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Iniciemos o presente item esclarecendo que a Análise do Discurso é uma ciência interpretativa, portanto, não faz parte de sua prática ter metodologias aplicáveis a quaisquer

corpora, uma vez que ela se constrói a partir do material de análise que o analista tem em

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86 mãos. Nesse sentido, a metodologia da AD não é dada a priori: é a pergunta de pesquisa juntamente com o material escolhido para a análise que determinará o caminho analítico a ser seguido.

Sobre a questão da metodologia, Maingueneau (2008), pontua que o analista do discurso trabalha com algumas unidades fundamentais: a formação discursiva, o gênero do discurso e o posicionamento. A fim de explicitar melhor essas unidades fundamentais, o autor propõe dividi-las em dois grupos: as unidades tópicas e as unidades não-tópicas. Maingueneau (2007) divide as unidades tópicas em unidades territoriais e unidades transversas; dentro das unidades não-tópicas estão as formações discursivas e os percursos. O estudioso resume essa divisão de unidades a partir do quadro abaixo35:

Quadro 3. As unidades tópicas e não-tópicas (MAINGUENEAU, 2007, p.33)

Dentro dos postulados apresentados pelo referido autor, os corpora de análise pesquisados para esta tese evidenciou que deveríamos operar com as unidades de natureza não-tópicas, mais precisamente com a noção de percurso. Para trabalhar com tal categoria, é necessário se debruçar sobre a irrupção, circulação e transformação dos discursos e se deparar com as mais diferentes produções de sentidos.

A noção de percurso permite vislumbrar que o trabalho do analista não pode ser reduzido ao recorte de um campo e um espaço discursivo específico, mas sim um trabalho que procura estabelecer uma rede discursiva em termos de campo e de espaço a partir da noção de interdiscurso. Dessa perspectiva, um ponto interessante sobre essa metodologia é a sua relação com a seleção e recorte de corpora em AD. Segundo Maingueneau, o percurso é entendido como o trabalho em que

35 A discussão a propósito de como se constrói uma unidade tópica ou não-tópica não é de interesse para esse

trabalho, para obter maiores informações, vide Maingueneau (2007; 2008) e Miqueletti (2009).

Unidades tópicas Unidades não-tópicas

Territoriais Transversais Formações

discursivas Percursos Tipos / Gêneros de discurso: a) Gêneros dependentes de campos b) Gêneros dependentes de aparelhos - Registros linguísticos - Registros funcionais - Registros comunicacionais

87 os analistas do discurso podem ainda construir corpus de elementos de diversas ordens (palavras, grupos de palavra, frases, fragmentos de textos) extraídos do interdiscurso, sem buscar construir espaços de coerência, ou seja, sem procurar constituir totalidades. Nesse caso, deseja-se, ao contrário, desestruturar as unidades instituídas por meio da definição de percursos inesperados: a interpretação se apóia, assim, sobre a explicitação de relações imprevistas no interior do interdiscurso. Esses percursos são hoje consideravelmente facilitados pela existência de softwares que permitem tratar conjuntos de textos bastante vastos. (MAINGUENEUA, 2007, p. 32-33)

Com base na citação anterior, vemos que, por meio da noção de percurso, é possível ao analista construir um corpus de análise advindo de fragmentos de textos e frases os quais foram extraídos do interdiscurso, sem que haja a necessidade de buscar totalidades. Em outras palavras, é um tipo de abordagem analítica que não procura delimitar fronteiras a priori, pelo contrário, procura desfazê-las para trabalhar com a dispersão dos discursos no interior mesmo do interdiscurso. Ademais, o analista deve explorar a instabilidade e a circulação dos enunciados e não procurar ligar o fragmento textual a uma fonte enunciativa. Essa fonte enunciativa pode ser concebida como um ponto de vista, um posicionamento, uma formação discursiva. Falando sobre o assunto, Possenti revela que:

Não se trata de dizer que o enunciado não ―pertença‖ a uma FD ou a um posicionamento. O que ocorre é que ele pode ser retomado por várias FDs ou em vários posicionamentos, estabelecendo, a cada vez, novas relações com os enunciados típicos dessas FDs ou desses posicionamentos, produzindo, portanto, efeitos de sentido específicos, conforme a rede discursiva ou interdiscursiva que se estabelece a cada enunciação (POSSENTI, 2010, p. 105).

Como revela Maingueneau (2007), seguindo esse caminho, podemos prever percursos os quais são construídos a partir de retomadas ou transformações de um mesmo enunciado em textos diversos. A nosso ver, perseguir o percurso de determinado enunciado é de grande valia para o trabalho em questão, uma vez que as pequenas frases ora analisadas circularam de forma dispersa. A partir disso, veremos que a interpretação delas será baseada em percursos não esperados, em que se apresentam relações não esperadas no interior do interdiscurso.

O ato de circular no interdiscurso, explica Maingueneau (2008), resume-se no trabalho de seguir fragmentos, frases ou textos os quais, de alguma forma, percorrem um caminho de cristalização e que funcionam em diversos campos e espaços discursivos, não sendo, pois, uma análise que se ocupa de posicionamentos institucionais ou de formações discursivas, mas

88 que define percursos na medida em que persegue várias instituições, gêneros, campos discursivos em que aquela frase possa funcionar. O que não significa que tais frases não estejam atreladas a determinados posicionamentos ou formações discursivas.

