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CAPÍTULO 2 APRESENTAÇÃO DO AUTOR E DO CORPUS

2.5 Paródia, paráfrase & cia 95.

Historicamente, o termo paródia se liga ao cômico, que durante séculos ficou estigmatizado como um gênero pouco nobre, considerado por muitos um sub-gênero. Segundo Aristóteles (in Poética), Hegemenon de Thaso, no século V a.C. foi quem deu origem à paródia, quando inseriu em um texto, pretensamente épico, homens comuns, sem qualquer heroicidade.

Associá-la também ao interlúdio cômico que ocorria entre atos de um drama ou tragédia, minimizando catarticamente as agruras da condição humana que nestes eram representadas, é ainda manter-lhe a condição de gênero inferior. Aliás, a própria etimologia da palavra paródia parece reafirmar a sua condição parasitária e marginal. Paródia é uma ode que se faz ao lado de outra ode (para ode) principal. Pode ser entendida como um contracanto.

Embora seja tão velha quanto o próprio fazer literário, apenas modernamente, sobretudo a partir de Bakhtin, o seu caráter híbrido, simultaneamente destrutivo e regenerador, foi entendido. Genette, citado por Martins (1995), por exemplo, diante da escassez das referências aristotélicas41, propõe o seguinte quadro para a distribuição dos gêneros aristotélicos e preenche a quarta casa, a “casa vazia”, justamente com a paródia. Observemos:

Modo

Objecto Dramático Narrativo

Superior Tragédia Epopéia

Inferior Comédia ? Paródia

A respeito deste preenchimento, o comentário de Martins (1995:41) merece, pela pertinência, ser citado:

Num ensaio intitulado Introduction à l’Architext, G.Genette (1979) elabora uma bem fundamentada reflexão - embora não isenta de reparos (....) - sobre a teoria dos modos literários e dos seus quatro tipos de imitação (géneros). Apesar de reconhecer que o modo narrativo inferior é um “genre plus mal déterminé”, e que, embora fosse ilustrado com várias obras literárias, não chegou a se nomeado por Aristóteles, G.Genette (1979:19) não hesita em preencher a “casa vazia” com o gênero paródico, esquematizando assim o “sistema aristotélico dos gêneros”.

41

O que nos parece interessante no quadro apresentado por Genette é que ele contempla tudo o que foi afirmado acima sobre a origem da paródia: gênero inferior surgido de uma “degradação” do gênero épico, provavelmente uma narração cômica.

Já ao conceituar a hipertextualidade como a relação entre um texto derivado – por transformação ou por imitação – e o texto derivante, Genette (apud Martins, op., cit., p. 43), afirma que isto pode ocorrer privilegiando-se uma das seguintes intenções, ou regimes: a lúdica, a satírica, a séria. Ademais para ele – e isto nos pareceu o mais curioso– a paródia é uma transformação lúdica por excelência! Com um adendo: relativa a textos curtos, breves (A visão é, obviamente, estruturalista).

Reproduzimos a seguir o quadro das “práticas hipertextuais genettianas” (apud Martins, op.cit., p.43) não só para que o leitor observe o grau de detalhamento a que chegou Genette, mas também para que constate a questão que nos tem intrigado: a paródia não tem para este autor natureza necessariamente cômica, conforme propusera Bakhtin (1996).

Regime Relação

Lúdico Satírico Sério

Transformação Paródia Travestissement Transposition

Imitação Pastiche Charge Forgerie

Esta relação entre paródia e cômico – intrínseca e inquestionável a nosso ver – é apontada por Sant’Anna (2004:9) quando destaca a importância social e literária da “teoria da carnavalização” bakhtiniana:

Preocupado em caracterizar os efeitos cômicos de diversas obras literárias, ele {Bakhtin} acabou extrapolando e em vez de se limitar apenas ao estudo da paródia, acabou dando uma grande contribuição aos estudos socioliterários modernos, formalizando os princípios básicos da teoria

da carnavalização (grifos nossos).

