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DIÁLOGO ENTRE OS PROCESSOS EDUCATIVOS DO FOJO E A

CAPÍTULO IV “GRAÇAS A DEUS TEMOS ESSA RAIZ”: PROCESSOS

3 DIÁLOGO ENTRE OS PROCESSOS EDUCATIVOS DO FOJO E A

Nunca é tarde para voltar e apanhar aquilo que esqueceu. SANKOFA22

A escola do Fojo, assim como a escola brasileira, terá que enfrentar e discutir a descolonização do currículo escolar, analisar as possibilidades para uma mudança epistemológica e política, identificando as tensões necessárias no que se refere ao debate sobre as questões étnico-raciais no cotidiano da sala de aula (GOMES, 2012). Buscando estabelecer o diálogo entre os processos educativos quilombolas com o currículo da escola, a partir dos conhecimentos e saberes levantados dos processos educativos da resistência, pensamos em eixos temáticos curriculares que dialogam com a epistemologia da comunidade.

No currículo oficial da escola da educação básica brasileira e na comunidade quilombola do Fojo não existe o lugar demarcado do confronto entre fronteiras do conhecimento com lados definidos, o que aparece são as contradições, as controvérsias entre os conhecimentos escolares aceitos oficialmente e os relegados e rejeitados, que fazem parte do cotidiano das famílias, dos alunos e professores da escola quilombola. Esses campos de conhecimento participam de um espaço – tempo conflituoso, que de modo algum é nítido, esse lugar de conflito é liminar, muitas vezes subliminar.

Para que a escola do Fojo inicie um diálogo com a educação para as relações étnico-raciais precisará entender que ser quilombola é ser político e culturalmente resistente, coletivo, histórico e familiar. O projeto político-pedagógico curricular do município e o da escola necessita introduzir a cultura e a história quilombola afro-brasileira-baiana de Itacaré no currículo para fortalecimento e valorização da identidade das professoras, do professor e dos (as) alunos (as). Discutir e refletir que as “coisas de antigamente” constituem a história de um povo forte, que foi preservada pela tradição oral, marcada por lutas contra os invasores de seus territórios físicos e culturais. É preciso que políticas públicas imponham ao  

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“O ideograma Sankofa é uma estilização do pássaro que vira a cabeça para trás e representa o conceito: a sabedoria de aprender com o passado para construir o presente e o futuro”. “Em outras palavras significa voltar às suas raízes e construir sobre elas o desenvolvimento, o progresso e a prosperidade de sua comunidade, em todos os aspectos da realização humana” (GLOVER apud NASCIMENTO, 2008, p.31).

currículo da escola do Fojo, através da formação dos professores, do material didático, da organização pedagógica da escola “as coisas de antigamente”. Faz-se necessário dizer à escola do Fojo que seu território é protegido judicialmente como terra de quilombo, porque existiram e existem na comunidade do Fojo as “coisas de antigamente”.

O diálogo com a escola deve possibilitar a recuperação da história da memória, para a realização de sujeitos históricos da luta negra, a qual depende de sujeitos autoconhecedores da história quilombola. A estrutura curricular deve destacar o lugar, a importância e os limites das contribuições dos saberes quilombolas para a educação escolar, possibilitando o fortalecimento das identidades e o reconhecimento das diferenças.

As comunidades quilombolas brasileiras reconstituem no processo dialético de ser no mundo os conhecimentos da tradição africana. É importante entendermos que “a noção de tradição quer negar a noção de passiva repetição, imitação, recordação. A tradição é re-criação em seu duplo sentido: criar de novo e festejar celebrando o assumir desde o nada a história já constituída” (DUSSEL, 1974, p. 187). Preservada na resistência cotidiana a tradição legitima os processos educativos do povo negro do Fojo para além do silenciamento encontrado no currículo escolar.

Os estudos no campo do currículo e as aprendizagens à luz das experiências sobre o conhecimento tradicional quilombola convidam-nos a estabelecer relações entre esses espaços de aprendizagem, cuja preocupação é valorizar a diversidade cultural e desafiar preconceitos individuais, coletivos e institucionais.

