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O CONCEITO PARTE I Resistência e expansão colonial

2.3. Gênese dos estudos acerca da resistência

Surgidos como resposta historiográfica e militante ao trauma colonial os estudos acerca da resistência africana não chegaram a ficar reunidos, num primeiro momento, em uma mesma “escola” ou mesmo um corpo autoral mais ou menos próximo. Tal não impede o mapeamento retrospectivo de alguns dos principais pontos de referência da origem do conceito no que tange o caso africano.

Já em 1924 Leys Norman empreende um interessante estudo acerca da situação colonial, centrando-se no Quênia. Não se pode dizer que, em sua obra, Norman realizou um estudo sistemático acerca da resistência africana. Contudo, isso não se configura como um impeditivo para pôr em relevo sua argumentação.

Segundo ele, haveria uma íntima relação entre a resistência e a modificação do modo de vida tradicional frente ao avanço do poder colonial, visto que este trazia consigo profundas consequências sociais, das quais destaca especialmente o trabalho assalariado. Escreve Norman que os levantes deveram-se, essencialmente, à descoberta por parte dos africanos de que a ocupação colonial envolvia a inevitável perda da “independência tribal”. Somada a essa perda de soberania vinham a tributação e o trabalho compulsório como sinais comprobatórios de um novo estado de coisas.160

Norman assegura que no momento em que escreve seu trabalho os levantes anticoloniais são menos comuns em relação à primeira fase da ocupação europeia, mas isso não seria devido a uma placidez dos povos subjugados, que teriam passado a reconhecer na colonização grande benefício. Ao contrário, a ausência dos levantes seria causada pelo esgotamento das perspectivas após as numerosas derrotas militares sofridas. Devidas, sobretudo, à falta de aparato militar que pudesse fazer frente ao

159

Jean François Bayart, El Estado en África, op. cit., p. 22.

160

60 invasor. Norman fala de lanceiros que tombavam baleados em sequência sem conseguir infligir uma única baixa às forças coloniais.161

Décadas mais tarde, em 1956, Thomas Hodgkin publica um trabalho significativo – Nationalism in Colonial Africa. Nele, o autor faz uma análise do fenômeno do nacionalismo na África colonial. A oposição anticolonial não chega a ser recorrentemente nomeada pelo termo “resistência”. Mas Hodgkin erige uma tipologia da insubmissão, na qual inclui: agitações constitucionais, apelos diplomáticos, boicotes, tumultos, desobediência civil e, por fim, “terrorismo” e revolta armada.162

Seria errôneo concluir que há, em Hodgkin, completa ausência de um conceito devido à falta de uma palavra específica ao vocabulário de análise. O conceito está relacionado à sua prática: a insubmissão ao jugo colonial. A palavra utilizada para nomeá-la dependerá da voz que o enuncia. Ficando o conceito sujeito, portanto, ao seu caráter polifônico. Ademais, como argumenta Donald Crummey, há uma estrutura conceitual subjacente que reside, basicamente, na ênfase na substituição do regime colonial/estrangeiro pelo autóctone/africano.163

Em que pese a importância desses trabalhos pioneiros o giro qualitativo acontece em meados dos anos de 1960. Neste momento a palavra “resistência” irá se tornar um termo de maior consenso para exprimir a estrutura conceitual em questão. Delineia-se, também, um corpo autoral mais fixo e inter-relacionado. Dos inúmeros escritos dessa geração destacamos os textos seminais de Basil Davidson e Terence Ranger.

Em artigo publicado em 1968, Davidson lança um clamor para que se atente para o papel central da resistência na história da África. O autor argumenta que essa resistência viria de “longa data”, constituindo-se em “tradições” que possuiriam formas e características diferentes. Além dessa diversidade o fenômeno teria sido incessante.164 A argumentação de Davidson se desenvolve em dois sentidos. De um lado ele insiste na importância metodológica do conceito para o correto entendimento dos fenômenos mais recentes que então se desenrolavam em solo africano. Neste caso, as lutas pelas independências nacionais. A história africana ofereceria “tipologias de iniciativas e reações” que, se corretamente mapeadas, poderiam corrigir métodos e

161

Idem, Ibidem, p. 342.

162

Thomas Hodgkin, Nationalism in Colonial Africa, New York University Press, 1956, p. 11.

