Estado proteger por meio do Direito Penal‖ (O princípio da proteção de bens jurídicos como ponto de fuga dos limites constitucionais e da interpretação

dos tipos, p. 37).

220 ―La idea en su conjunto sólo puede llevarse a la práctica de modo coherente si se concibe como parte del contrato a toda la

humanidad, esto es, incluyendo también a las generaciones futuras‖ (Consideraciones críticas sobre la situación espiritual de

la ciencia jurídico-penal alemana, p. 193).

221

atávico‖222. Defende, de igual maneira a KLAUS TIEDEMANN, a relativização do princípio da ultima ratio do Direito Penal, por considerar que a sanção penal em alguns casos pode não se mostrar como a mais severa223.

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