Além de reiterar o papel fundamental de Bakhtin para o estudo da paródia, Sant’Anna (op, cit., p.9), chama a nossa atenção para a contribuição de um outro formalista

russo – Iuri Tynianov – que, 10 anos antes de Bakhtin, já se debruçara sobre tal estudo. Embora Bakhtin nunca tenha citado Tynianov – “mistério” que para Sant’Anna pode ser explicado pela violenta censura existente na Rússia à época 42 – a coincidência entre os estudos de ambos é notória: “tanto Bakhtin quanto Tynianov trabalharam apenas com os conceitos de paródia e estilização”.

Como a tese de Sant’Anna parte do princípio de que há uma relação contrastiva não só entre paródia e paráfrase bem como entre estilização e apropriação e, ademais, que estabelecer oposições é uma forma de melhor revelar a tipicidade de cada um desses conceitos (“ ...o conceito de paródia só poderia ser devidamente trabalhado quando posto em tensão com o conceito de paráfrase”)43, o autor propõe, inicialmente que a estilização é comum a ambas, ou seja: se a estilização é favorável ao texto matriz, ocorre a paráfrase; se contrária, a paródia. Sob esta perspectiva, paráfrase e paródia são efeitos que podem redundar da estilização, esta, sim, uma técnica.

O quadro abaixo (Sant’Anna, op.cit.,p.36) permite-nos visualizar este modelo triádico. Confirmemos. (1) Texto original (2) (3) Paráfrase...Paródia Pró _________________Estilização ___________________ Contra

Frisando que este primeiro modelo já representaria uma contribuição para a proposta diádica de Tynianov e Bakhtin, Sant’Anna discute os três conceitos já apresentados, considerando-os, agora, sob o ponto de vista do desvio que eles representam. Dentro desta nova perspectiva, se o desvio mínimo, em relação ao texto original, identifica

42

O próprio Bakhtin lançou mão de pseudônimos como forma de fugir à censura. 43

Embora Sant’Anna (2004:16) esteja se referindo a um ensaio sobre o Modernismo, feito em 1972, a premissa é recorrente em outras obras do autor, inclusive nesta, que nos serve de referência.

a paráfrase e o desvio total, a paródia, um desvio tolerável caracteriza a estilização. A estilização não mais subsume a linha divisória entre paráfrase e paródia, conforme a direção que ela tome (considerando-se o modelo anteriormente dado), mas uma possibilidade de se introduzir um tratamento pessoal no discurso (op.cit., p.39), sem que este desvio descaracterize o texto original.

Na verdade, a estilização não sufoca a individualidade de quem “traduz” o texto original: o novo texto tem as marcas do tradutor, sem perder as marcas originais. O exemplo, no campo da música, talvez seja providencial, visto que é bastante comum que se façam arranjos vários para a mesma música. Qual a condição fundamental para que a estilização não se torne paródia? Que o texto original seja perceptível, apesar das intervenções criadoras. Ou seja; que o desvio seja tolerável. A síntese de Sant’Anna em relação aos três conceitos é brilhante:

De um outra maneira ainda poderíamos dizer: a diferença entre esses termos está em que a paródia deforma, a paráfrase conforma e a estilização reforma (...).Sem dúvida, a paródia deforma o texto original subvertendo sua estrutura ou sentido. Já a paráfrase reafirma os ingredientes do texto primeiro conformando seu sentido. Enquanto a estilização reforma esmaecendo, apagando a forma, mas sem modificação essencial da estrutura. (Sant’Anna,

2004: 41)

A diferenciação feita com base na amplitude do desvio leva Sant’Anna à percepção de que a paráfrase e a estilização fazem parte de um conjunto que se opõe à paródia. Tal percepção integra o terceiro modelo proposto pelo autor, modelo este que contempla o conceito de apropriação, de entrada relativamente recente nos estudos literários, visto que sua origem ocorreu nas artes plásticas. Sant’Anna o associa à técnica da colagem, também chamada assemblage (ajuntamento, reunião), que, na realidade, subsume um recurso antiqüíssimo em arte, ou seja, o do deslocamento.

Embora estejamos cientes de que o conceito de apropriação se liga, de início, às artes plásticas em geral, parece-nos - e arriscamos uma opinião - que o deslocamento pode ser, grosso modo, também associado a um desvio verbal. O próprio Sant’Anna (op. cit., p.

