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As identidades em processo e o processo identitário dos negros e

CAPÍTULO IV “GRAÇAS A DEUS TEMOS ESSA RAIZ”: PROCESSOS

1 AS PRÁTICAS DE RESISTÊNCIA QUILOMBOLA

1.3 As identidades em processo e o processo identitário dos negros e

negros e negras do Fojo

Após a certificação, os moradores do Fojo estão sendo chamados de quilombolas e, a todo o momento, estão se reconhecendo diante das novas contingências que esse título lhes outorga. A partir daí, a comunidade é procurada por pesquisadores, prefeito, ONGs, turistas, curiosos, etc, causando certo estranhamento nos seus moradores. E o reconhecimento “dos de fora” de que são sujeitos de direito, permitindo a visibilidade do território cultural. O morador do Fojo deflagrou a condição e a consciência do reconhecer-se político étnico-cultural negro rural quilombola. Para entendermos essa identidade em construção que não é recente enquanto processo histórico, é recente enquanto categoria jurídica e política, compreendemos que as identidades são processos em constante e incessante construção.

A compreensão e o respeito aos significados que o homem e a mulher estabelecem para suas vidas levam-nos a pensar a identidade a partir das diversas culturas e entendê-la como um processo híbrido de raça, etnia, gênero, religião, histórias de vida, escolarização, etc. Neste sentido, a identidade será formada pelas

relações que darão significados às experiências da vida, possibilitando ao sujeito as identificações necessárias para que se agregue a um grupo e seus pertencimentos.

Esse argumento encaminham-nos para uma reflexão sobre os processos educativos da comunidade quilombola do Fojo, ligados às questões identitárias dos seus moradores. Pensando na identidade como um elemento que se constrói cultural e historicamente, não é possível pensar na identidade das pessoas negras sem pensar na sua trajetória e seus movimentos pelos quais têm passado. Segundo Munanga (2001), a identidade é para os indivíduos a fonte de sentidos e de experiência, portanto toda identidade exige reconhecimento, caso contrário ela poderá sofrer prejuízos se for vista de modo limitado ou depreciativo.

Assim sendo,

[...] gostar de ser negro depende do desenvolver da auto-estima. A forma objetiva de se atingir esse processo consiste em ações que promovam o resgate da cultura e história do negro, evidenciando seus heróis e vultos eminentes, uma vez que os modelos favoráveis à etnia, facilitam o fortalecimento desta auto-estima (CHAGAS,1997, p. 77).

Nesta construção identitária assumir-se quilombola é conflituoso e de difícil autodenominação, os moradores da comunidade negra rural do Fojo, preferem a identificação como nativos, pois sequer conhecem o que o termo quilombola significa. O significado da palavra quilombo tem sido de difícil apropriação para a comunidade, historicamente reconhecida e auto - reconhecida como comunidade de nativos de Itacaré. A categoria “nativo” diz do negro enraizado em terras do município pertencente às famílias originárias do Quilombo do Oitizeiro. É comum ouvir dizer “eu sou nativo do Oitizeiro”.

Essa categoria externa aos moradores, “inventada” pelo poder colonial, apropriada pelas lutas dos movimentos negros como símbolo de resistência e cunhada na pauta da Assembleia Constituinte, escrita na elaboração do Artigo 68, chega ao Fojo repercutindo diversos significados e causando estranhamento. Esse sentido de confusão é experimentado pelos moradores quando se autodenominam nativos, no sentido de serem da terra e com o significado de pertencimento territorial. A categoria “nativo” reflete a imagem dos moradores da comunidade negra rural, que são.

Quando se autodenominam nativos identificam o sentimento de pertencimento a sua coletividade, a seu determinado grupo. O reconhecimento recíproco é uma necessidade do grupo, quando todos se dizem nativos, os moradores do Fojo reconhecem-se enquanto grupo específico, assim, cada morador se reconhece e é reconhecido pelos outros como participante histórico da comunidade. A categoria quilombola veio de fora para dentro, com ela receberam o reconhecimento externo, mas que encontra alumas dificuldades de ordem social e política para ser pronunciada pelos de dentro. Nesse processo identitário, os moradores reconhecem-se quilombolas, mas insistentemente autodenominam-se nativos.

Construída a estratégia de resistência dialética, os moradores usam o conceito de “nativo” para se autoidentificarem, mas jurídica e politicamente usam o conceito de quilombo para serem reconhecidos. Nesse jogo identitário entre quilombolas e nativos há um estranhamento que precisa ser cuidadosamente pensado e dito para que se entenda que a identidade é uma só, porém os termos para denominá-la é que diferem. É o processo histórico político identitário dos nativos do Oitizeiro que os reconhecem como quilombolas, e é a categoria quilombo o conceito que representa a comunidade negra rural do Fojo.

