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CAPÍTULO 2 APRESENTAÇÃO DO AUTOR E DO CORPUS

2.6 Paródia e comicidade

Martins (1995:61-3), após extenso levantamento bibliográfico, propõe alguns traços definidores da paródia, sintetizando-lhe as principais características semântico- pragmáticas. Uma primeira diz respeito à natureza intertextual da paródia, que implica, necessariamente, a existência do texto parodiado para que haja o texto parodiante. Uma outra característica envolve a sua natureza parasitária, uma vez que “a Paródia desfigura os textos ou obras que tomou (´roubou’) para alvo de seu discurso derrisório, alimentando- se, textofagicamente, de textos originais anteriores que manipula, reescreve, degrada” (op.cit.,p.62) (grifo do autor).

A grande questão ou a grande dúvida que as constatações de Martins fizeram emergir em nosso espírito diz respeito à intencionalidade da paródia, pois é justamente neste ponto que o autor aborda aquilo que, linhas acima, já antevíamos como polêmico, e que pode ser assim colocado: a intenção cômica integra a natureza da paródia? De fato, o

próprio Martins (p.63) refere-se à controversa questão do ethos paródico e buscará analisá- la, em consonância com a perspectiva pragmática adotada.

Martins (op.cit., p.54) faz, então, menção à teoria ecumênica da paródia, defendida por Linda Hutcheon, autora que, segundo ele, propõe um alargamento do ethos paródico moderno, que não deve ficar restrito à derrisão cômico-satírica, como sempre nos pareceu. Aliás, o próprio Martins reafirma o consenso existente entre os atuais estudiosos de que entre a paródia e o cômico não há uma relação necessária: “a Paródia não implica necessariamente a presença do cômico”. (op.cit.,p.63)

Hutcheon (1989) insiste, ao longo de toda a sua obra, na distinção entre paródia e sátira. Destacando que a ironia tem uma dupla função - a semântica e a pragmática - a autora propõe que, apesar de a ironia ser comum tanto à sátira quanto á paródia, é da não- diferenciação destas funções que decorre a confusão entre sátira e paródia, conforme se lê:

Mas este contraste semântico entre o que é afirmado e o que é significado não é a única função da ironia. O seu outro papel de importância maior – a nível pragmático – é freqüentemente tratado como se fosse demasiadamente óbvio para justificar discussão: a ironia julga. Contudo, nesta ausência de diferenciação entre as duas funções parece-me residir uma outra chave da confusão taxionômica entre paródia e sátira (op.cit.,p.73).

Mais adiante, baseada ainda na ironia como tropo de dupla função, a autora busca esclarecer a diferença (para nós ainda nebulosa) entre sátira e paródia. Ou melhor, busca dirimi-la, ao afirmar que a afinidade da ironia com a paródia se realiza no nível estrutural (semântico, intertextual), ao passo que, com a sátira, a afinidade se dá no nível pragmático:

Por outras palavras, nestas duas funções diferentes, embora obviamente complementares, do tropo retórico da ironia poderia residir essa outra chave da confusão terminológica entre paródia e sátira. Visto que ambas se servem da ironia, ainda que por meio de afinidades diferentes (uma estrutural, a outra pragmática), são com freqüência confundidas uma com a outra. Isto dá à ironia uma importância crucial da definição e distinção entre os dois gêneros.

Na realidade, e Hutcheon depois o afirma, a diferença entre ambas é o alvo a que se dirigem: a sátira é extramural, moralizadora, ética; a paródia, intramural, auto- reflexiva, aética: um texto que se volta para outro. A primeira lança mão da função pragmática da ironia, a última, da sua função semântica. Isso se coaduna perfeitamente com o seu conceito de paródia como uma imitação transcontextualizadora, que tanto pode desqualificar a obra parodiada quanto prestar-lhe homenagem, dependendo da intenção.

Martins (op, cit., p.58), nos passos de Hutcheon, recupera tal polêmica quando, reconhecendo a proximidade e as freqüentes confusões entre os dois gêneros, associa a sátira ao plano da res e a paródia ao plano da verba, destacando o objetivo intratextual (e intertextual), próprio da última, e o extratextual, próprio da primeira.

Por outras palavras, há uma distinção essencial entre os dois gêneros – enquanto a sátira se situa no plano da res cómica, a Paródia restringe-se ao nível da verba mais ou menos cômica (....). Ou seja, os objetivos da sátira são de natureza extratextual, pois ela é animada por intenções sociais ou morais (ridicularizar defeitos de instituições, usos ou costumes, para os corrigir), enquanto a paródia é de natureza intratextual.

Distinção ainda polêmica, sobretudo porque a ela subjaz o paradigma tradicional, de cunho estruturalista, para o qual a paródia é vista como estratégia intertextual, apenas. De qualquer forma, mesmo reiterando que “ao contrário do gênero satírico, a Paródia não implica necessariamente a presença do cômico” (op, cit., p.59), Martins não se furta a apontar a existência de modalidades híbridas, como a sátira paródica e a paródia satírica, bem como não se furta a citar uma série de autores para os quais paródia e comicidade sempre se imbricam.

