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Resistência e Libertação Nacional

3.3. Protesto, resistência e tradições 1 A centralidade da resistência

3.3.2. As fronteiras das tradições

A ênfase na dimensão política do fenômeno da resistência é, certamente, a característica mais saliente do “modelo Mazrui”. Entretanto, há um ruído de fundo na forma como ele encara essa dimensão que deve ser considerado. Em resumo: sua tese pressupõe que os movimentos de resistência estavam marchando para o “reino do político”. Sendo este sintetizado, ou mesmo reduzido, à formação do Estado-nação.

Trata-se de uma argumentação que Mazrui mantém tanto na sua obra de 1970, acerca do protesto, quanto na HGA. Há, neste tipo de argumentação, uma diferença, ainda que não de todo explicitada, entre o pré-político e o político por excelência.

Mazrui, a exemplo dos autores do volume anterior da HGA, segue a clássica definição de Hobsbawm para quem os agentes “pré-políticos” seriam aqueles que não contavam com uma semântica clara, específica, para expressar suas aspirações. Só os movimentos sociais “modernos” poderiam ser considerados políticos por excelência.387 Essa é a lógica dual que subsiste em toda a historiografia da resistência da HGA, tendo em Mazrui uma de suas formas mais bem acabadas.

Dessa forma, todas as “tradições” elencadas por Mazrui possuem sua importância assegurada por se encaminharem para o “reino do político”, ou, então, por já estarem dentro dele, como no caso da “tradição de luta armada pela libertação nacional”. Trata-se de um esquema teleologicamente formatado. Além disso, nota-se a presença de mais dois problemas: primeiro, o fato de o autor realizar sua conceituação da resistência em uma tipologia que mistura atributos; segundo, por fazer da “tradição” seu mote principal.

Tradição, para Mazrui, parece ter o mesmo significado que para os autores do volume VII da HGA. Ela está associada a ideias de continuidade, manutenção e linearidade. O passo que Mazrui dá em relação ao volume anterior da HGA reside no reconhecimento da existência de várias tradições diferentes. Todavia, continuam presentes as ideias básicas da argumentação anterior. A “tradição” - seja ela de que tipo for - só existe no tempo linear da continuidade e só é atribuída de sentido se associada aos movimentos de libertação nacional e às noções de modernidade política. Outro problema reside nos pontos escolhidos pelo autor para caracterizar a resistência. Isto é, nos atributos escolhidos para a conceituação.

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130 Um fenômeno - qualquer que seja - para ser conceituado, precisa de um imperativo categórico que o acompanhe e que o diferencie dos demais. Este imperativo, ou atributo, precisa ser o mesmo utilizado para diferenciá-lo de outros fenômenos e, portanto, de outros conceitos. O atributo pode ser definido em termos discursivos, formais, temporais, simbólicos, estratégicos, e assim por diante. O importante é que seja exatamente o mesmo fator diferencial usado para definir os conceitos que espelham os fenômenos estudados.

Mazrui inscreve suas tradições em termos simbólicos e culturais, em um momento. Já em outro momento usa a da religião como o atributo diferencial e, por fim, este atributo passa a ser a estratégia. Há uma mistura de atributos definidores, algo problemático para qualquer tipo de conceituação.

A “tradição guerreira”, por exemplo, está vinculada a certos ritos de iniciação e a certos elementos típicos da religiosidade “animista”, mediúnica ou espiritualista. Ela vem acompanhada por elementos mágicos que passam de mão em mão, de geração em geração. Chegando, obrigatoriamente, às mãos dos independentistas modernos. O tom teleológico do argumento é perceptível à primeira vista.

A “tradição de jihad” também é definida em termos religiosos e, assim como a “guerreira”, sua tônica é marcial e linear. A diferença reside, no entanto, na crença. Ao invés dos cultos animistas estamos diante da palavra de Alá e seu profeta. A distinção entre ambas se faz a partir, portanto, de um imperativo comum: a religião. Um mesmo atributo diferenciador. Até este momento não há maiores problemas.

