• Nenhum resultado encontrado

GÊNEROS JORNALÍSTICOS ALEMÃES GÊNEROS JORNALÍSTICOS BRASILEIROS

11 A representação de Rice em termos de participantes, processos e

4.4 As identidades de poder nas entrevistas jornalísticas: além do esquema pergunta-resposta

4.4.1 As identidades de poder do entrevistado em Canal Livre

Iniciamos a nossa análise, observando o exemplo (21a) a seguir:

(21a)

CC Pois é, eles dão tanta importância à idéia de informação e antecipações e

depois reclamam do modelo.

DN Uma das intrigas é a afirmativa categórica: “Estávamos em processo de

crescimento inexorável da inflação”. Mas cada vez que se pede para demonstrar, ninguém aparece. Como se sabe que a inflação cresce? Porque a inflação flutua, é uma variável aleatória. Como se prova? Quantos meses você precisa ter de crescimento da inflação, acima de certo ponto, para concluir que ela está aumentando de forma descontrolada? Tem de ter um critério qualquer para saber, na realidade, ela escapa da média. Esse é o grande drama que nem o Banco Central, nem ninguém, esclarece.

O que ocorre no exemplo (21a), no turno de fala de Delfim Neto, nos intervalos em destaque, é uma inversão do modelo canônico das entrevistas. O que se espera de um entrevistado é que ele responda, e nunca elabore perguntas (papel previsto para o entrevistado). Temos, neste caso, um controle interacional31 atípico para esse gênero: o entrevistador [pergunta] e o entrevistado [pergunta a si mesmo e responde]. Não se trata de um controle interacional compartilhado, numa espécie de conversa informal em que perguntas e respostas se misturam quase que indistintamente. O que o entrevistado Delfim Neto faz é a ocupação de dois lugares: o previsto para ele (de entrevistado) e o de entrevistador, não compartilhando o turno de fala, em uma organização interacional bastante assimétrica. Considero que essa estratégia discursiva a de se ocupar temporariamente o lugar de interlocutor

31

Fairclough (2001, p. 178) propõe que as “características de controle interacional” relacionam-se à “garantia de que a interação funcione regularmente num nível organizacional: que os turnos na conversação sejam distribuídos regularmente, que os tópicos sejam escolhidos e mudados, perguntas sejam respondidas, e assim por diante”.

nos dois turnos de fala corrobora para a construção identitária em relação ao poder. E proponho denominá-la de identidade de auto-interlocução.

Poderíamos pensar que os intervalos destacados em (21a) ilustram as chamadas perguntas retóricas, que, conforme Ramos (1995, p. 1-2), são “definidas como enunciados interrogativos em o locutor não interroga senão ficticiamente, sem esperar uma informação sobre algo que desconhece, desprovidas assim da exigência de ‘resposta’ por parte do alocutário”. No entanto, as perguntas feitas por Delfim Neto não são retóricas, porque exigem repostas. A diferença é que ele mesmo as responde. Ele é locutor e alocutário, na construção discursiva da identidade de auto-interlocução.

Outra questão relevante nesse caso refere-se ao controle de tópicos, tradicionalmente previsto para ser realizado pelo entrevistado. No caso de (21a), o tópico “inflação” é introduzido pelo entrevistado Delfim Neto, quando, na verdade, o tópico proposto por Carta Capital era relacionado à “taxa de juros”. O estabelecimento do tópico constitui-se em um desdobramento do controle total dos turnos feito pelo entrevistado: ao atuar, simultaneamente, como locutor e alocutário, Delfim Neto pode livremente introduzir o assunto que lhe parecer mais relevante.

Sob o ponto de vista da interação, a identidade de auto-interlocução é construída:

• quando o entrevistado impede as naturais trocas de turnos e • quando o entrevistado estabelece o controle de tópicos.

Sob o ponto de vista da estrutura genérica, a identidade de auto- interlocução é construída, particularmente, nas seqüências do pré-gênero argumentação, como se pode observar no exemplo (21a):

(21a)

CC Pois é, eles dão tanta importância à idéia de informação e antecipações e

depois reclamam do modelo.

DN Uma das intrigas é a afirmativa categórica: “Estávamos em processo de

crescimento inexorável da inflação”. Mas cada vez que se pede para demonstrar, ninguém aparece. Como se sabe que a inflação cresce? Porque a inflação flutua, é uma variável aleatória. Como se prova? Quantos meses você precisa ter de crescimento da inflação, acima de certo ponto, para concluir que ela está aumentando de forma descontrolada? Tem de ter um critério qualquer para saber, na realidade, ela escapa da média. Esse é o grande drama que nem o Banco Central, nem ninguém, esclarece.