O que caracteriza a noção de percurso, segundo Maingueneau (2007), é que os fragmentos não se apresentam como estabilizados, rodeados por fronteiras, como a de um gênero, por exemplo, em que temos o interesse pelo estudo de um discurso determinado. As unidades tópicas tal qual o gênero, por exemplo, de alguma forma, encontram-se delimitadas por fronteiras, embora se apresentem com problemas de delimitação, reconhece o autor. Mas nas unidades não-tópicas não há delimitação de fronteiras, pelo contrário, trabalha-se com a instabilidade, com o deslocamento de sentidos, havendo, pois, a relação do discurso com o interdiscurso:

o interdiscurso ―trabalha‖ o discurso, que, a seu turno, redistribui esse interdiscurso que o domina. A sociedade é percorrida por um agregado de palavras com poder de ação difuso, que atravessam numerosos espaços de discursos. (MAINGUENEAU, 2007, p. 34)

O trabalho do interdiscurso de que o autor fala resultará na produção de diferentes sentidos. Sobre os sentidos, Maingueneau (2009) revela que eles não estão somente dentro do texto, na sua estrutura, porque há a interação entre o texto e os parceiros da comunicação, isto é, há uma negociação entre o texto e os elementos que o rodeiam. O autor diz que os significados são muito incertos e dependem da forma como as palavras são empregadas em determinada cena enunciativa. Notamos que a categoria do percurso ajuda a pensar os fragmentos, frases, fórmulas, dentre outros que apesar de uma cristalização linguística, circulam sem significação estável e que são utilizados por diversos autores nos mais variados campos. A significação se torna instável, explica Maingueneau (2009), porque o sentido sempre precisa ser construído, necessitando de outros elementos como a cultura, ideologia, o contexto social a que está inserido o significante. O estudioso assevera que as pessoas acreditam que falam da mesma coisa, quando na verdade, os sentidos são apropriados de formas diferenciadas. Não que o sentido seja sempre incerto, mas na visão do linguista, a atividade discursiva funciona a partir de duas vertentes: ―temos os significantes que flutuam e que buscam um sentido‖ (MAINGUENEAU, 2009), que é a opacidade constitutiva dos sentidos e, por outro lado, temos ―um espaço nos quais os parceiros estão de acordo para dar uma certa significação, porque é um jogo de palavras no qual estão engajados (...) (MAINGUENEAU, 2009)‖, isto é, temos a presença de certos dispositivos os quais delimitam

89 os sentidos. Afirmar isso, revela o estudioso: ―não significa que o sentido seja unívoco, mas tem uma espécie de quadros que fecham, que trancam um pouco a polissemia virtual do sentido.‖ (MAINGUENEAU, 2009)‖. Em outras palavras, o sentido não é nem unívoco nem indefinido; para ser depreendido, ele precisa se associar às significações impostas por elementos como a língua, a história, o interdiscurso e aos princípios de regramento.

Miqueletti (2009) revela que para se pensar a pesquisa pautada no conceito de percurso é preciso construir um modelo de análise que leve em conta a circulação (ocorrência) de certas expressões circulando nos textos, independente de gênero ou ideologia. Isso porque, explica a autora, o percurso não pressupõe uma unidade entre os enunciados que foram agrupados, isto é, não se deve procurar totalidades, coerência entre os enunciados, mas deve- se interessar pelos usos de um fragmento, texto ou qualquer outra forma linguística. Aí sim poderíamos pensar a circulação em um conjunto de textos definidos, explica a autora, como um gênero, um campo ou posicionamento.

Operar com as unidades não-tópicas não requer que se trabalhe com divisões instituídas, como diz Maingueneau (2008), visto que a observação do discurso se dá independentemente de fronteiras pré-estabelecidas. Para o autor, o princípio de agrupamento para se proceder a análise é uma decisão que o analista toma. Isso não quer dizer que a interpretação está submetida somente ―ao capricho dos pesquisadores: há um conjunto de princípios, de técnicas que regulam esse tipo de atividade hermenêutica‖ (MAINGUENEAU, 2008, p.24). Assim, a escolha do corpus não é arbitrária, não sendo uma escolha aleatória: é preciso definir alguns caminhos, os quais permitem a observação da circulação e dos usos dos fragmentos. Sobre o assunto, Miqueletti (2009, p. 210) revela que:

Propor-se a estudar a circulação de enunciados no interdiscurso não requer realizar uma caracterização exaustiva de suas condições sociais de produção, ou seja, de conduzir uma análise que esmiúce o campo discursivo de pertencimento do texto do qual participam (os posicionamentos e as práticas que os constituem e suas relações internas com outros posicionamentos concorrentes do mesmo campo). A circulação preocupa-se com os sentidos que os enunciados assumem nos diferentes lugares em que circulam. Dar ênfase à circulação de uma tese (ou das formas lingüísticas que a sublinham)

implica, no nosso caso, delimitar um espaço para a sua circulação.

Ademais, para se trabalhar com a noção de percurso, é preciso seguir o período de irrupção do enunciado e também as transformações que ele sofreu, dentro de um período de tempo. Maingueneau (2007) propõe também que o analista poderá prever dois tipos de percursos:

90 Podemos prever percursos de tipo formal (um certo tipo de metáfora, uma dada forma de discurso relatado, de derivação sufixal, etc.); porém, nesse caso, se não trabalhamos com um conjunto discursivo bem especificado, recaímos na análise puramente lingüística. Podemos igualmente prever percursos baseados em materiais lexicais ou textuais: por exemplo, a retomada ou as transformações de uma mesma expressão em uma série de textos, ou então as diversas recontextualizações de um ―mesmo‖ texto. (MAINGUENEAU, 2007, p. 33)

Com base no exposto, podemos apresentar os corpora reunidos para a realização da análise das pequenas frases escolhidas para esse trabalho seguindo a noção de percurso.