No entanto, Mazrui admite que a “tradição guerreira” também seria “primária”, afinal foi a primeira das iniciativas anticoloniais. Mas acontece que a jihad também esteve presente no primeiro momento da invasão colonial. O que impede, portanto, de tratá-la como uma “resistência primária”? Em suma: o tempo e a estratégia são iguais. Ambas se desenrolam durante a expansão colonial e ambas tem por modus operandi o espírito de guerra, o que torna artificial o adjetivo “guerreira” – ou “primária” - para caracterizar uma delas apenas.

Já a “tradição do radicalismo cristão” apesar de definida em termos religiosos – em aparente coerência com as demais – não vem acompanhada, necessariamente, da ênfase no fator marcial. O caso que poderia conjugar a cruz com a espada não é citado por Mazrui. A guarda imperial etíope não é usada como referência.

Trata-se de um fato curioso, visto que Menelik II – o Negus do império etíope na altura da primeira invasão italiana – se fez valer da ênfase religiosa no seu discurso

131 mobilizador. Este também seria um exemplo de “resistência primária”, conjugada, outrossim, pela experiência de um “radicalismo cristão”?

Com efeito, o atributo distintivo que Mazrui elegeu permite que ele diferencie iniciativas anticoloniais que poderiam, sob outro aspecto, usarem o mesmo rotulo tipológico: “primária”, “pré-política”, “armada”, “tradicional”, e assim por diante, como se queira. Mas admitamos que Mazrui use da religião como atributo distintivo. Se for este o caso, não estaríamos, ainda, diante de uma contradição radical em seu modelo visto que as três tipologias em questão vivem sob a sombra de algum deus e/ou espírito ancestral.

Todavia, na continuação do seu argumento, quando fundamenta as suas outras categorias, Mazrui sai da seara do fator religioso e realiza uma conceituação com base no que chamou de “estratégia”. A estratégia também é citada nas tradições anteriores, entretanto, por serem fundamentalmente as mesmas em duas delas – isto é, estratégia armada com forte simbolismo marcial – não pode ser tomada como atributo diferencial.

O autor faz referência a uma “tradição da não-violência” definida em termos homônimos como uma estratégia pacífica, relacionada, sobretudo, com a figura de Mahatma Gandhi. Usando do mesmo fator diferencial Mazrui fala da “tradição de luta armada pela libertação nacional”. Ao contrário da tradição anterior a força mobilizadora desta residiria na via armada e na formação de guerrilhas e partidos políticos com apelo à comunidade internacional.

De partida, é visível a mudança de atributo diferencial destas tradições para com as anteriores. Passa-se da religião e do simbolismo para o modus operandi propriamente dito. Algo que, por si só, já torna o empreendimento teórico em questão problemático. O novo fator distintivo é a “estratégia”. Essa confusão e mistura de atributos distintivos é, sem dúvida, um fator passível de crítica em Mazrui.

Poderíamos tentar salvar este edifício teórico ao colocar a discussão nos termos de Michel de Certau, distinguindo entre a “tática” e a “estratégia”. A tática existiria somente em relação a um outro, sem possuir lugar próprio, sendo “arma do fraco”, “sinônimo de astúcia”. A estratégia, ao contrário, seria determinada pela detenção de um poder, um postulado próprio, lugares teóricos que lhe conferem inteligibilidade, seria “gesto cartesiano da modernidade”, nas palavras de Certau.388

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132 Seria uma forma de salvar a tipologia de Mazrui afirmando que as tradições de jihad, guerreira e do radicalismo cristão inserem-se no plano da tática e a tradição não- violenta e de luta armada nacionalista seriam estratégias propriamente ditas por possuírem um lugar de atuação que buscam conquistar em definitivo: o Estado. Todavia, admitir a tese de Certau, para este caso, seria persistir em um regime de temporalidade teleologicamente condicionado.

