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O CONCEITO PARTE I Resistência e expansão colonial

2.6. Resistência e Temporalidade 1 Historiografia e Política

2.6.2. Continuidade e a ruptura

Adentra-se, neste ponto da análise, na questão mais espinhosa de toda a discussão acerca da resistência anticolonial africana. Aquela que diz respeito à sua temporalidade propriamente dita. Mais importante do que classificar como ela, a resistência, acontece – isto é, sua tipologia – é mapear em que tempo ela ocorre. Como visto anteriormente, a abordagem tradicionalista tende a privilegiar as elites tradicionais do período pré-colonial enquanto personagens da resistência. Por outro lado, a abordagem centrada em recortes de classe – “marxista” – privilegia contingentes urbanos ou rurais que expressam sua resistência em uma lógica discursiva direta ou indiretamente anticapitalista.

Qual seria o vínculo existente – se é que existe - entre esses momentos iniciais da oposição africana e as posteriores lutas pela independência? Trata-se agora somente de um interlúdio que anuncia o principal tema a ser desenvolvido no volume seguinte da

HGA.

Este tema é central em toda a discussão acerca da resistência, porque mesmo admitindo a continuidade entre ambos os momentos, eles não formam unidades homogêneas. Como salientou Canguilhem: “A progressividade de um advento não

266

94 exclui a originalidade de um evento”.267

Toda a dificuldade da análise teórica acerca do fenômeno da resistência reside justamente em captar essa originalidade ao mesmo tempo em que se discerne o momento em que essa mesma originalidade implica em uma mudança qualitativa no fenômeno.268

Em geral, sejam tradicionalistas ou “marxistas”, os autores inseridos na HGA aceitarão o caráter progressivo da resistência, bem como a continuidade entre as oposições iniciais ao jugo colonial e as posteriores lutas nacionalistas pela independência. Neste ponto, discordamos dos termos em que essa continuidade é colocada. Quais sejam: as antinomias entre o “moderno” e o “tradicional”. Na HGA a modernização é vista como importação, em sociedades “tradicionais”, de novos papéis próprios da sociedade industrial. Dessa forma, as mudanças qualitativas no fenômeno ficam quase sempre vinculadas ao processo de “modernização” da resistência.269

Coube a Terence Ranger levar a cabo a discussão sobre o caráter “tradicional e moderno” da resistência. Vale lembrar, mais uma vez, que a HGA foi semeada em plena onda de guerras de libertação nacional e que alguns movimentos nacionalistas “manifestadamente se inspiraram nas lembranças de um passado heroico”.270

Os historiadores do projeto da HGA veicularam a ideia de resistência ao nacionalismo revolucionário pan-africano do século XX e, tal como muitos militantes deste último, buscaram traçar uma continuidade entre a fase da expansão colonial do final do séc. XIX e as guerras de libertação nacional. Nisto, a HGA entra em desacordo com uma significativa parcela da historiografia, que não vê tal continuidade.

Tal é o caso de Henri Brunschwig para quem a resistência estaria vinculada aos laços étnicos: “La resistance, en effet, paralt intimement liee ‘a l’ethnie. Et cette ethnie, si difficile ‘a definir et si constante, pourrait bien etre specifique de l’Afrique noire”,271 de forma que os movimentos nacionalistas estariam em outro plano organizativo em que as ideologias “importées d’Occident, et assez souples elles-mêmes, assez ambigiües pour pouvoir s’adapter aux peuples et aux circonstances”.272

267

Georges Canguilhem, O Normal e o Patológico, Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2009, p. 33.

268

Argumentação semelhante usou Ruy Mauro para o caso da relação entre o fenômeno colonial e a dependência. Neste ponto específico o trabalho de Mauro nos serviu de inspiração. Para mais ver Ruy Mauro Marini, Dialética da Dependência, op. cit.

269

Aprofundaremos este juízo no capítulo posterior deste trabalho.

270

Terence O. Ranger, “Iniciativas e resistências africanas em face da partilha e da conquista”, op. cit., p. 65.

