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1.2 Os enunciados destacados por natureza

1.2.4 As fórmulas discursivas

O conceito de fórmula discursiva no âmbito dos estudos da Análise do Discurso foi engendrado por autores como Krieg-Planque (2010) e Maingueneau (2008). Maingueneau (2008), ao discorrer sobre esse conceito, explica que se trata de enunciados curtos que são facilmente memorizados e reutilizáveis, podendo circular de forma relativamente restrita — como é caso de uma disciplina acadêmica, por exemplo — e de forma ampla, quando são reconhecidos por grande número de locutores os quais distribuem-se em diferentes espaços sociais. O estudioso francês assevera que a fórmula pode apresentar dois tipos de funcionamento distintos: há aquelas que operam de maneira autônoma e aquelas que são citadas a fim de marcar um posicionamento singular, opondo-se a outros posicionamentos. A fórmula autônoma é capaz de ser interpretada, segundo o linguista, em seu sentido imediato, sem que os interlocutores necessitem ser conhecedores do tipo de discurso que deu origem a ela. A título de exemplificação, o referido autor traz o enunciado retirado da Arte poética de

33 Boileau (1674): ―o que se concebe bem se enuncia claramente‖. Para Maingueneau (2008), tal fórmula é utilizada em diferentes circunstâncias sem, necessariamente, precisar ser identificada a sua gênese. É o que acontece, por exemplo, com a frase ―Há algo de podre no reino da dinamarca‖, cuja autoria é de Shakespeare, no entanto, dada a ampla circulação desse enunciado, ele é atribuído à sabedoria das nações.

Os enunciados que funcionam como fórmula, muitas vezes, explica Maingueneau (2008), apresentam-se destacáveis no texto que lhe deu origem, isto é, possuem uma pré- disposição para tornarem-se fórmulas. Ao discorrer sobre as fórmulas filosóficas, o estudioso revela que a Filosofia produz textos que possuem enunciados podendo ser imediatamente destacados, funcionando como espécies de slogans, cuja função é servir de regra de vida ou dar auxílio à meditação. Nesse sentido, tais enunciados são postos como ―chaves‖ no texto em que são inseridos e, muitas vezes, condensam um dogma ou uma prática e têm a pretensão de sair dos textos dos quais foram proferidos já com tal status. Estar em destaque implica gerar diferentes interpretações, direcionar o olhar do sujeito para diferentes lugares. Dessa perspectiva,

Não basta constatar que determinados enunciados, que funcionam como fórmulas, foram destacados de um texto. Esse trabalho de destaque não se aplica a qualquer material verbal; numerosas fórmulas — de fato, a maior parte delas — correspondem a enunciados que, em seu texto de origem, se apresentavam como destacáveis. (MAINGUENEAU, 2008, p. 76)

A noção de fórmula já serviu de base para o desenvolvimento de trabalhos de outros estudiosos em domínios de estudos distintos dos discursivos, como Jean-Pierre Faye que versou acerca da fórmula ―Estado total‖; Pierre Fiala e Marianne Ebel, que desenvolveram pesquisas sobre as fórmulas ―influência e superpopulação estrangeiras‖ e ―xenofobia‖. No âmbito do discurso temos Alice Krieg-Planque, que analisou a fórmula ―purificação étnica‖. Para a referida autora: ―por fórmula, designamos um conjunto de formulações que, pelo fato de serem empregadas em um momento e em um espaço público dados, cristalizam questões políticas e sociais que essas expressões contribuem, ao mesmo tempo, para construir.‖ (KRIEG-PLANQUE, 2010, p.9).

Maingueneau (2008) constata que os enunciados destacáveis têm proliferado de forma especial na mídia, visto que os meios de comunicação social favorecem que enunciados tornem-se fórmulas, graças ao seu poder de circulação.

Uma sequência que se torna uma fórmula precisa ser falada, retomada, transformada para figurar como tal. Além disso, há a questão de que tal sintagma não possui o mesmo

34 significado para todos os sujeitos, dependendo, então, do contexto em que está inserido, do domínio de memória de que faz parte. Diante disso, a fórmula é marcadamente heterogênea, já que possui um funcionamento polêmico, ou seja, como essa fórmula se caracteriza, se opera como um referente social, em quais formações discursivas circula, que opinião desperta mostrando, assim, que é heterogênea.

