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Comicização diegética, extradiegética e extratextual

CAPÍTULO 2 APRESENTAÇÃO DO AUTOR E DO CORPUS

2.8 Riso e contexto

2.8.1 Comicização diegética, extradiegética e extratextual

Chegamos, assim, a um ponto fundamental na teoria adotada por Almeida (1999): a questão das instâncias discursivas envolvidas no discurso do riso que, a nosso ver, se alia à questão do enunciado e da enunciação. Para o autor, a comicização é extratextual, quando decorre da percepção do leitor; é extradiegética, quando é fruto da perspectiva do narrador, e é diegética, quando envolve a relação entre os personagens. Ou seja, a comicização extratextual diz respeito à enunciação; as outras duas, ao enunciado.

Como a comicização extradiegética não ocorre em Les Frustrés, até porque, como já dissemos, as histórias narram-se a si mesmas, Almeida se dedica apenas às outras duas. No que tange à comicização diegética, afirma:

A comicização é diegética quando a função comicizante é desempenhada por uma instância desse nível. Criticado por seus pares, o personagem torna-se ridículo no seu próprio meio, aos olhos dos outros personagens, o que realça o seu isolamento (op.cit., p.146).

Porque não cabe ao autor ou ao leitor a função comicizante, uma vez que ela ocorre no mundo representado, a comicização diegética pode gerar uma fragmentação no espírito do leitor que se identifica ou com a personagem comicizante, ou com a comicizada. De qualquer forma, o leitor percebe o antagonismo e tende a se identificar com a personagem comicizante, segundo Almeida, para quem na comicidade diegética autor e leitor “outorgam” a uma das personagens a função de criar o cômico, de ridicularizar:

A comicização diegética seria um sistema de delegação de competência, em que a função comicizante do autor (e do leitor) é, ao menos, parcialmente transferida ao personagem comicizante. Desta forma, a presença do autor e do leitor está como representada no texto pelo personagem investido da função comicizante. (op. cit., p.149).

Almeida reporta ainda um tipo especial de comicização diegética, designada como metalepse, que pode ocorrer quando um personagem, subvertendo as normas do

contrato ficcional, passa do mundo textual para o extratextual, desestabilizando o leitor. O autor ainda reproduz uma tira humorística (p.149) de Jacovitti, famoso chargista italiano, na qual um personagem, cujo braço se alonga por toda a extensão da tira, segura uma valise pesadíssima e vocifera contra outros oito, que se limitam a olhá-lo, enquanto cada um pronuncia uma palavra da seguinte frase: NÓS....SÓ....ESTAMOS....AQUI....PARA... PREENCHER....ESTE...DESENHO... (Anexo 6). Efeitos cômicos à parte, a metalepse se funda, indiscutivelmente, na transgressão.

A seguir, Almeida destaca três características da comicização extratextual que, para ele favorecem a identificação. A primeira diz respeito a “uma clara caracterização dos universos ficcional e não-ficcional, que faz com que a personagem ou a situação alvo se situe num campo (diegético) diferente daquele (extratextual) em que a diminuição, a crítica e o ridículo são formulados.” (op.cit., p.151).

Em decorrência disso, temos um segundo aspecto, que nos parece fundamental quando buscamos entender a força do riso, ou o riso como arma: como o processo de comicização não se realiza no âmbito das personagens, cria-se uma cumplicidade entre autor/leitor já que cabe a estes a percepção do ridículo da personagem ou da situação alvo. Arriscaríamos dizer que, na comicização extratextual, autor e leitor riem da personagem, que é tanto ou mais cômica na medida da sua inconsciência.

O último aspecto diz respeito ao caráter coeso do investimento psíquico do leitor (p.151) Se na comicização diegética o leitor pode, por vezes, ainda ficar dividido entre o par comicizante/ comicizado, na extratextual o leitor é levado a se identificar com a personagem cômica (= comicizada), até porque inexiste a personagem comicizante.

Embora aceitemos que, em termos de identificação, na comicização extratextual há maior possibilidade de o leitor se identificar com a personagem cômica, não descartamos a possibilidade de que o autor e/ou leitor assim não procedam. Parece-nos, pois, indispensável transcrever a fala de Almeida (1999:152), que, após insistir nas características de tal forma de comicização, acrescenta:

Na comicização extratextual, o personagem cômico representa unitariamente o outro, aquele que

torna possível a constituição do eu e que permite, graças à sua diferença, o deslocamento do eu para o lugar do outro, num processo de identificação. O leitor pode tanto assumir a sua visão

comicizante e distanciada do personagem cômico quanto identificar-se com ele, alternadamente.

(grifos do autor).

2.8.2. - RELAÇÃO CÔMICA, ESPIRITUOSA E HUMORÍSTICA

A par destas distinções que, a nosso ver, envolvem basicamente diferentes estratégias de envolvimento, na medida em que o autor joga sempre, como já o dissemos, com as inferências a serem realizadas pelo leitor, sejam estas no nível do enunciado, sejam no da enunciação ou, dito de outra forma, sejam a partir do diegético, sejam a partir do trabalho no nível extratextual, Almeida relaciona aos níveis de comicização três tipos de relação que se estabelecem entre os sujeitos (autor/leitor/personagens): a relação cômica, a espirituosa e a humorística.

Importa dizer que tais distinções representam uma recorrência presente em quase todas as obras que versam sobre o riso. Importa também dizer que quase sempre as distinções não se mostram tão claras e nem tão convincentes. De qualquer forma, não descartamos a hipótese de que possam lançar alguma luz neste mundo tão rico e tão repleto de sutilezas, que é o mundo do risível.

Isso posto, voltemos às distinções propostas por Almeida para quem a relação cômica se estabelece no nível do enunciado, do mundo representado, e a comicidade da personagem é proporcional à sua inconsciência. Diríamos que a relação cômica se funda na identidade entre autor, leitor e personagem comicizante, no sentido de que todos eles sentem prazer em depreciar a personagem comicizada. A relação cômica envolve, portanto, uma certa malignidade, claramente depreendida no trecho que se segue:

A primeira (característica da comicidade) prevê que o efeito cômico será tanto maior quanto mais o indivíduo observado (ou representado) for incapaz de perceber o seu próprio ridículo. Ela sublinha o isolamento do indivíduo ridículo e, ao mesmo tempo, a projeção, sobre ele, do olhar