A condição de nativo desperta nos moradores do Fojo o conceito de quilombo, fazendo emergir da memória familiar e da história local a identidade quilombola, provocando na comunidade a discussão política do território e seus direitos enquanto cidadãos. Para os moradores da comunidade do Fojo, o quilombo é “algo” que não surge nem é descoberto, ele deixou de ser invisível para “os de fora” e passou a ser reconhecido no seu território cultural. Quando perguntamos sobre o significado de quilombo, os participantes assim expressaram:

D. Angelina: – Pelo dito da comunidade, eu creio que seja porque dizem, foi no tempo dos cativeiros, né? Que era os quilombos (LARCHERT, trabalho inédito, f. 115).

Jai: – Porque quilombo quer dizer uma separação de pessoas, né? Do passado, não é isso?

Pesquisadora _ Eu nem sei, eu tô aqui para descobrir. (Risos)

Jai: – Na verdade, quilombo, o que é quilombo? Se a gente foi observar, foi alguém que morou no passado, foi ali, formou famílias ali, aí o que acontece, o Fojo é um quilombo porque o Fojo hoje, se você pegar as antigas, tem mais de cem anos, cento e cinquenta anos, duzentos anos que os nossos avôs moraram aqui, são pessoas que eu nem conheci, conheci

meu avô, mas meu bisavô não conheci, quando eu nasci já tinha muitos anos que tinha morrido, e aí formalizou a questão de quilombo, e a gente veio a descobrir, aí hoje mesmo o INCRA pergunta porque, tem as questões como os negros, são os outros que funcionavam neste lugar, tem engenho, tem lugares do engenho, aqui mesmo tinha uma negócio de cana. (LARCHERT, trabalho inédito, f.152).

D’ajuda: – Eu acho porque nós somos uma família só tudo unido e já nascemos no mesmo lugar, tamos até hoje no mesmo lugar, por isso que criou, surgiu esse negócio de quilombo.

Pesquisadora. Você achou estranho quando disseram pela primeira vez que aqui é um quilombo?

D’ajuda: – Não achei estranho não, a gente ficou feliz porque a gente descobriu mais uma coisa que nós não sabia, aí nós ficou feliz, alegre, a gente conheceu mais o nosso direito, né? (LARCHERT, trabalho inédito, f. 160).

Esses “novos quilombolas” descobrem que a categoria Quilombo reconhece–os como donos verdadeiros das suas terras. Nas falas de D. Angelina, Jai e D’ajuda o quilombo está ligado à história do povo negro, “tempo de cativeiro”, família constituída em um passado “foi alguém que morou no passado, foi ali, formou famílias ali, aí o que acontece o Fojo”, “nós somos uma família só tudo unido e já nascemos no mesmo lugar, tamos até hoje no mesmo lugar” as definições estão diretamente ligadas às questões da terra e do território familiar.

Em seu o depoimento, Jai, administrador da Igreja, diz: “tem as questões como os negros, são os outros que funcionavam neste lugar”. Jai não parece sentir-se a vontade quando tem que dizer que o quilombo é território negro, os negros são os outros, ao contrário D. Angelina afirma, “é o tempo de cativeiro” assumindo que naquele território houve escravidão. Assumir a identidade quilombola é evidenciar a diferença em relação a outros grupos da região ou do município, explicitando uma descendência na cultura de matriz africana.

No depoimento de D’ajuda tem-se a descoberta da quilombola como sujeito de direito, “a gente conheceu mais o nosso direito”, D’ajuda vê na categoria a possibilidade de garantias sociais. Quando estivemos na casa dela para irmos juntas preencher o formulário on-line do edital de inscrição do vestibular da Universidade Estadula de Santa Cruz - UESC, antes, resolvemos lê-lo para revisarmos o que era necessário. Após a leitura, D’ajuda falou para Igor “Viu Igor como esse negócio de quilombo é bom e só vai ajudar a gente”. Inseridos nas políticas públicas para a visibilidade das comunidades quilombolas, percebem as

possibilidades de acesso à cidadania. Porém, o “viu Igor” demonstra que muitos na comunidade questionam “esse negócio de quilombo”.

Esse processo de apropriação do conceito quilombo e do debate sobre seu significado também é identitário; vivido no presente pelos moradores, interage com representações criadas sobre o passado da comunidade nativa do Fojo, construindo sentidos em um presente que se mobiliza com vistas a uma nova ideia entre aquilo que sempre foram, comunidade de nativos, e o que estão a ser, quilombolas.