Essa heterogeneidade também poderá ser vista na própria fórmula, uma vez que ―desliza‖ para outros enunciados. Além disso, há outros discursos que podem ser considerados semanticamente relacionados a esse sintagma, fazendo com que ele circule e tome o status de fórmula. Segundo Schepens (2009, p. 7), afirmar que as fórmulas circulam ―é dizer que as pessoas falam delas, que seus lugares de surgimento se diversificam, que elas se tornam um objeto partilhado do debate.‖ Para o autor, nesse movimento discursivo, aparecem proliferações lexicais da fórmula que atestam sua circulação.

Krieg-Planque (2010), ao estudar a fórmula discursiva, revela que seu propósito é captar um instante da longa duração que segue o uso das palavras. Para a autora, esse trabalho consiste na análise de um momento da ―vida da palavra‖. Trata-se de estudar os momentos, na história dos discursos, em que essas palavras entraram em conjunção para formar uma fórmula.

Krieg-Planque (2010) pondera que não é qualquer termo que pode ser considerado uma fórmula. Segundo a autora, as fórmulas possuem propriedades específicas que determinam seu caráter formulaico, a saber: a) ter caráter de cristalização; b) ter caráter discursivo; c) ter caráter de referente social; d) ter caráter polêmico. Se essas quatro propriedades se aplicarem a um sintagma, a uma palavra, a uma pequena frase que circula em diferentes campos (político, midiático, etc) podemos afirmar que estamos diante de uma fórmula.

Em face dessas quatro condições, o analista tem um percurso analítico a realizar: saber se o sintagma escolhido é amparado por um significante que tenha uma relativa estabilidade, isto é, se ele é estável. Isto possibilita que seja feito um trabalho de seguir os rastros de sua forma, afirma Krieg-Planque (2010). A cristalização do sintagma atesta a existência de uma fórmula. É pela cristalização que a fórmula adquire caráter ativo e ao mesmo tempo estável.

Além disso, segundo a autora, é preciso observar se a sequência em análise está posta em relevo no cenário social. Para tanto, deve-se fazer um levantamento discursivo, cujo objetivo é verificar a recorrência do sintagma ou termos que apontem para ele, para se atestar

35 a sua circulação. Para a referida autora, dizer que a fórmula circula, é dizer que as pessoas falam dela, comentam-na, que seus lugares de aparição se multiplicam.

A fórmula também deve funcionar como um referente social. Desse modo, ela envia ao sujeito o que supostamente ele já conhece ou pressupõe-se que ele já saiba. A esse respeito, a estudiosa defende que: ―A fórmula, como referente social, é um signo que evoca alguma coisa para todos ao mesmo tempo. Ela é conhecida por designar alguma coisa. A fórmula refere: ela reenvia ao mundo.‖ (Krieg-Planque, 2010, p. 98). A partir dessa perspectiva, é imperante também averiguar de que modo a fórmula que se está analisando funciona como um referente social para os sujeitos, isto é, como eles tomam essa suposta fórmula para si e a elegem como guia para suas atitudes, discursos, modo de pensar, de agir, de ver o mundo.

Por fim, a fórmula deve carregar um caráter polêmico. O fato de ela ser um referente social não garante que todos a aceitem passivamente. Segundo a autora, a fórmula deve funcionar como um objeto conflituoso. É por isso que muitas vezes slogans, trechos célebres, explica a estudiosa, por mais cristalizados e circulantes que sejam, não são fórmulas, uma vez que não circulam como objetos de debate. As fórmulas não simplesmente testemunham os fatos que estão ocorrendo como algum assunto, mas polemizam, põem em cenário, evidenciam uma história de conflitos, sendo assim objetos de tensão, de polêmicas. Nisso vemos que há um processo de aceitabilidade das fórmulas. A circulação de um sintagma tem como função tornar algo aceitável, porque ela circula promovendo conflitos e embates.