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CAPÍTULO II – EDUCAÇÃO E (RE) EXISTÊNCIA QUILOMBOLA

3 RESISTÊNCIA E ANCESTRALIDADE QUILOMBOLA

Da terra germina, como uma planta que irrompe a crosta e invade o espaço na direção do céu ao mesmo tempo que deita suas raízes nas profundezas do mistério da terra. Movimento de ancestralidade por excelência.

Eduardo David de Oliveira (2009)

Considerando que a ancestralidade é o princípio que significa a cultura de matriz africana, este estudo pretende analisar a confluência de elementos que compõe o ethos ancestral, buscando entender suas contribuições para a formação do povo quilombola. Neste debate pretende-se levantar um conjunto de ideias que possibilite a compreensão da ancestralidade nos modos da resistência e do ser afro- brasileiro, bem como seus elementos constitutivos nos processo educativos da comunidade.

O paradigma eurocentrado uniformiza as culturas segundo seu projeto de “universalização colonial e naturalização das experiências dos indivíduos neste padrão de poder” (SANTOS, 2010b, p. 86). Esse paradigma descaracteriza as culturas que se defrontam em uma mesma sociedade, menosprezando e folclorizando os saberes ancestrais (SILVA, 2003, p. 193). Como nos afirma Silva (2003) a cultura negra, em África ou fora dela, deve muito de sua estrutura, de seus fundamentos, ao culto dos ancestrais.

Na cultura afrodescendente no Brasil existem intercâmbios entre a herança africana e os elementos da atualidade que permeiam os conhecimentos produzidos nos espaços sociais. Os intercâmbios são formas de conhecimento que se entrecruzam na teia social de cada grupo, comunidade ou pessoa e que proporcionam um diálogo constante e processual do homem com sua existência.

A ancestralidade quilombola deve ser pensada a partir dos ancestrais familiares, dos ancestrais da terra onde se vive e dos ancestrais iniciáticos. O culto aos ancestrais é um dos elementos mais constantes na cultura africana. Pode-se mesmo dizer que é um fenômeno universal em praticamente toda a África Negra. Essa constante na cultura africana e na cultura negra em geral é a pedra

fundamental da cosmovisão africana, pois o culto aos ancestrais sintetiza todos os elementos que a estruturam.

Aliás, aqui o movimento é o inverso: a cosmovisão africana17 retira do culto aos ancestrais praticamente todos os seus elementos. Os elementos que a compõem são: força vital, tempo, palavra, pessoa, socialização, família, produção, poder, ancestralidade, religiões africanas, morte. Segundo Oliveira, E. (2009), a cosmovisão africana é estruturante das concepções de vida dos africanos e de seus descendentes na diáspora negra, no Brasil e no mundo. Para esta tese nos interessa os estudos sobre a ancestralidade

Para pensar a ancestralidade africana como proposta para compreender os modos de vida desenvolvidos no interior da cultura de matriz africana, utiliza-se o conceito de ancestralidade orientada por Oliveira, E. (2009) para quem a ancestralidade

[...] é empregada como uma categoria analítica e, por isso mesmo, converte-se em conceito-chave para compreender uma epistemologia que interpreta seu próprio regime de significados a partir do território que produz seus signos de cultura. Minha referência territorial é o continente africano, por um lado, e o território brasileiro africanizado, por outro. Por isso, meu regime de signos é a cultura de matriz africana ressemantizada no Brasil. Cultura, doravante, será o movimento da ancestralidade (plano de imanência articulado ao plano de transcendência) comum a esses territórios de referência (OLIVEIRA, E, 2009, p. 3).

A compreensão sobre a ancestalidade africana deve compor a base de todo e qualquer estudo referente à história e à cultura afro-brasileira. Pois como afirma Oliveira, E. (2009, p. 7) “A ancestralidade é como um tecido produzido no tear africano: na trama do tear está o horizonte do espaço; na urdidura do tecido está o tempo. Entrelaçando os fios do tempo e do espaço cria-se o tecido do mundo que articula a trama e a urdidura da existência”.

A ancestralidade encontra-se no paradigma da unidade do ser humano africano, a unidade é composta de matéria e espírito, onde o corpo não é somente matéria, é também ancestralidade, mantendo um elo entre o corpo vivo e seus  

      

17Essa cosmovisão de mundo se reflete na concepção de universo, de tempo, na noção africana de

pessoa, na fundamental importância da palavra e na oralidade como modo de transmissão de conhecimento, na categoria primordial da Força Vital, na concepção de poder e de produção, na estruturação da família, nos ritos de iniciação e socialização dos africanos e, é claro, tudo isso assentado na principal categoria da cosmovisão africana que é a ancestralidade. (OLIVEIRA, E. 2009, p. 5).

antepassados. Mas a ancestralidade não se encontra somente no corpo humano, sua relação com a natureza colabora para o equilíbrio do universo (OLIVEIRA,. 2004).

