• Nenhum resultado encontrado

Interlúdio: Resistência e lógica histórica

Resistência e Libertação Nacional

3.5. Interlúdio: Resistência e lógica histórica

Cabe, agora, um breve intervalo na linearidade do texto. Algo que, esperamos, não frustre o leitor. Podemos resumir muito do que foi afirmado anteriormente em uma questão problemática acerca da historiografia de resistência que estamos analisando: ao tomar, ainda que inconscientemente, a lógica binária do colonialismo, os historiadores convertem a resistência em um conceito analítico estático e teleológico, retirando-lhe seu caráter processual-causal. Esta lógica binária reside na antinomia entre o moderno e o tradicional. Antinomia esta criada pela doxa colonialista e reforçada, contraditoriamente, por parte do discurso nacionalista pan-africano.

Guardada esta questão, neste intervalo entraremos no elemento chave do fazer historiográfico: a lógica histórica. Cabe se distanciar da lógica binária do colonialismo, substituindo-a pela lógica histórica. Talvez ela ajude a resolver a questão, ou, ao menos, a problematiza-la de forma mais correta.

Por “lógica histórica” E. P. Thompson designava o “método lógico de investigação adequado a materiais históricos, destinado na medida do possível, a testar hipóteses”. Hipóteses estas relativas à estrutura e causação, num diálogo permanente “entre o conceito e a evidência, um diálogo conduzido por hipóteses sucessivas, de um lado, e a pesquisa empírica, do outro”. O objeto, continua Thompson, do conhecimento histórico são os “‘fatos’ ou evidências, certamente dotados de existência real, mas que só se tornam cognoscíveis segundo maneiras que são, e devem ser, a preocupação dos

412

141 vigilantes métodos históricos”. 413

Por esta perspectiva, afirmarmos ser o conceito a forma teórico-formal – ou “abstrata” – de tornar cognoscível a história vivida na qual se plasmam os fatos e evidências dotados de existência real, nos termos de Thompson.

Definindo a história como um processo, não dotado de linearidade – assim como este trabalho – Thompson afirma que os processos históricos já acabados, isto é, pretéritos – a derrocada do império malinquê de Samori Touré, por exemplo – “realmente ocorreram, e a historiografia pode falsificar ou não entender, mas não pode modificar, em nenhum grau, o status ontológico do passado”. Por conseguinte, a historiografia “se modificará, e deve modificar-se, com as preocupações de cada geração”.414

Entretanto, obviamente que a escrita da história, por mais que se modifique, não alterará o aludido “status ontológico do passado”.

A historiografia de resistência africana irá, grosso modo, afirmar – com razão – que a historiografia colonial esteve equivocada em seu percurso não necessariamente por ter errado nas datas dos fatos, ou na narrativa factual stricto sensu, mas sim porque negligenciou evidências que não lhe interessavam, que desmentiam contundentemente sua ideologia racista, ou porque formulou perguntas e respostas conceitualmente inadequadas aos dados. Isso fica claro nas atas das reuniões do comitê científico da

HGA. Nelas foi afirmado, categoricamente, que o que interessava era narrar a

insubordinação anticolonial não como atos irracionais e sanguinários, como a historiografia colonial os matizava, mas sim como aquilo que de fato foram: atos de resistência.415

É bem verdade que, ao fazer isto, a HGA esteja, também, fazendo um juízo de valor acerca do passado. Afinal, “resistência” longe de ser um vocábulo, torna-se conceito, o que de maneira alguma é algo inadequado. O problemático é quando ela torna-se, também, adjetivo moral. Lançar juízos de valor é algo adequado, se feito de forma mediada e não moralizante, “porque o historiador examina vidas e escolhas individuais, e não apenas acontecimentos históricos”.416

Ou seja, não se trata somente de analisar o fenômeno, o processo, da resistência, mas sim quem e por que resistiu. O julgamento deve ser feito “dentro do devido e relevante contexto histórico”, sem isso há tanto o anacronismo quanto, também, o

413

E. P. Thompson, A miséria da teoria, op. cit., p. 49.

414

Idem, p. 51.

415

UNESCO, Septieme reunion du bureau du Comite Scientifique International pour la redaction d’une

Histoire Generale de L’Afrique, Paris, 18 – 29 de julho de 1977. Disponível em

http://unescodoc.unesco.org/images/0003/000324/032484ed.pdf.

416

142 conceito torna-se adjetivo moral. É essa adjetivação e anacronismo que leva Boahen a afirmar, como já mostrado, que “a causa” pela qual os resistentes se bateram “resta viva em seus descendentes”.