Diante do exposto, julgamos oportunas algumas considerações. Em primeiro lugar, parece-nos indiscutível que a paródia é uma estratégia intertextual/ intratextual que constantemente redunda no humor, ou no lúdico. Não nos parece provável que uma paródia seja feita com uma linguagem “séria”, sem derrisão, sem duplos sentidos, sem rebaixamentos, enfim, sem um mínimo de comicidade. Aliás, a sua natureza é

inexoravelmente dupla: a derrisão não é percebida, se o leitor não tiver a competência paródica, isto é, se não associar o texto parodiante ao parodiado.

Concordamos que a paródia, primeiramente, realiza o cômico no plano verbal, tendo, pois, cunho intertextual ou intratextual. Concordamos também que a sátira aborda a res, o cômico das ações, o extratextual. Contudo não concordamos que a paródia se limite ao intertextual. Se assim fosse, seria um mero exercício de estilo, uma brincadeira formal para iniciados. Não teria caráter crítico, transgressor, pragmático, argumentativo.

A síntese que Martins (1995:69) apresenta sobre a Teoria Literária da Paródia é providencial e oportuna. O autor aponta, ao fim e ao cabo, duas teorizações principais: a primeira, ele denomina de concepção restrita ou minimalista e corresponde àquela que

é sustentada desde a antiga tradição retórica, mas que se prolonga até ao formalismo estruturalista contemporâneo (v.g.,G.Genette): concebe-se a Paródia como um discurso limitado a uma técnica de citação intertextual, transcontextualizadora e irônica...”

Já a segunda corresponde àquela que envolve uma concepção dilatada, que ratifica a concepção bakhtiniana de paródia como um fenômeno literário e cultural mais amplo. Expostas tais concepções, o autor conclui:

Por conseguinte, em nosso entender, a dificuldade reside em encontrar um ponto de equilíbrio entre estas duas tendências principais, isto é, não diminuir a Paródia a um mero processo de imitação (sic) irônica e caricatural, por um lado; nem, por outro, dilatar de tal modo o campo da Paródia que ele englobe, indevida e perigosamente, outros fenômenos e discursos, acabando por se ver manifestações parodísticas em todo o lado... Pela nossa parte, circunscreveremos a Paródia a uma multifacetada e complexa prática literária, embora com alcance para-literário, isto é, como discurso polimórfico, caracterizado por inegáveis e significativas articulações poético- literárias, mas também artísticas, históricas e culturais. (Martins,1995:69)

Por fim, parece que chegamos ao que Sant’Anna já expusera, a saber: se a paródia tem origem inegavelmente literária, ela não mais se restringe à literatura. Deslocamentos lingüísticos e culturais perpetrados pela paródia ou – se quisermos adotar a

designação de Bakhtin – pela inversão carnavalesca marcam a transformação constante a que estamos sujeitos. Nesse sentido, se a paráfrase coincide – como tão bem nos explica Sant’Anna – com a automatização, a paródia possibilita deflagrar a desautomatização lingüística e cultural.

Contudo é inegável que aquilo que se tornou paródia, em paráfrase se transformará. Sant’Anna (2004) exemplifica não só o espírito paródico inerente aos anos 60 bem como o espírito parafrástico que o sucedeu, dando a moda como exemplo. Fala sobre os hippies que dessacralizaram a moda, quando abriram os baús de seus avós (op.cit., p.77) e se apropriaram de casacos, saias, calças e chapéus para usá-los cotidianamente em combinações inusitadas. Da mesma forma, os jovens daquela década se apropriaram de vestimentas primitivas de índios, hindus e negros bem como de roupas de soldados que lutaram no Vietnã e, rompendo limites – inclusive de vestimenta masculina x feminina – revitalizaram toda a moda.

Obviamente, o sistema reage e tudo aquilo que é dessacralização, inversão, contracultura e contra-estilo começa a ser imitado e parafraseado: torna-se um novo estilo que logo vira mera reprodução, a qual gerará no seu bojo a necessidade de nova “revolução”. Parece-nos, pois, – e talvez até sejamos redundantes – que, ao longo deste item, o conceito de paródia restou alargado, uma vez que, se partimos da concepção estruturalista de Genette44, chegamos à concepção interdiscursiva e dialógica bakhtiniana, passando superficialmente pela proposta de alargamento do ethos paródico, segundo Hutcheon.

Um outro dado que nos parece oportuno registrar diz respeito às categorias a serem estabelecidas para a análise do nosso corpus. Explicamo-nos melhor: se considerarmos que a paródia é estratégia estritamente intertextual, a única estratégia parodística do nosso corpus seria a paronomásia, sobre a qual falaremos adiante. Por outro lado, se identificarmos – e identificamos – como paródia também a reversão cômica/satírica

44

Para Genette, a paródia literária se restringe à deformação lúdica de textos relativamente breves (vide página 97 desta tese).

do texto parodiado em parodiante, resta-nos perguntar: as crônicas de José Simão parodiam o quê?

