• Nenhum resultado encontrado

As festas medievais e a visão carnavalesca do mundo

CAPÍTULO 2 APRESENTAÇÃO DO AUTOR E DO CORPUS

2.4 A visão carnavalesca do mundo nas crônicas de José Simão

2.4.2 As festas medievais e a visão carnavalesca do mundo

Uma das características dessas festas medievais, conforme já pudemos anotar, é o uso das fantasias, que também subsume uma possibilidade de renovação, ou de inversão da hierarquia vigente: bufões eram travestidos e sagrados como reis; bispos e papas, reis e rainhas eram eleitos (e fantasiados) com o intuito de despertar o riso. Essa inversão hierárquica segundo a qual o alto e o baixo se alternam se reflete inclusive no uso invertido das roupas: as roupas são usadas do avesso, as peças de baixo são colocadas na cabeça. Simbolicamente, uma nova ordem se estabelece no transcurso de tais festas.

Na verdade, essa inversão benfazeja, realizada pelo riso, é essencialmente parodística: tudo que é oficial, tudo que é temido, pode-se tornar cômico, inofensivo. O bufão desautoriza o que é oficial, contando tudo de forma jocosa; os trechos e sentenças do Velho e Novo Testamentos ganham tradução maliciosas, ligadas ao baixo material e corporal; obscenidades, grosserias vêm naturalmente à tona, parodiando de forma chã expressões de usos mais formais.

Esses exemplos típicos mostram como se procuravam as analogias e consonâncias, mesmo as mais superficiais, para travestir o sério e obrigá-lo a tomar ares cômicos. Por toda parte, no sentido, na imagem, no som das palavras e dos ritos sagrados, procurava-se e encontrava-se o calcanhar-de-aquiles que permitisse convertê-los em objeto de derrisão, a particularidade, por mínima que fosse, graças à qual se estabelecia a relação com o “baixo” material e corporal

Essa vocação parodística é, pois, constitutiva do cômico grotesco medieval. O mundo é virado do avesso e uma nova ordem, universal e libertária por excelência, se estabelece. Nas palavras de Bakhtin: “Para os parodistas, tudo, sem a menor exceção, é cômico; o riso é tão universal como a seriedade; ele abarca a totalidade do universo, a história, toda a sociedade, a concepção do mundo” (op.cit.,p.73).

É imprescindível, diante do exposto, que algumas analogias sejam feitas. A primeira delas centra-se na oposição mundo sério x não-sério, que o cômico grotesco desestrutura. Parece-nos, pois, que a total liberdade presente nas crônicas de José Simão encerra uma atitude do Jornal Folha de S. Paulo que pode ser, grosso modo, comparada àquela atitude que a Igreja Católica revelava, quando permitia a realização de festas profanas no seu interior.

Obviamente, tal grau de liberdade jornalística pode redundar em alguns problemas e, à semelhança das festas medievais, que foram sendo proibidas ao longo de séculos, não somente em virtude da mudança de paradigma ideológico, mas até porque causaram problemas, o jornal já respondeu inúmeros processos por difamação. Mas não é este o fato mais importante. O que importa destacar é a subversão, esta, sim, essencialmente grotesca que a coluna de José Simão concretiza, principalmente ao rebaixar personalidades do mundo oficial e sério (ao menos em tese) via parodização.

A consecução desse rebaixamento catártico exige não só a observação atenta do contexto político-social, com o fito de comicizá-lo, mas uma linguagem livre do cerceamento formal, típico dos outros espaços do jornal, e livre dos tabus lingüísticos, especialmente os lexicais. Tudo que se refere ao baixo material, à sexualidade poderá vir à tona sem restrições: não há o que recalcar. Não se estranhe, portanto, a presença constante de vocábulos chulos, bem como a reprodução de slogans dos candidatos à vereança e à prefeitura, sobretudo aqueles cujos referentes – por igualdade ou semelhança sonora - reportam-nos ao campo da sexualidade:

E em Araranguá, Santa Catarina, tem o candidato Pinto como slogan: “Não deixe o Pinto na mão”. É a pornocampanha! (05/08/2004).

E em Tupaciguara, Minas, tem um candidato chamado Kundum, com o trepidante slogan: “ Não enfie seu voto em qualquer um, enfie em Kundum” (1º/09/2004).

Temos a impressão de que o que se nos afigurara inicialmente como intuição resta comprovado: as crônicas de José Simão são, na essência, grotescas, pois recuperam características inerentes ao cômico medieval: são parodísticas por excelência, procedem a inúmeros rebaixamentos, exploram a linguagem e as comparações ligadas ao baixo material e corporal. Expressam, acima de tudo, uma visão alegre e carnavalesca, cujo alarido e exuberância desregrada nos remetem às festas populares medievais. Representam, de forma análoga ao papel que as festas medievais desempenhavam na vida medieval, um espaço no jornal, em que a transgressão e a liberdade adquirem conotação catártica, sancionada apenas pela alegria.

De qualquer forma – é mister frisar – tal paralelo não descarta a ciência de que, se o grotesco medieval foi sistematicamente rejeitado porque “julgado” fora do seu contexto, como bem nos revelou Bakhtin (1996) – é inegável que o espírito carnavalesco e paródico que lhe é inerente, não se circunscreveu à época medieval. Aliás, a possibilidade do diálogo entre a cultura medieval e a das fases subseqüentes é uma vertente extremamente rica da contribuição bakhtiniana: quando se ilumina uma época, todas as demais ganham novas nuances e geram novas perspectivas.

Buscar, pois, entender como a parodização inerente ao grotesco medieval reaparece e informa outros movimentos artísticos e culturais, com o fito de reforçar as analogias já estabelecidas, levou-nos a um resgate do próprio Surrealismo. As razões que

motivaram este percurso foram inspiradas pelas afirmações de Martins (1995:23) que podem ser aferidas no seguinte trecho:

À imagem do que aconteceu com períodos literários pretéritos, com destaque para o Barroco, a poética surrealista apresenta-se, em nosso entender, como a vanguarda onde mais floresceram as manifestações parodísticas, nas suas mais variadas modalidades – Paródias de textos individuais, Paródias de códigos e convenções que regem os gêneros e os modos literários; e, finalmente, Paródias de determinados discursos sócio-culturais ou ideológicos.

Aliás, suspeitamos ser praticamente impossível, nos dias atuais, compreender o discurso humorístico – e talvez, a partir de agora, o próprio discurso surrealista – sem nos reportarmos a Bakhtin. A citação de Martins (op.cit., p.227) confirma essa nossa suspeita:

A compreensão do discurso surrealista é, em nosso entender, codificada por uma retórica carnavalesca (ou gramática paródica, de que também fala Bakhtine) que se manifesta, dum modo genérico, na inversão de várias formas de discursos hegemônicos.

Isto posto, parece que nos compete agora duas tarefas essenciais. A primeira diz respeito à necessidade de resgatarmos alguns pontos teóricos concernentes ao conceito de paródia. A segunda se prende à própria associação fundadora deste item: recensear as técnicas e estratégias lingüísticas integrantes da paródia surrealista portuguesa levar-nos-á, por certo, a uma visão mais abrangente do espírito parodístico presente nas crônicas de José Simão.