163

Donald Crummey, “Introduction: The great beast” In ___, (Edit.), Banditry, rebellion and Social

Protest in Africa, London, James Currey/Portsmouth, Heinemann, 1986, p. 11. 164

Basil Davidson, “African resistance and rebellion against the imposition of colonial rule” In Terence Ranger, (Edit.), Emerging themes in African History, Nairobi, East African Publishing House, 1968, pp. 177.

61 discursos advindos da retórica da historiografia colonial.165 De outro lado, estudos baseados no conceito de resistência provariam que esta atuou – e ainda atuaria - como estimulante no desenvolvimento dos povos africanos.166

A questão é, portanto, desde o seu início, tanto historiográfica quanto política. Por este motivo, não foi o acaso que providenciou que o prefácio da coletânea em que Davidson lança seu apelo para o estudo da resistência tenha sido redigido pelo então chefe de Estado da Tanzânia, Julius Nyerere. Sendo este, à época, um grande expoente das teorizações ideológicas anticoloniais, gozando de notável prestígio internacional.

Um tratamento mais propriamente sistemático para a questão veio pouco depois, ainda na década de 1960, com a primeira publicação do longo artigo de Terence Ranger – Primary Resistance and Modern Mass Nationalism. Nesse estudo, Ranger resgata os trabalhos de Norman e Hodgkin, ao mesmo tempo em que se põe a dialogar com Davidson. O autor lança mão das categorias que se fariam usuais a partir de então. Para Ranger, haveria duas tipologias básicas para a resistência e, a partir delas, ele traça seu conceito. Seriam estas as “resistências primárias” e “secundárias”.

De um lado, a “resistência primária” diria respeito àquelas iniciativas e reações desenvolvidas durante a expansão colonial. De outro lado, o “moderno nacionalismo de massas” – ou “resistência secundária” – corresponderia às reações desenvolvidas principalmente no pós-segunda guerra.167

Segundo Ranger, os ditos movimentos primários de resistência formaram o ambiente em que, posteriormente, a política anticolonial se desenvolveu. A resistência teria tido profundos efeitos, também, sobre a política e as atitudes dos colonizadores. Neste sentido, teria havido uma “interação complexa” entre as manifestações primárias e secundárias, que, muitas vezes, se sobrepuseram uma à outra. A “resistência primária” semeou projetos que seriam desenvolvidos futuramente, servindo de inspiração para o “moderno nacionalismo de massas”.168

Em uma palavra: trata-se de demonstrar o “sentido da resistência”. De onde surge e para onde ela caminha.

A tese de Ranger alcançou tamanho prestígio que escapou ao círculo especializado de estudos africanos. Figuras de renome, como Edward Said, avalizaram a

165

Basil Davidson, Angola no centro do furacão, Lisboa, Delfon, 1974, p. 62.

166

Basil Davidson, “African resistance and rebellion against the imposition of colonial rule”, op. cit. p. 178.

167

Terence Ranger, “Connections between ‘Primary Resistance’ Movements and Modern Mass Nationalism in East and Central Africa, Parts I & II” In Gregory Maddox, (Edit.), Conquest and

resistance to colonialism in Africa, New York/London, 1993, pp. 1- 30. 168

62 interpretação de Ranger. Para o intelectual palestino, Ranger havia logrado demonstrar a coerência e continuidade da “luta moral e intelectual [...] da resistência nacionalista ao imperialismo”. Tal resistência, portanto, “prosseguiu por décadas, tornando-se parte orgânica da experiência imperial”.169

Esta ideia continuísta norteou, desde então, os estudos acerca da resistência africana. Foi esta geração, formada por Davidson e Ranger, a fundadora deste paradigma conceitual linear. Da mesma forma, foi ela que formou o núcleo fundamental da HGA. Entretanto, o fato de advirem, em sua maioria, de uma mesma geração, não implica que os autores tenham preenchido o tecido conceitual da resistência com um mesmo conteúdo.

O conceito de resistência é opositivo. Ele só funciona através da oposição entre um outro e um mesmo. É ponto central que o outro da equação mostra-se, agora, no volume VII da HGA, expressamente determinado e comum em todas as análises: o ocidente europeu.

À parte este consenso, haverá duas formas distintas de tratar o conceito. À falta de melhores termos designaremos uma abordagem como “tradicionalista” e, a outra, como “marxista”. Longe de serem gavetas teóricas intransponíveis há sempre um intermédio entre ambas as abordagens, não sendo uma indiferente à outra e, tampouco, mutuamente excludentes. 170