A respeito deste último questionamento, a citação de Sant’Anna (2004:68-9) não só nos indica que estamos no caminho certo, mas, sobretudo, explicita, aquilo que ocorre nos textos jornalísticos de José Simão, cujo espírito paródico se centra nos comentários debochados das notícias já consumidas pelo seu leitor. Aliás, a técnica de informar (talvez, rememorar) sinteticamente o acontecido – o furo (que equivale ao texto parodiado) – é uma maneira didática de realizar o texto parodiante. Observemos a citação, sobretudo as partes grifadas:

A paródia nos jornais de classe A e B (de maior poder aquisitivo) fica restrita às charges políticas, a um ou outro comentário humorístico eventual. A paródia ocupa pequeno espaço nesses jornais “sérios”. Ela vai se caracterizar nos jornais marginais, nos semanários, em publicações não diárias. Assim, alguns jornais podem se especializar nesse tipo de linguagem parodística comentando o texto dos jornais “sérios”, debochando de um texto anterior, numa atividade intertextualizadora. Alguns jornais desse tipo não evitam parodiar-se a si mesmos nem se contradizer. A notícia aí se desvia tanto do fato ocorrido, “deforma” tanto a realidade, “degrada” de tal forma o original, que se situa no terreno da “caricatura”. É curioso e sintomático que os jornais parodísticos não sejam diários. Eles carecem que o texto a ser parodiado tenha sido publicado anteriormente ou tenha se acumulado na memória do leitor durante uma semana ou mais. Ele vive da notícia já consumida. Ele não dá o “furo”, ele debocha do “furo” ou valoriza um aspecto só do todo. (grifos nossos)

Isso posto, procederemos à análise de um trecho de José Simão para mostrar que a paródia jornalística nunca fica restrita apenas ao plano verbal, intertextual – o que é comum à paródia de cunho literário – mas que a sua verve e o seu caráter crítico (satírico ou irônico) decorrem do fato de ela ser necessariamente “extramural”, uma vez que o texto parodiante corresponde à fábula bem humorada de um acontecimento já noticiado.

Observemos como o cronista, via paródia, serve-se do cômico, do lúdico e da fantasia para avaliar a atuação de Antony Garotinho como secretário da Segurança Pública do Rio de Janeiro.

E o Garotinho? Cadê o Capitão Bolinha? Diz que vai combater os bandidos com estilingue. Ele é um misto de Bebê Johnson com Balas Juquinha! Só serve para segurança infantil (14/10/2004)

Como Rio e violência parecem ser as duas faces de uma mesma moeda, o cronista cria na manchete o termo Riolência para designar tal simbiose (RIOLÊNCIA! Garotinho ataca de estilingue!). Interessante é que, já na manchete, Garotinho é revelado como um secretário despreparado para combater a criminalidade, visto que, infantil e ineficazmente, usa um estilingue para atacá-la, fazendo, de fato, jus ao próprio nome.

Tal idéia é reiterada no trecho em que o cronista indaga sobre o paradeiro do Secretário da Segurança, implicitando-lhe a ausência por meio das interrogações (E o Garotinho? Cadê...?) e a incompetência por meio da designação paródica de Capitão Bolinha, que tem muito de caricatural não só porque nos remete à figura obesa de Antony Garotinho (bolinha) como também à de um desastrado personagem de uma antiga HQ brasileira (Bolinha). Ademais, o uso do diminutivo parece dirimir qualquer conotação de autoridade que pudesse remanescer no vocábulo capitão.

De fato, a expressão diz que (Diz que vai combater os bandidos com estilingue) sugere que nem como Capitão Bolinha, personagem infantil que o cronista promoveu a capitão, o secretario convence. Isso dá margem à jocosa afirmação do cronista que o associa a um bebê famoso (Bebê Johnson), conhecido por todos, mas inofensivo, cujas balas – contrariamente àquelas que combatem ladrões - são doces da marca... Juquinha!45

E novamente o uso do diminutivo, aliado a palavras que nos remetem à infância (estilingue, bebê Jonhson, balas), reiteram a ingenuidade do capitão Bolinha, digo, do Secretário da Segurança, Antony Garotinho.

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Impossível não ver neste texto a reversão bem humorada inerente ao espírito paródico, o qual, inclusive, justifica o comentário final: um capitão deste porte e com tais armas (estilingue e guloseimas) só serve para segurança de festa infantil ou, dito de outra maneira, não serve para nada, até porque, em bailes infantis (se é que existem), bastaria a presença das mães para garantir a segurança.

Portanto, o que nos cumpre observar é o fato de que o cronista conta com a informação já adquirida pelo leitor, à qual aquele se reporta sinteticamente antes de parodiá-la, como ocorre no texto em questão. A paródia, neste sentido, diferentemente do que afirma Sant’Anna (vide última citação), pode ocorrer com mais freqüência em jornais “sérios”, da classe A ou B, mesmo porque, em tese, estes leitores são mais bem informados e, talvez, mais assíduos: bastam poucas referências para que eles acionem as informações necessárias para fruírem o humor paródico.