Em um momento existe o “pré-político”, que se nutre da tática e que deve seguir rumo ao “político”, que deve seguir, por sua vez, rumo à estratégia. Tratar-se-ia de uma falsa solução para um falso problema que persiste por se fazer valer, direta ou indiretamente, da lógica binária “tradição versus modernidade”.389

Talvez a lógica binária em questão seja menos relevante do que todos os modelos até agora elencados parecem supor. Sejam aqueles presentes na HGA, sejam os demais disponíveis em outras obras marcantes. O nacionalismo revolucionário pan-africano surge, nesse interim, como “tipo ideal realizado na evolução histórica”, para usar a expressão de Thompson.390

Acreditamos ser mais frutífero atentar para o caráter desigual e irregular das transformações da resistência, tomada enquanto fenômeno concreto. Descobrindo, assim, elementos “tradicionais” no período “moderno” e vice-versa sem engendrar em uma fórmula opositiva em que um seria desenho acabado e o outro rascunho preparativo feito às pressas, intempestivamente. No afastaríamos, assim, de tipos ideais historicamente evolutivos.

Recusamos, com isso, a acepção linear que carrega o termo “tradição” em todos os trabalhos, incluindo o de Mazrui. Apesar de este se esforçar por estabelecer “tradições plurais” estas possuem fronteiras pouco visíveis e são conceituadas a partir de fatores diferenciais distintos que misturam atributos.

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É ainda justamente este falso problema que persiste na teoria social contemporânea tomada mais amplamente. Slavoj Zizek, por exemplo, chega a se pronunciar contrário à “fórmula da resistência”. Em suas palavras: “não gosto da fórmula da resistência. Aceitamos que o poder existe, resistimos e começamos a gozar com a resistência. Acho que é preciso tomar uma decisão. É claro que agora não podemos deixar de resistir, mas qual é nossa verdadeira meta? Não gosto da posição crítica que não assume uma responsabilidade — o Estado existe, nós o criticamos, mas precisamos manter distância. Nesse sentido, sou muito pragmático: se não há alternativa, prepare-se para sujar as mãos”. Isto é, a resistência, reduzida à mera “tática”, ou – para o nosso caso – como elemento da “tradição” -, não teria por alvo a tomada do Estado. Entretanto, a tomada do aparelho de Estado não exclui, necessariamente, a resistência, o que torna a afirmação de Zizek só em parte verdadeira, isto é, naquilo que se refere às obras específicas de Michel Foucault, Alain Badiou e Judith Butler, citadas pelo autor esloveno. Slavoj Zizek,

Entrevista concedida a Rogério Bettoni e Bernardo Malamut, Disponível em <http://umbigodascoisas.com/2012/12/02/slavoj-zizek-entrevista> Acessado em 20 de Maio de 2014.

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133 Amalgamam-se, no argumento de Mazrui, elementos diferenciadores como o tempo, o discurso, a estratégia, a lógica simbólica. Desembocando, assim, em fronteiras artificiais e conceituações arbitrárias. Isso nos leva a concluir que a resistência não tem por fim último a tomada do Estado, ou a construção da Nação. Estas podem ser, tão somente, uma de suas consequências, tudo vai depender do contexto histórico em que ela esteja circunscrita.

Se encararmos a construção do Estado-nação, ou – o que dá no mesmo - a trilha que leva ao “reino do político”, como fim último da resistência, estaríamos retirando elementos históricos de seu contexto original, submetendo-os a um processo de estetização para, em seguida, recorrer às suas supostas semelhanças classificando-os em tipologias e inserindo-os em uma narrativa política que lhes era originalmente estranha. É justamente este o procedimento adotado em grande parte dos casos, incluindo Mazrui. Qualquer constructo teórico-historiográfico que encare a “modernidade” - encarnada pelo “Estado-nação” -, como ponto culminante de uma “tradição de resistência”, estará fadado a confundir duas instâncias diferentes do conceito de resistência.

Uma dessas instâncias diz respeito à historicidade própria a um evento específico de iniciativa e oposição anticolonial. A outra é relativa aos fenômenos de ruptura, continuidade ou antecipação que acontecem no interior dessa historicidade.391 Obliterando-se estas duas instâncias e incorrendo em um processo de “afinidade seletiva” desagua-se em um vínculo muitas vezes artificial entre as independências e as iniciativas anticoloniais do final do século XIX.