O currículo é um campo de conhecimento experienciado nas trocas educativas escolares, esse conhecimento é ético, político, ideológico, estético e cultural; nem sempre explícito, âmbito do currículo oculto; nem sempre coerente, âmbito dos dilemas, das contradições, das ambivalências, dos paradoxos; nem sempre absoluto, âmbito das derivas e das transgressões; nem sempre sólido, âmbito do vazamento e das brechas (MACEDO, 2006).

O desafio está em construir propostas educativas para que o currículo materialize essa perspectiva. Propomos pensarmos as práticas educativas escolares fundamentadas nos processos educativos afro-brasileiros quilombolas a partir da construção do projeto político pedagógico, espaço de inscrição da participação

coletiva da escola. Ao ser elaborado pelos docentes, direção e funcionários provocará o exercício do diálogo entre conhecimentos científicos e conhecimentos e saberes dos processos educativos quilombolas. Esses conhecimentos representarão temáticas geradoras das práticas educativas da escola: nos livros didáticos, nos planos de aula, nos projetos de ensino, nas pesquisas e na formação do professor. Para que este diálogo se converta em possibilidades didático-pedagógicas, faz-se necessário o debate em torno dessas temáticas:

 A Educação para a vida comunitária. A ancestralidade, a família, os velhos, a mulher.

A vida comunitária é garantida pela unidade familiar; na sua multiplicidade de integrantes, a família biológica ou iniciática está organizada sob um território e tem sua estrutura baseada na ancestralidade que lhes conferem origem e sentido. A ancestralidade dá sentido à realidade vivida, é a força central, propulsora e unificadora das identidades. Os ancestrais são existentes, não viventes, garantem e asseguram a identidade e a herança cultural de um povo comunidade.

O grande responsável em manter a memória ancestral viva é o velho. As famílias africanas têm a velhice como “fonte de sabedoria”, os africanos consideram os velhos e velhas o alicerce das sociedades. Eles (as) são acolhidos no seio da comunidade, pelos valores escritos em cada uma de suas rugas e marcas do tempo. Os modos de vida e a trajetória dos mais velhos indicam uma imbricação de suas vidas com o universo.

Outra força congregadora da comunidade é a força da mulher. A mulher está relacionada com os grandes mistérios da vida e da morte, com a fertilidade, com a fecundidade e com as divindades. Com efeito, elas participam mais interinamente dos mistérios da criação, porque elas mesmas são gestoras. A mulher é o “centro dinâmico da comunidade”, integrada á história e garantindo a continuidade da vida.

Este eixo contribui com o debate sobre a participação da comunidade escolar na gestão democrática, pauta nos últimos anos das políticas educacionais. Os grupos que representam as comunidades tradicionais afro-brasileiras experienciam cotidianamente a vida comunitária, nas suas diferenças, encontros e hibridismos produzem os elementos da vida em comum. Nas comunidades tradicionais quilombolas, as experiências do estar juntos dão a todos o sentimento de pertença. A experiência da vida comunitária educa a todos para transformar seu

modo de vida a partir do corpo. As aprendizagens que levaram os moradores do Fojo a sobreviverem da natureza permitiram a consciência do corpo. Com o corpo os homens e as mulheres descobrem os mistérios da vida.

 Educação para a corporeidade

O ser humano tem consciência do seu corpo através da sua identidade, é a existência biológica transformando-se em existência cultural como ser no mundo. O corpo envolve práticas expressivas individuais e coletivas em espaços de resistência das comunidades que geram e transmitem história, cultura, e sabedoria.

De várias maneiras, nessas formas diversas de cultura afro-brasileira e afrodiaspórica, existe uma epistemologia baseada na sabedoria contida no corpo, a sabedoria corporal: o corpo contém sabedoria e história, a memória ancestral e a experiência vivida produzem o conteúdo dos movimentos e dos sentidos da existência corporal. (OLIVEIRA, E. 2009).