44), após ilustrar como a técnica da assemblage aparece em quadros e esculturas modernas, esclarece:

Ora, essa técnica artística tão moderna, na verdade usa de um artifício velhíssimo na elaboração artística: o deslocamento. Deslocamento que está muito próximo daquele estranhamento e do

desvio de que falamos anteriormente no princípio deste trabalho. Tirado de sua normalidade, o

objeto é colocado numa situação diferente, fora do seu uso.

A respeito deste artifício que corresponde, possivelmente, àquilo que Hobbes classificava de insólito ou de inédito e que julgava fundamental para gerar o riso, A.Martins (2003), servindo-se de um filme de Dali, não só exemplifica tal conceito, mas reitera a perspectiva hobbesiana na medida em que também faz a associação deslocamento/riso, conforme se depreende no texto:

Na verdade, colocar o objeto fora de seu lugar devido é um dos principais recursos do humor, algo assim como um guarda-chuva dentro de uma geladeira ou, como bem realizou Salvador Dali, uma vaca dormindo numa cama, dentro de um quarto bem mobiliado. O deslocamento, a coisa fora do lugar convencional, mas colocada em outro que instigue o nosso pensamento, faz rir. (A. Martins, op.cit., p.59)

De qualquer forma, tanto Sant’Anna (2004) quanto A.Martins (2003) ainda estão no campo das artes plásticas, pois se referem à colocação de objetos em lugares indevidos. A nossa questão reside no fato de que talvez possamos entender como deslocamento a colocação, na seqüência lingüística, de uma palavra indevida, ou a emissão de uma resposta inesperada que, dada a estranheza, motivariam o riso.

Dentro desta perspectiva, o deslocamento é uma estratégia constante no discurso do humor, sobretudo pelo seu potencial lúdico, de mudança de rota: o leitor espera algo e ocorre o inesperado. O próprio jogo entre o modo bona fide e non-bona fide, típico do humor, sintetiza, a nosso ver, um deslocamento: o leitor/ouvinte pensa que é uma coisa, e é outra; está num modo de comunicação e tem que se deslocar para outro; quando pensa que está sendo enganado, descobre que tudo pode ser verdade, principalmente se considerarmos as críticas sociais a que o humor, por vezes, procede.

Aguilera (2004), em um artigo no qual comenta a biografia do cineasta Billy Wilder (1906-2002), reporta-se à cena final do filme Quanto mais quente melhor em que a personagem representada por Jack Lemmon, ainda disfarçado de mulher, revela ao milionário, que por “ela” se apaixonara, a sua real identidade sexual: travestira-se de mulher apenas para fugir da Máfia. A resposta “Ninguém é perfeito”, dada pelo milionário apaixonado, encerra, a nosso ver, um claro exemplo de deslocamento, devido à total imprevisibilidade da resposta, cujo efeito é, inevitavelmente, a geração do humor.

Ainda no mesmo artigo e a propósito da verve humorística que contaminava até os artistas que trabalhavam sob a direção de Wilder, Aguilera (2004) reproduz um caso contado por Ray Milland, que protagonizou Farrapo Humano, em 1945. Tal caso, a nosso ver, também serve como ilustração de deslocamento verbal. O ator conta que recebera uma correspondência de um fã com os seguintes dizeres:

Caro sr. Milland, sou fã devotado de cinema e alcoólatra crônico. Nunca fui tocado por qualquer filme como fui por “Farrapo Humano”. Depois de ver seu retrato magistral de um bêbado nesse filme, resolvi abandonar o ... cinema.