271

Henri Brunschwig, “De la Résistance Africaine à L’Impérialisme Européen”, The Journal of African

History, Vol. 15, nº 1, London, Cambridge University Press, 1974, p. 64. 272

95 Defendendo o ponto de vista continuísta Ranger argumenta que a linha argumentativa de Brunschwig parte da premissa de que o nacionalismo moderno é uma manifestação da tendência ao “centralismo da inovação e à adoção de grandes projetos”, o que significa que pertence “a uma tradição diametralmente oposta à da resistência”.273 Este juízo que Ranger faz acerca de Brunschwig, estando correto, deve ser aprofundado.

Em Brunschwig o recorte étnico é tido como o “reflexo elementar do desenvolvimento, condenado pela modernização”.274

Dessa forma, seu conceito da resistência, ancorado que está na distinção desta com o fenômeno nacional, encontra-se alicerçado na própria retórica colonial. Afinal, trata-se de classificar à parte as sociedades africanas – diferentemente das ocidentais elas são “étnicas” – negando-lhes qualidades específicas.275 A definição da resistência de Brunschwig é feita a partir da lógica da negação, ele a define a partir daquilo que ela não seria. Além de reducionista essa conceituação encontra pouco embasamento histórico-etimológico.

O termo “etnia” advém do grego ethnos que pode ser traduzido por povo ou nação. Seu surgimento remonta ao século XIX, portanto à expansão colonial em África. Desde logo ele foi utilizado, juntamente com o termo ainda mais reducionista de “tribo”, em detrimento de “nação”, pois se tratava de “classificar à parte algumas sociedades, negando-lhes uma qualidade específica”. Para a doxa colonial convinha definir as sociedades africanas – bem como as ameríndias, asiáticas e oceânicas – como diferentes de um “nós” ocidental, retirando-lhes, portanto, elementos que pudessem inseri-las em uma “humanidade comum”.276

Em resumo: “diferentemente do povo ou da nação – produtos de uma história, a etnia é efetivamente o resultado de uma operação de classificação prévia [...] [que] só aparentemente se assemelha a uma taxinomia racional e científica”.277

Assim adjetivadas, as sociedades africanas passavam a ser vistas como dessemelhantes e mesmo inferiores ao ocidente, termos como etnia e tribo vinculam-se, por conseguinte, à lógica binária do colonialismo: sociedade sem história / sociedade com história; sociedade pré-industrial/sociedade industrial; comunidade/sociedade. E, para o caso de Brunschwig, resistência/nacionalismo. De forma incisiva Amselle afirma

273

Terence O. Ranger, “Iniciativas e resistências africanas em face da partilha e da conquista”,op. cit., p. 66.

274

Jean-François Bayart, op. cit., p. 82.

275

Jean-Loup Amselle, “Ethinies et spaces: Pour une anthropologie topologique” In ___; Elikia M’Bokolo (Edits.,) Au couer de l’ethnie. Ethnies, tribalisme et État en Afrique, Paris, La Découvert, 2005, p. 14 .

276

Idem, Ibidem.

277

96 que a tradição intelectual que enxerga nas configurações comunitárias/sociais etnicamente formatadas “modos de resistência ao Estado e ao capitalismo” deve ser descartada.278

O que interessa à esta discussão, de fato, é que o recorte étnico não pode, e não serve, como divisa para conceituar a resistência. Não se trata de conceituar a ideia de etnia, mas sim de saber se ela constitui um referente o qual se pode prescindir ou não.279 Neste caso, enquanto marco fundamental para o conceito de resistência a etnia seria tão só mais um marcador social advindo da lógica colonial e, precisamente por este motivo, deve ser rejeitada enquanto imperativo categórico para definição da resistência. Além de reducionista estaríamos cativos do pensamento binário colonial, algo que, acreditamos, só reforça estereótipos que o conceito de resistência, bem aplicado, deve ser capaz de romper.

Além de Brunschwig há outro autor a pôr em questão o argumento da continuidade entre resistência e nacionalismo, trata-se de Edward Steinhart. Para ele, tratar as insurreições militares datadas dos anos iniciais do colonialismo como precursoras das guerras de libertação nacional seria dar legitimidade aos numerosos regimes autoritários que se instalaram em vários países africanos no pós-independência e consolidar, dessa forma, uma espécie de “mito nacionalista autoritário”.