O pré-gênero conversação, inserido numa seqüência de argumentação, ao servir de base discursiva para que a identidade de auto-interlocução seja construída, possibilita, também, que essa construção ocorra por meio do modo de operação ideológico da legitimação, especialmente pela estratégia de racionalização: o conteúdo das perguntas e das respostas da auto-interlocução de Delfim Neto tem como fulcro uma construção de raciocínio lógico, cuja meta é persuadir o entrevistado e os leitores.

Outro fator que vincula a identidade de auto-interlocução ao exercício do poder é a modalidade, como se pode observar nos elementos destacados no exemplo (22a), em que a auto-interlocução é construída:

(22a)

Como se sabe que a inflação cresce? Porque a inflação flutua, é uma variável aleatória. Como se prova? Quantos meses você precisa ter de crescimento da inflação, acima de certo ponto, para concluir que ela está aumentando de forma descontrolada? Tem de ter um critério qualquer para saber, na realidade, ela escapa da média. Esse é o grande drama que nem o Banco Central, nem ninguém, esclarece.

A análise da modalidade no excerto em (22a) é feita com base em duas categorias: as perguntas e os processos. Todos os questionamentos presentes em (22a) são perguntas positivas não-modalizadas e representam uma troca de conhecimentos. Portanto, estamos diante de um caso de modalidade epistêmica. Nas perguntas feitas durante a auto-interlocução nenhum marcador de modalidade menos categórica é utilizado a primeira pergunta poderia ser, por exemplo: “Como se poderia saber que a inflação cresce?”. No entanto, temos, em todas as perguntas, verbos flexionados no presente do indicativo, o mais categórico e o mais permanente dos modos verbais32: “como se sabe”, “a inflação cresce”, “como se prova”, “você precisa”, e “ela está aumentando”. Nas respostas que perfazem a auto-interlocução, temos, também, o uso de verbos flexionados no indicativo: “a inflação flutua”, “é uma variável”, “tem de ter um critério”. A modalidade categórica utilizada na auto-interlocução é um fator importante na estruturação da identidade de poder construída por Delfim Neto: em nenhum momento ele vacila ou tem dúvida. Todo o tempo ele afirma com certeza aquilo que é o conteúdo das suas proposições, e isso corrobora para a sua auto-identificação em termos do exercício do poder.

A identidade de auto-interlocução é resumida no Quadro 13 As categorias discursivas que constroem a identidade de auto-interlocução a seguir:

32

Segundo Coroa (2005, p. 89), o modo indicativo é o próprio das asserções, pois é a “categoria temporal que aparece mais nítida e livre de influências modais”.

Quadro 13 As categorias discursivas que constroem a identidade de auto-interlocução em Carta Capital IDENTIDADE DE AUTO-INTERLOCUÇÃO

Caracterização O sujeito do discurso ocupa, simultaneamente, o lugar de locutor e alocutário da interação.

Exemplo

CC Pois é, eles dão tanta importância à idéia de informação e antecipações e depois

reclamam do modelo.

DN Uma das intrigas é a afirmativa categórica: “Estávamos em processo de crescimento

inexorável da inflação”. Mas cada vez que se pede para demonstrar, ninguém aparece. Como se sabe que a inflação cresce? Porque a inflação flutua, é uma variável aleatória. Como se prova? Quantos meses você precisa ter de crescimento da inflação, acima de certo ponto, para concluir que ela está aumentando de forma descontrolada? Tem de ter um critério qualquer para saber, na realidade, ela escapa da média. Esse é o grande drama que nem o Banco Central, nem ninguém, esclarece.

Controle interacional

O controle interacional é atípico para o gênero entrevista, pois há, temporariamente, uma interrupção na prevista e fluente troca de turnos. Neste caso, entrevistador [pergunta] e entrevistado [pergunta a si mesmo e responde].

Controle de tópicos O controle de tópicos é atípico, pois não parte do entrevistador.

Modalidade A modalidade é epistêmica, pois se baseia na troca de conhecimentos; e é categórica

quanto ao uso do modo verbal no indicativo.

Modo ideológico O modo de operação da ideologia é a legitimação, por meio da estratégia de racionalização.