É refletindo e aprendendo sobre as relações estabelecidas entre os elementos que configuram a rede conceitual da cosmovisão africana que se reconhece a cultura de matriz africana e o ethos ancestral. Os elementos se reproduzem, se readaptam, se transformam e se regeneram. Configuram velhas e novas estruturas na diversidade de manifestações, que estabelecem entre si relações descontínuas e heterogêneas no tempo e no espaço, destinadas a (re) configurar a matriz africana em múltiplas existências no mundo, no Brasil, na Bahia, em Itacaré.

Entende-se que a ancestralidade em si, com seu conteúdo cultural, é uma fonte de conhecimento estruturante de práticas sociais quilombolas, carregadas de memória, resistência, territorialidade e identidade, é o resgate e a ressignificação da matriz da cultura africana, uma visão de mundo que gera uma ética, uma política e uma epistemologia.

O culto ancestral africano é enraizado, profundamente, no mundo tradicional africano. Dinamismo e vitalismo, compreendidos de uma maneira existencial, concreta, afetiva e de aproximação. A realidade é vista e julgada, especialmente, em seus aspectos dinâmicos relacionados próximos à vida, o mais real e valioso concedido para cada ser. Destacando a ênfase à fecundidade, à vida e à identificação entre o ser e o poder ou força vital (OLIVEIRA, 2004).

A ligação do ser, no presente, com os ancestrais engloba as experiências históricas e as mudanças vividas através das gerações. Isso é o que dá à ancestralidade a sua significância. A ancestralidade não é uma tentativa de reestabelecer ou voltar para uma África do passado, mas uma tentativa de pensar, desenvolver, e transmitir a cultura, experiência e memória ancestral para orientar no presente (OLIVEIRA, E, 2009).

A memória é portadora de sabedoria ancestral. As atividades cotidianas e a organização do convívio em uma comunidade quilombola reproduzem a memória e a dinâmica social, reforçando e integrando os elementos básicos da ancestralidade que configura os modos de estar sendo no mundo (MERLEAU- PONTY, 1988) da comunidade. Os conteúdos fundamentais, que constituem as

comunidades africanas, estão na memória das civilizações ancestrais, pois os povos de cultura oral (ágrafos) trazem a marca da memória na histórica das gerações.

A história da ancestralidade, encontra nos mais velhos, enquanto guardiões da cultura e dos segredos, a memória histórica de cada comunidade, onde revela seu processo de resistência. Bosi (1994) lembra que os velhos têm uma memória social atual mais contextualizada e definida, são expectadores de um quadro já finalizado e bem delineado no tempo.

É o tempo da memória viva, da memória social e da resistência que garantirão a permanência da comunidade e sua construção identitária. Para Gonçalves Filho (1988, p. 96-99),

[...] a memória expõe, no contraponto, a amabilidade e a brandura ante aos sabores, as cores, as sonoridades, as formas essenciais de uma cultura: significantes de uma maneira de ser que a subjetividade e a intersubjetividade compuseram de modo mais ou menos inconsciente. [...] esta memória que desempenham os velhos, tarefas para a qual estão maduros: tranqüilizar-se as águas revoltas do presente pelo alargamento de suas margens. A memória, aqui, é olhar e trabalho. [...] o velho recolhe imagens de outrora, mas reclamadas nas nervuras de uma vida em ato. À margem das histórias autorizadas e apologéticas, a memória dos dominados resiste, entretanto, na tradição oral de grupos algo coeso, algo comunitários, onde pode ocorrer que os impasses do presente, tendo frisadas sua solidez e sua gravidade, sejam percorridos por uma espécie de teimosia.

Lembrar, então, seria reviver os momentos na interioridade do ser, lembrar é recontar para si mesmo, reafirmar os acontecidos, com as cores que aparecem na hora de reestruturar o fato. Bosi (1994) discute sobre isso quando reflete sobre os tipos de memória e sua forma de externalização da escrita, mas atentando, principalmente, à oralidade, porque apesar de ser unilateral, o narrador conta sua versão do fato, suas ideologizações podem ser percebidas e articuladas a outros discursos, permitindo compreender vicissitudes sensíveis a essa forma de representação humana.

Qual a função da memória? Não reconstrói o tempo, não o anula tampouco. Ao fazer cair a barreira que separa o presente do passado, lança uma ponte entre o mundo dos vivos e o do além, ao qual retorna tudo o que deixou à luz do sol. Realiza uma evocação: o apelo dos vivos, a vinda à luz do dia, por um momento, de um defunto. É também a viagem que o oráculo pode fazer, descendo, ser vivo, ao país dos mortos para aprender a ver o que quer saber (BOSI, 1994, p. 89).

Bosi (1994) defende que a memória é maleável, ela é transformada, reavivada, repassada, modificada, diferenciando-se da história, que se caracteriza por ser a memória cristalizada, cujos interesses valorativos, que serão postergados, dignos, selecionados para serem relembrados, retificados. Muitos dos elementos componentes das narrativas são facilitadores da irrupção de uma memória individual e coletiva, historicamente subjugada pela sociedade ocidental moderna.

Cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva. Nossos deslocamentos alteram esse ponto de vista: pertencer a novos grupos nos faz evocar lembranças significativas para este presente e sob a luz explicativa que convém à ação atual. O que nos parece unidade é múltiplo. Para localizar uma lembrança não basta um fio de Ariadne; é preciso desenrolar fios de meadas diversas, pois ela é um ponto de encontro de vários caminhos, é um ponto complexo de convergência dos muitos planos do nosso passado (BOSI, 1994, p. 413).

Assim como a memória do passado opera no presente, a lembrança constituída no presente também pode operar no devir, e para isso não necessita possuir um sentido utilitário, prático, no instante de sua realização, ou quando ainda não é memória. “Há um modo de viver os fatos da história, um modo de sofrê-los na carne que os torna indeléveis e os mistura com o cotidiano, a tal ponto que já não seria fácil distinguir a memória histórica da memória familiar e pessoal” (BOSI, 1994, p. 464).

A memória dos processos anteriores como constituintes de uma experiência individual e coletiva, bem como a apresentação de “outras memórias e experiências”, levam a entender que o trabalho com a memória é a possibilidade de se colocar enquanto sujeitos da experiência. Uma experiência, que segundo Larrosa – Bondía (2002), produz afetos, inscreve marcas, deixa vestígios e, principalmente, promove transformações.

Pela memória, muitos sentidos ligados à existência, tanto do indivíduo quanto de comunidades são elaborados, o que reforça no saber da experiência, segundo Larrosa-Bondía (2002, p. 27) “sua qualidade existencial com a vida singular e concreta de um existente singular e concreto”. Assim,

Será a memória individual mais fiel que a social? Sim, enquanto a percepção original obrigar o sujeito a conter as distorções em certos limites porque ele viu o fenômeno. Mas o quando, o como, entram na órbita de outras motivações. Se a memória grupal pode sofrer os preconceitos e tendências do grupo, sempre é possível um confronto e uma correção dos

relatos individuais e a história salva-se de espelhar apenas os interesses e distorções de cada um (BOSI, 1994, p. 420).

A memória envolve os processos históricos e experiências que, através do tempo, formaram a posição e situação que o indivíduo habita no presente. A memória não é estática, ela é dinâmica, sobrevivendo na articulação de valores, significados, e ações dentro de novos contextos e experiências.

A ancestralidade dá sentido à realidade vivida, é vivida na experiência cotidiana que é passada de geração em geração. A ancestralidade diz o que é a tradição africana, seus elementos, matrizes e raízes. Portanto, ela é a força central, propulsora e unificadora da identidade.

Segundo Munanga (2006), a identidade é para os indivíduos a fonte de sentidos e de experiência, portanto toda identidade exige reconhecimento, caso contrário ela poderá sofrer prejuízos, se for vista de modo limitado ou depreciativo. Assim, a identidadede resistência forma comunidades, desenvolve formas de resistência coletiva a alguma opressão e atinge seu significado pela experiência. Acredita-se que as identidades, em relação à maneira como são construídas, devem ser vistas como dependentes do contexto social e religioso.

Pensar em identidade é pensar em dinamicidade. E pensar em dinamicidade no contexto cultural é perceber que este contexto pode ser um elemento construído e estruturado num grupo social com representações diversas que criam ideias sobre as pessoas e sobre os grupos sociais.Para Castells (2000), identidade é a fonte de significado e experiência de um povo, com base em atributos culturais relacionados que prevalecem sobre suas fontes. O autor apresenta três formas de identidade nas sociedades globalizadas e as origens da construção de cada uma delas.

A primeira identidade apontada por Castells (2000) é a legitimadora que foi introduzida pelos dominantes para expandir e racionalizar a dominação em relação aos atores sociais. Já a segunda é identificada pelo autor como identidade de resistência, tendo sido criada por atores contrários à dominação atual, originando resistências com princípios diferentes ou opostos à sociedade. A terceira é a identidade do projeto, sendo que os atores, por meio da comunicação, constroem uma nova identidade para redefinir sua situação da sociedade.

Assim, cada identidade leva a resultados distintos: a identidade legitimadora dá origem a uma sociedade civil, como organizações e instituições para

fazer cumprir as normas sociais dominantes; a de resistência forma comunidades, desenvolve formas de resistência coletiva a alguma opressão; e as de projeto produzem sujeitos que atingem seu significado pela sua experiência.

A ancestralidade como prática política constrói identidades no presente e possibilidades para uma igualdade e cidadania no futuro. Como prática política, a ancestralidade se baseia no passado ancestral, mas é algo vivo e emergente, algo dinâmico para ser trabalhado, desenvolvido, e compartilhado dentro das lutas contra a desigualdade racial (OLIVEIRA, E. 2009).