Se nos voltarmos para as crônicas de José Simão, veremos que a estratégia que estamos designando como deslocamento verbal é responsável por inúmeros efeitos de humor e, basicamente, subsume uma inesperada mudança de script. É o caso, por exemplo, do trecho em que o cronista noticia e comenta as propostas de Paulo Maluf, apresentadas no debate televisivo ocorrido entre os candidatos à prefeitura paulista:

E ele disse que vai acabar com a taxa do lixo, a taxa da luz e a taxa do motoboy. E a taxa do colesterol? Se ele acabar com a taxa do colesterol, eu voto nele! (07/08/2004)

Para ridicularizar o excesso de promessas do candidato – aliás todas as taxas citadas (lixo, luz e motoboy) foram impostos criados na gestão da prefeita Marta Suplicy – o cronista aventa a possibilidade (ou a impossibilidade?) de que o candidato prometa acabar com uma taxa de natureza totalmente diversa, que nada tem a ver com tributos: a taxa do colesterol. Obviamente, esse deslocamento semântico, pelo inesperado, gera o riso e, além do mais, insinua que, para ganharem votos e serem eleitos, candidatos são capazes de tudo prometer. Até absurdos. Lembremo-nos de que absurdos e alogismos são fortes aliados do humor.

Isso posto, voltemos ao conceito de apropriação que, concorde Sant’Anna (2004), encerra uma radicalização da paródia. Se, portanto, a relação entre paráfrase e paródia é de oposição, isto é, a primeira é um pró-estilo, a segunda, um contra-estilo, a relação entre paródia e apropriação envolve gradação. As palavras de Sant’Anna (op.cit.,p.46) servem-nos de endosso:“se o autor da paródia é um estilizador desrespeitoso, o da apropriação é o parodiador que chegou ao seu paroxismo”. Segue-se o terceiro modelo, conforme desenhado na página 47, da obra em questão:

Conjunto das similaridades Conjunto das diferenças

Cientes de que os três modelos não são definitivos e que suas aparentes contradições refletem abordagens que priorizam critérios distintos, buscamos, com base nas proposições de Sant’Anna, elaborar um paralelo entre paráfrase e paródia. Nele não haverá preocupação em distinguirmos estilização e apropriação, visto que as entendemos como gradações, consoante o terceiro modelo proposto. Ei-lo:

Paródia ↕ Apropriação Paráfrase ↕ Estilização

X

Paráfrase Paródia

- mantém o paradigma dado -inaugura um novo paradigma - intertextualidade das semelhanças -intertextualidade das diferenças - reforça o existente - deforma o existente

- é jogo de espelhos: é tautológica - é espelho invertido: cria novas perspectivas

- continua a ideologia dominante - interrompe/reverte/contesta a ideologia dominante

- efeito de condensação (“resume” o texto dado)

- efeito de deslocamento (subverte o texto dado)

- fala do mesmo, reproduz a voz do outro - contesta a voz do outro (pode até anulá- la na apropriação)

Na realidade, conforme já verificamos, se o espírito paródico emana das crônicas de José Simão, detectar como ele se concretiza/realiza textualmente é essencial. E foi justamente esse voltar-se para o corpus que gerou a necessidade de tal paralelo. Diante de trechos, como os que se seguem, muitas dúvidas surgiam: estávamos diante de textos parafrásticos ou paródicos? Aliás, as crônicas de José Simão parafraseiam ou parodiam o quê? Vejamos:

E o candidato Danilo Dávila, de Curitiba, teve zero voto. Ou seja, nem ele votou nele. Teve um surto de consciência. (05/08/2004)

E diz que o Serra Vampiro Anêmico já ta sendo chamado de Zé Gangorra: onde ele senta todo mundo levanta. (12/10/2004)

Diz que a Marta vai ser processada por propaganda enganosa. Ela está com 15 anos no outdoor. (27/10/2004)

E um leitor mandou uma idéia digna do Duda Mendonça para alavancar a campanha da Marta: contratar o Agourão Bueno para transmitir a campanha do Serra. Aí ele chega em segundo lugar! Rarará! (08/10/2004)

Estratégia comum para a criação do humor são os comentários maldosos, muitas vezes, feitos sob forma de paráfrases, o que acentua o humor neles contido, visto que uma paráfrase é, em tese, um recurso para a correção do enunciado dito anteriormente. Paráfrases maldosas são ainda paráfrases ou são paródias? A valer o paralelo proposto, torna-se fácil afirmar que estamos diante de paródias parafrásticas? Ou de paráfrases parodísticas? Uma outra dúvida, que remanesce: a paródia não tem, necessariamente, natureza cômica, derrisória? E mais: a intertextualidade, característica essencial da paródia não pode ser extratextual?