O corpo transporta as memórias da trajetória de vida, memórias reveladas de imagens, olhares, passos, comportamentos e mudanças. Cada canto, cada toque, cada dança, cada gesto, cada conhecimento de um rito ou mito, cada roda, cada ato tem um pedaço de um valor transcendente. A densidade desse estatuto são os valores transmitidos pelas falas, atos, cantos, danças e toques africanos. Para o africano, o conhecimento sobre o corpo é o conhecimento sobre si mesmo.

Essa perspectiva cultural do corpo ensinará a escola outra configuração acerca da produção de diferentes identidades. O movimento de ser afro-brasileiro é múltiplo e diverso, assim como o corpo. O respeito à existência corporal e sua sabedoria levam as práticas escolares a condenarem os atos de racismo, sexismo, homofobia, etnocentrismo e xenofobia. O reconhecimento à diferença do corpo é premissa básica para toda instituição educativa como a escola, a família e os grupos sociais, a convivência respeitosa com as diferenças é a marca de uma educação ética.

Esses conhecimentos sobre o corpo possibilitarão à escola refletir sobre a identidade cultural da sua comunidade e dos diferentes grupos que compõem a comunidade. Assim, as pessoas negras, índias, ciganas, sertanejas, ribeirinhas e outras conviverão em um ambiente escolar cujas práticas educativas entenderão que cada estética corporal representa aportes culturais de uma comunidade, de um determinado grupo.

O corpo interage com natureza garantindo uma relação dinâmica e equilibrada entre o ser humano que estratifica e a natureza que doa. Esse equilíbrio nasce da relação de respeito de quem também faz parte desse espaço natural e reconhece-o como parte integrante do seu território físico e espiritual. Desta forma, ser humano e natureza são indissociáveis e fazem parte de um ecossistema cultural.

 A Educação ambiental - A natureza.

Os povos africanos e os indígenas são os grandes responsáveis pela preservação ambiental restante no país e no sul da Bahia. Para o africano, conhecer a natureza é conhecer a si mesmo.

Para a escola, esse conhecimento garantirá a aprendizagem de como organizar, gestar e gerenciar as relações entre a sociedade, os seres humanos, e suas culturas e o ambiente, de modo harmônico, integrado e sustentável. Tendo por base essa intenção educativa, podem ser realizadas atividades que discutam, sob a ótica cultural das populações tradicionais africanas e afro-brasileiras, o estudo da vida; dos fenômenos naturais; dos animais; das plantas; das relações entre formas vivas e não vivas; da saúde; da produção de alimentos etc.

A educação ambiental garantirá a aprendizagem de como organizar, gestar e gerenciar as relações entre a sociedade, os seres humanos, suas culturas e o ambiente, de modo harmônico, integrado e sustentável. Este eixo responde à epistemologia da natureza, e os conhecimentos fundantes, para este eixo são: Quilombo, Terra e Territorialidade. Aproveitar essa tradição de luta, de resistência e trabalhá-la é uma tarefa nossa, de educadores e educadoras progressistas (FREIRE, 1992, p. 109). As práticas educativas voltadas para a educação ambiental terão como resultados a aprendizagem de alunos, professores e funcionários que entendem como conviver com o ambiente evitando desastres ambientais e minorar os efeitos já existentes.

Não é nossa intenção afirmar que, sobre um currículo, repousam todas as soluções para os problemas étnico-raciais existentes na escola. Apenas queremos crer que um currículo voltado para o diálogo entre culturas e que privilegia a cultura local, atenua a discrepância entre a aprendizagem na/da escola e a que ocorre fora dela, contribuindo para a valorização das identidades e sua emancipação. A relevância de propostas curriculares voltadas para o conhecimento cultural e científico de matriz africana leva-nos ao reconhecimento da condição social e da valorização das vozes silenciadas pelo currículo oficial.

Desta forma, a escola estabelece o diálogo da Lei nº 10.639/03 com os currículos escolares e confirma que inserida na Educação das Relações Étnico- Raciais conviverá em relações de conflito, exigindo de todos reconhecimento, valorização e respeito aos conhecimentos quilombolasda comunidade. O diálogo produzirá convívio e respeito entre os saberes escolares e os processos educativos da nossa herança cultural africana, respeitando e escutando a experiência existencial dos afro-brasileiros quilombolas, suas práticas culturais e suas identidades.