De forma alguma o próprio Boahen, enquanto descendente desses mesmos resistentes, se bateria exatamente pela mesma causa que estes. Samori Touré pegou em armas, tanto por causa de sua soberania, como também para continuar seu comércio escravista – afinal, ambas as coisas estavam articuladas.417 Erudito singular, Boahen o sabia, naturalmente. Não se trata de desconhecimento, mas de reconhecimento de um fato. A falta de reconhecimento deste fato para conceituar a resistência de Touré frente ao colonialismo deve-se às afinidades seletivas do historiador com seu objeto. E mais, do sujeito, Boahen – ou Mazrui, ou Ki-Zerbo -, com seu próprio passado em seu contexto de produção.

É verdade que somente quem está vivo pode dar um significado ao passado. Esse passado foi, e provavelmente sempre o será, “uma discussão acerca de valores”. Mas, ao “reconstituir esse processo, ao mostrar como a causação na realidade se efetuou, devemos, à medida que nossa disciplina o permita, controlar nossos próprios valores”. O que é possível é identificar-se “com certos atores do passado, e rejeitar outros”.418

A HGA, com sua postura, está evidenciando que são esses valores – de oposição, insubordinação – que tornam a história significativa para nós,419 sendo precisamente

estes valores que ela pretende ampliar e manter em seu próprio presente. Ela volta ao passado, congratula-se com seus heróis, mas enquanto o faz atribui-lhes o seu próprio significado a estes, significado que lhes era originalmente estranho.

O “machado dos espíritos” que o velho guerreiro entrega ao líder nacionalista, que Mazrui utiliza para endossar o seu argumento, é justamente o objeto antigo utilizado, sem maiores problematizações, em um novo contexto.420 Por um lado tem-se

417

Sobre a relação de Samori com o comércio de escravos ver capítulo II.

418

Idem, Ibidem, p. 53.

419

Pedimos licença para fazer coro ao nosso próprio objeto de análise.

420

Acima mostramos como o diálogo entre o passado longínquo e a modernidade africana acontece e encontra-se documentado em, por exemplo, expressões literárias, das quais citamos os romances de Pepetela e Naguib Mahfouz. Eles, os romancistas, podem fazer esse vínculo sem problematizá-lo. A licença poética lhes concede essa brecha, e ainda bem que essa concessão existe, pois abre margem para a inventividade e gênio próprios desses autores. É justamente essa concessão que os tornam nossas fontes, nossos registros, nossa documentação acerca do imaginário de certa época. Um crítico literário que acusasse Mahfouz de “anacronismo” cairia no ridículo e seria tanto infeliz quanto ingênuo, na verdade é até difícil imaginar tal situação. Já os historiadores não possuem tamanha liberdade, e, em nosso caso, ainda bem que essa concessão não existe. Se tal vínculo for proposto em uma obra histórica ele deverá ser

143 a crítica incisiva à dominação colonial, à violação que ela significou, por outro lado tem-se a obliteração das contradições dos próprios resistentes, o que, com efeito, os distanciam de nós.

Assim, a HGA – ou a historiografia de resistência de forma mais geral – identifica-se com atores que antes eram rejeitados, e rejeita outros que anteriormente eram alvo da empatia da historiografia colonial. Essa identificação, em si, não é o problema, 421 o fato é que ela ganha contornos de um discurso moralizante e anacrônico. A historiografia toma uma posição de valor em busca de sua própria genealogia. Afinal, ela é escrita pelos “descendentes” de um mesmo “grau de família”.

O conceito acaba ditando o discurso historiográfico. Algo nocivo à prática do historiador, visto que o que deve ditar a sua argumentação são as evidencias, postas em diálogo com o próprio conceito que não deve suplantá-las. O “nós resistimos” não é igual ao “eles resistiram”, por mais que ambos os tempos verbais se conjuguem no terreno da modernidade. As evidências – presentes na forma de legitimação ideológica da resistência, no seu modus operandi, nas motivações subjacentes, etc. – o comprovam.

O vínculo de causação é, no entanto, o mesmo: o colonialismo. Isto justifica a existência do conceito, e não a irmandade, o “grau de família” supostamente inerente aos povos africanos, ou uma mesma “causa” – intento - hereditária. Irresistivelmente essa lógica argumentativa leva a HGA a tratar a resistência como constructo conceitual estático, e não como processo. Retirando-lhe seu caráter contraditório ao longo de sua esteira causal. De fato, a resistência exibe uma elasticidade grande para nomear fenômenos, mas essa elasticidade não é decorrência de ela ser estática, mas sim porque ela precisa dar conta do desenvolvimento irregular e desigual de um mesmo processo substancialmente contraditório: a oposição, enfrentamento, ao colonialismo.