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Resistência e Libertação Nacional

3.2. Do protesto à resistência

3.2.2. Rumo ao reino do político

Anos depois de desenvolver sua teoria do protesto Ali Mazrui, agora editor do volume VIII da HGA, parece realizar uma mudança tanto no seu vocabulário analítico quanto nas categorias dele advindas. Parece ser menos um fenômeno de ruptura com sua obra anterior e mais um processo de acréscimo ao seu modelo geral.

Atestando a continuidade com o primeiro trabalho o autor começa por repetir as palavras daquele que, ao que parece, é seu inspirador: “Procurai primeiramente o reino político e todo o restante vos será dado em suplemento”, sentenciou o ganense Kwame Nkrumah, líder político e teórico das independências africanas.339

338

Antonio Gramsci, Quaderni del Carcere, Turino, Einaudi, 1977, p. 1577.

339

Kwame N’Krumah apud Ali A. Mazrui, “Procurai primeiramente o reino político...” In____; C. Wondji (Edits.), História Geral da África. Vol. VIII, São Paulo: Cortez, 2012, pp. 126.

115 Segundo Mazrui, Nkrumah estaria convencido que a independência política era o primeiro passo a ser dado na projeção de um futuro melhor para o continente. A declaração derivaria “da ideia de primazia do político nos assuntos humanos”. Algo que afastaria o pensador ganense do “determinismo econômico”. Dessa forma, conclui Mazrui, “fosse um marxista por completo, Kwame Nkrumah teria proclamado ‘Procurai primeiramente o reino econômico e todo o restante vos será dado em suplemento’”.340

Mazrui assume e faz uso de N’Krumah enquanto referência intelectual. A busca pelo reino do político deve ser entendia, nesse contexto, enquanto a busca, então recém- iniciada, da construção do Estado-nacional em África, algo representado logo na capa deste volume da HGA.

Na imagem, usada como capa da edição original da obra, é possível ver o corredor representando o africano – no singular – cumprindo seu percurso. Em sua mão, a bandeira do continente. Ao seu lado, as bandeiras nacionais. À esquerda, os líderes políticos que encabeçaram as independências, ilustrados como ramos ou frutos de uma mesma árvore. O corredor se aproxima do reino do político. Ele é a representação singular do plural formado pelos políticos a seu lado. A bandeira que carrega, do mesmo modo, indica unidade africana dentro, e a partir de, um recorte nacional. O tom teleológico-linear anteriormente discutido não se faz ausente. O maratonista tem uma meta, um fim. Para alcançá-lo, conta com a proteção dos olhares solidários dos chefes de Estado africanos.

340

116 Além do tom teleológico – a ser posteriormente discutido -, há na expressão de Mazrui um equívoco precisa ser problematizado. O problema reside na afirmação segundo a qual o líder ganense Kwame Nkrumah não seria um “marxista por completo”,341

dada a sua rejeição ao determinismo econômico e à ênfase do domínio político na luta pela independência.

O marxismo com o qual Nkrumah se identificava – e, com ele, boa parte dos demais líderes e teóricos africanos daquele período – estava vinculado à vertente leninista que, originalmente, recusava o que chamava de economicismo vulgarizante e propunha a ênfase na dimensão política da luta de classes. O próprio Lênin afirmou, categoricamente, que “A política não pode deixar de ter a primazia sobre a economia. Pensar o contrário é esquecer o abc do marxismo”.342

Este raciocínio encontraria seu nível mais sofisticado na obra de Gramsci que, na esteira de Lênin, afirmou que as outras correntes filosóficas – além do marxismo – deveriam ser analisadas em termos de seus conteúdos políticos, sendo, por conseguinte, o conflito pela hegemonia uma luta que se desenrola no terreno político.343 Logo, se admitíssemos a validade do raciocínio de Mazrui para o caso de Nkrumah teríamos de estendê-lo a Gramsci e Lênin. Operação, no mínimo, problemática.

Toda contradição da afirmação de Mazrui reside no adjetivo “completo”. Se existe um “marxismo completo” deve haver, por conseguinte, um marxismo

incompleto. Algo que, ao que parece, faz menos sentido do que pensar em termos de um

“marxismo não-dogmático” ou, nesse contexto, tão somente “leninista”.

Será justamente o marxismo-leninismo, coadunado ao contexto de libertação do continente africano, que irá revestir as independências de originalidade teórica. Conceitos como o de “neocolonialismo”, de Nkrumah, ou Uhuru na Ujamaa, do tanzaniano Julius Nyerere, só podem ser corretamente apreendidos nessa associação.344

341

Conforme o original: “Had Nkrumah been a thorough-going Marxist he would have been tempted to proclaim ‘Seek ye first the economic kingdom – and all else will be added unto it’” Ali A. Mazrui, “Seek ye first the political kingdom” In ___; C. Wondji, General History of African. Vol. VIII, California, James Currey/Unesco, 1999, p. 105. Estando, portanto, a tradução brasileira em consonância com o original.

342

V.I. Lênin apud Christinne Buci-Glucksmann, Gramsci e o Estado, São Paulo, Paz e Terra, 1980, p. 33.

343

Antonio Gramsci, op. cit., pp. 1379, 1381.