Nas palavras do próprio Steinhart: “Instead of examining anti-colonial resistance, protest and liberation movements through the distorting lens of nationalist mythology, we must create a better ‘myth’, one better suited to interpreting the reality of African protest”.280

Steinhart parece querer, afirma Ranger, “reivindicar a herança das resistências para a oposição radical ao autoritarismo nos novos Estados nacionais da África.” 281

De todo modo, ao contrário da tese de Brunschwig a conceituação de Steinhart é tanto mais sólida quanto menos cativa da lógica colonial. Ao contrário, é tão crítica a esta quanto ao seu suposto adversário direto: o nacionalismo africano dos anos de 1960 e 1970.

Para se contrapor a essas teses Ranger faz uso, na HGA, do trabalho de Allen Isaacman. Em uma tese publicada anos antes da HGA, Isaacman argumenta, partindo do

278

Jean-Loup Amselle, op. cit., p. 24

279

Jean Bazin, op. cit., p. 90.

280

Edward Steinhart, “The Nyangire rebellion of 1907: anti-colonial protest ant the nationalism myth” In Gregory Maddox, (Edit.), Conquest and resistance to colonialism in Africa, New York/London, Garland Publishing, 1993, p. 362.

281

Terence O. Ranger, “Iniciativas e resistências africanas em face da partilha e da conquista”, op. cit., p. 66.

97 caso moçambicano, que as lutas camponesas da “era clássica da resistência” acabaram por ser o germe da contestação que desembocaria na formação da Frelimo (Frente de Libertação Nacional de Moçambique), um moderno movimento nacionalista que encabeçou a guerra de libertação.

Para Isaacman, a “natureza do apelo, expressa em termos anticoloniais, e o alcance da aliança que este apelo tornou possível, sugerem que a rebelião de 1917 ocupou uma posição de transição entre as formas primitivas de resistência africana e as guerras de libertação de meados do século XX”. De maneira que “A revolta de 1917 constitui a culminação da longa tradição de resistência zambeziana e simultaneamente se torna precursora da recente luta de libertação”. 282

Essa percepção longa, linear e indiscutível de tal temporalidade acaba dando lugar a expressões panfletárias, implicando o uso de adjetivos positivos para caracterizar os resistentes (como fez Ranger em citação acima, ao afirmar que as independências se inspiraram em um passado heroico).

Contudo, apesar do diálogo inevitável entre o pragmatismo político dos anos 1960, 1970 e 1980 de um lado e a teoria historiográfica de outro não se pode reduzir esta última à primeira. Henry Mwanzi é o autor que mais se esforça em demonstrar que o projeto da HGA não compactuaria com os usos e abusos do passado insurgente. Diz Mwanzi que os envolvidos nas lutas e movimentações políticas nacionalistas do pós- segunda guerra tendiam a “considerar-se herdeiros de uma longa tradição de combate, que remontava aos começos do século atual, se não a antes”. Tal ponto de vista, continua Mwanzi, “é uma tentativa de utilizar critérios do presente – de utilizá-los retroativamente – na interpretação dos acontecimentos do passado”.283 Em uma palavra: têm-se aqui a única posição explícita de crítica e denúncia a uma visão anacrônica da resistência.

Mesmo referenciando outros autores da HGA, Boahen em particular, Mwanzi mostra-se, pelo seu posicionamento, como uma espécie de ponto fora da curva. Trata-se do único autor que problematiza, de forma contundente, o suposto vínculo direto entre o nacionalismo africano do pós-segunda guerra e as ações de insubordinação datadas do início da invasão colonial. Sua crítica às elites africanas que encabeçaram as

282

Allen Isaacman, A tradição de resistência em Moçambique, Porto, Afrontamento, 1979, pp. 288, 290.

283

Henry A. Mwanzi, “Iniciativas e resistência africanas na África oriental, 1880-1914” In Albert Adu Boahen, (Edit.), op. cit., pp. 167, 168.

98 independências vem cortante dentro da narrativa linear e homogênea que perpassa grande parte dos demais escritos da HGA.

Sua assertiva mostra-se, por isso, como um aviso. Buscar, por meio de uma perspectiva historiográfica, imune aos anacronismos da pragmática política, a mediação necessária entre dois momentos, que, se comportam claras diferenças conjunturais, possuem o mesmo vínculo causal: o colonialismo.