Vejamos o que disseram as crianças em um momento de conversa sobre a comunidade:

Pesquisadora: – Vocês sabem o que é quilombola? Já ouviram falar nisso? As crianças levantam a mão dizendo que sabem, e falaram:

Criança 1: – Já ouvi falar lá em casa. Criança 2: – Quilombola é quem joga bola. Criança 3: – Professora, é o quilo da bola. (LARCHERT, trabalho inédito, f. 167).

Nos momentos de conversas com as crianças pudemos verificar que elas não conhecem a história da família nem do território, nunca ouviram falar em quilombo nem que são reconhecidas como quilombolas.

Nesse jogo identitário existe o conflito do reconhecer-se quilombola, impondo uma ressignificação do seu modo de vida, seus interesses e seus desejos para reconstruir seus saberes sociais, culturais afro-brasileiros. Na fala que D’ajuda direciona para Igor aparece o acreditar no fortalecimento da comunidade e na possibilidade de emancipação a partir do seu reconhecimento. Essa dimensão social e política que favorece ao cidadão quilombola reconhecer-se se confronta com a doutrinação religiosa da obediência de quem não deve mais praticar as experiências afro-brasileiras e do controle sobre o comportamento dos fiéis, essas vivências formam um jogo de identidades contraditórias e instáveis.

Essa negociação identitária que se revelou após o reconhecimento e a certificação outorgada pela Fundação Palmares, leva-nos a Freire (2005) para quem quanto mais o oprimido reconhecer-se nas formas de opressão da sua cultura e da sua comunidade, mais próximo estará para entendê-las e interpretá-las, porque conhecerá sua diversidade, suas contradições, seus códigos e suas lutas, seus conflitos internos e seus opressores. O que percebemos nessa construção identitária

é que há um movimento identitário entre as categorias nativo e quilombo, cujos conteúdos são históricos, culturais e ancestrais.

Cabe destacar que a categoria quilombo é alvo de preconceitos, como já dito no texto da revisão bibliográfica sobre quilombos, existe no imaginário nacional preconceitos sobre as comunidades quilombolas, entendidas como lugar de escravo rebelde, desobediente, ladrão e fugitivo da lei. Também pode estar localizado neste imaginário a justificativa de insistentemente os moradores do Fojo preferirem ser chamados de nativos a quilombolas.

Progressivamente, no movimento dialético, o conceito de quilombo vem fazendo sentido para o grupo, na medida em que tomam conhecimento dos significados históricos e políticos, vão se reconhecendo e criando interpretações próprias. Isto porque aquilo que é atribuído ao quilombo é indissociável da história da comunidade negra rural do Fojo, alguns moradores, associam a ideia de quilombo a esse passado recente, época em que o território viveu sua fase áurea. Depois vem o seu declínio: vendas de pedaços de terras, êxodo para as cidades, dificuldades de sobrevivência, conflitos com fazendeiros e esquecimento dos órgãos públicos.

Depois dessa fase de reconfiguração do território vem a problemática fundiária resultando em uma instabilidade social e econômica que angustia a todos. Nas reuniões da associação, presenciamos o debate e as constantes insatisfações sobre o problema fundiário, ouvimos do Sr. João toda história das ameaças dos fazendeiros locais à sua integridade física durante o período de certificação da comunidade. Passados seis anos desde a certificação não tem informações precisas dos órgãos competentes sobre o reconhecimento e a titulação das terras. Algumas famílias não têm a posse da terra e somente com a titulação, a partir da demarcação dos lotes individuais, poderá vir a ter, a demora gera muita expectativa; como usam os lotes para a agricultura familiar, mesmo sem a demarcação jurídica, ficam na iminência de terem de mudar para outro lote da comunidade. Outro agravante é que sem o registro da terra não podem solicitar ajuda financeira e tecnológica para os bancos e instituições especializadas em financiamento rural. Verificamos como esse cenário gera insegurança nas famílias, pois ainda temem invasão e despejos de algumas partes da terra.

As políticas públicas junto com a associação exercem a função de espaços educativos quilombolas, ensinando para os moradores o sentido de ser

quilombola e construindo saberes em torno da defesa pela terra. Nessa dinâmica da resistência negra, os moradores vão, aos poucos, descobrindo o significado do quilombo no passado e na atualidade, muitas vezes, negando e silenciando, por que são proibidas para a religião evangélica as práticas culturais afro-brasileiras que ali foram vivenciadas, muitas vezes se afirmando pela inegável história familiar.

Essas experiências e conhecimentos sobre a família, a mata, os rios, a mulher, o território e suas relações com o cotidiano da comunidade remetem a um processo de resistência que foi herdados dos antepassados e perdura durante longos anos na memória e nas identidades que constituem as comunidades negras rurais.

2 PROCESSOS EDUCATIVOS DO AQUILOMBAMENTO DA COMUNIDADE