344

O neocolonialismo seria o domínio indireto das potências estrangeiras na África pós-independência sendo, portanto, um desdobramento do imperialismo. Já o conceito de Ujamaa, de Nyerere, enfatiza o comunalismo supostamente intrínseco ao contexto africano que priorizaria o envolvimento coletivo mútuo. Seria tanto uma espécie de tradução cultural possível para o termo “socialismo” como uma estratégia a ser utilizada para alcançar a liberdade, ou, nos termos de Nyerere, Uhuru. Para mais consultar: Kwame N’Krumah, Neocolonialismo. Último estágio do imperialismo, Rio de Janeiro,

117 Entretanto, estes são conceitos desenvolvidos no pós-independência. Durante o correr da luta independentista o conceito que agrega originalidade ao pensamento de alguns teóricos africanos influenciados pelo marxismo-leninismo será, justamente, o de resistência.

Dentre estes pensadores e ativistas, o guineense Amílcar Cabral foi, possivelmente, aquele que mais se preocupou com o conceito de resistência. Em um discurso pronunciado aos militantes do seu partido – o PAIGC, Partido africano de independência de Guiné-Bissau e Cabo Verde – ele sentenciou que a “resistência desenvolve-se sob várias formas”, mas, primeiramente, sob a forma política: “primeiro de tudo e no fim de tudo: Resistência Política”.345 Cabral, assim como Nkrumah, incorre nessa ênfase justamente pelo marxismo e não a despeito dele.

Sublinhando, mais uma vez, que se trata de uma vinculação a uma corrente específica do marxismo, aquela ligada a Lênin, a quem Cabral via como “uma luz fecunda que ilumina o caminho da luta”.346

Só nesse contexto a afirmação de Nkrumah, que Mazrui escolheu para iniciar sua reflexão, pode ser preenchida de seu pleno sentido.

De todo modo, Mazrui está correto ao afirmar que o “reino do político” era uma “condição necessária” e não uma “condição suficiente” que, por si só, pudesse satisfazer todas as aspirações do discurso de libertação. Desse modo, para Mazrui, Nkrumah teria errado ao dizer que conquistado este reino “todo o resto vos será dado em suplemento”.347

Admitidas as vantagens e limitações de se trabalhar com a assertiva de Nkrumah, Ali Mazrui argumenta que na África Colonial a tomada da independência aconteceu em quatro etapas que muitas vezes ter-se-iam entrelaçado umas às outras.

Em primeiro momento veio “uma fase de agitação das elites em favor de uma maior autonomia”. Seguiu-se um período caracterizado pela participação “das massas” na luta contra o fascismo. Por certo ele se refere à mobilização de tropas africanas durante a segunda grande guerra. Com o fim desta surgiu a terceira fase que consistiria “na luta não violenta das massas por uma total independência”. Finalmente, a fase

Civilização Brasileira, 1967. Julius Nyerere, Freedom and Socialism - Uhuru na Ujamaa, Nairobi/London/New York, Oxford University Press, 1968.

345

Amílcar Cabral, Análise de alguns tipos de resistência, Lisboa, Seara Nova, 1975, p. 14. Grifos do original.

346

Amílcar Cabral, Unidade e Luta – Vol. I. A arma da teoria, Lisboa, Seara Nova, 1976, p. 214.

347

118 derradeira seria aquela em que irromperia “o combate armado pelo reino político: a guerrilha contra os governos de minoria branca, sobretudo a partir dos anos 1960”.348

A forma como Mazrui caracteriza a primeira fase da sua sequência lembra, bastante, a abordagem tradicionalista, anteriormente discutida,349 em que a ênfase recai sobre as elites tradicionais como sujeitos principais da resistência.

A segunda fase, a da luta contra o fascismo, possui uma característica, a princípio, contraditória. Afinal, os africanos serviram nas tropas das potências coloniais. Sobre esse período, afirma Mazrui, “o conjunto da África teve que escolher entre o imperialismo liberal e burguês e um imperialismo situado sob a insígnia de uma nova ameaça – o nazismo e o fascismo”. 350

Longe de ser encarada como uma colaboração africana às potências coloniais, o engajamento africano é visto como “uma fase particular da luta anticolonial”. Fase esta em que a luta se dirigiria contra uma forma ainda mais perigosa do imperialismo, encarnada pelo ideário fascista.351

A terceira fase, que compreende a movimentação pacífica pela independência, fundava-se em organizações culturais e partidos políticos que atraiam o interesse da “elite instruída”, no dizer de Mazrui. Apesar de a ênfase recair sobre a via discursiva e não-violenta o autor inclui em seus exemplos a resposta armada etíope à ocupação italiana.352

A quarta e última fase – o combate armado pela conquista do “reino do político” - é aquela que merece a atenção mais detida de Mazrui. Nesse momento teria irrompido “a mais potente força de oposição ao colonialismo” formada por africanos “que começavam a se organizar melhor, a formular mais claramente suas exigências e, em definitivo, a se armar melhor para lutar”.353 Doravante, a “resistência” aparece, finalmente, em Mazrui.

Escreve o autor que “a resistência africana obedece a muitas tradições”. A tônica já deixa entrever que - assim como na sua obra anterior, quando se fez valer do léxico do protesto - ele se esforçará por apreender o fenômeno anticolonial em um modelo tipológico rigoroso ao qual a realidade histórica tornaria discernível. 354

348

Idem, p. 126.

349

Ver capítulo anterior.

350 Idem, pp. 132, 133. 351 Idem, Ibidem. 352 Idem, 127. 353 Idem, p. 134. 354 Idem, Ibidem.

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