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CAPÍTULO IV “GRAÇAS A DEUS TEMOS ESSA RAIZ”: PROCESSOS

1 AS PRÁTICAS DE RESISTÊNCIA QUILOMBOLA

1.2 A memória não cala, liga os mundos

Durante a inserção no cotidiano da comunidade, os comportamentos e falas foram apresentando famílias cujas gerações organizam-se em torno de uma memória, por vezes silenciada, por vezes negada, por vezes guardada. Como a literatura nos mostra; os mais velhos são os guardadores de memória; na pesquisa, D. Angelina, o Sr. Manuel e D. Judite representam esses guardadores; o Sr. João, D. Floripes e o Sr. Pedro fazem parte de uma geração intermediária que às vezes negam a memória e a história e às vezes silenciam, os mais jovens, filhos da geração intermediária, as vezes desconhecem, as vezes silenciam a memória coletiva e a história local.

Por isso, no jogo das exclusões, uma das mais perversas é a “exclusão ou a interdição da memória, a separação cultural” de um povo da sua ancestralidade. O “impedimento de um imaginário” reduz o futuro, quando dificulta a recriação do passado no presente, privando o povo da sua humanidade (SILVA, 2004, p. 14).

Mesmo com a negação por parte de uns e o silenciamento de outros, a memória e a história coletiva familiar não foram apagadas, nem poderiam ser, porque são a dimensão simbólica e imaginativa dos conhecimentos históricos e ancestrais da Família Fojo. Primeiro, pela presença do ethos ancestral, recriado e ressignificado no cotidiano das famílias, segundo, pela força do imaginário e da memória das gerações mais velhas que liga os mundos e demarca o momento da história da comunidade em que acontece a tentativa de romper com as práticas sociais, culturais e religiosas de matriz africana.

Sr. Pedro: – Tinha um negócio de um boi eu sei lá. Jai: – Bumba meu boi.

Sr. – Pedro: Tinha outro negócio de reis era outra coisa que eles faziam. Pesquisadora. – Vocês já presenciaram isso?

Sr. Pedro: – Outra hora era o candomblé tinha essas outras coisas não tinha negócio, ninguém conhecia negócio de crença não tinha isso era outra coisa sambando, era, mas era muita gente.

Pesquisadora: – Você pegou essas festas, Sr. Pedro?

Sr. Pedro: – Eu tenho quarenta e oito anos, eu alcancei muito essas festas aí, eu ia direto rapaz era garoto.

Pesquisadora. É devia ser garoto mesmo.

Sr. Pedro: – É, eu ia direto nessas festas que tinha ai. Jai: – Ás rezas eu ainda peguei.

Sr. Pedro: – São João esse mês de São João era o mês todo até quando nada onze horas da noite, meia noite eles ia, aí nos final de semana ou nos dias certos de festa mesmo era amanhecer o dia, não sei quantas noite era festa de São João (LARCHERT, trabalho inédito, f. 93).

O depoimento do Sr. Pedro elucida o esforço da memória para não esquecer a sua história. A memória exercita-se na prática de resistência. Ancoro-nos em Póvoas (2010, p. 48) quando afirma que “É por isso que as minorias têm que cobrar, organizadamente, o reconhecimento da legitimidade de suas memórias como parte integrante da memória nacional.”

Sr. Pedro: – Antigamente só usava o negócio de mato mesmo, se era um corte usava o mato, um ensinava ao outro. Até de sempre eu comento com Jai: – Rapaz, eu acho que todo mundo era quase médico, porque quando um dizia que esse mato serve para alguma coisa às vezes que eu não sei para que esse mato serve, mas outro já sabia. Hoje, o povo vai mais atrás do médico, mas antigamente não tinha médico se adoecesse tinha de se curar dos matos mesmo, um ensinava, outro ensinava. Cobra mesmo já me mordeu as costas três ou quatro vezes, eu quase que morro, aí um ensinava um remédio, outro ensinava outro remédio, aí minha mãe ia fazendo.

Sr. Pedro: – Minha mãe sabia muito de remédio de mato, era muito demais porque ela era parteira, pegou, muito menino na vida até velhinha pegava menino, então ela sabia de remédio, minha mãe foi muita experiência nisso só não sabia experiência de leitura que ela não sabia de leitura, não sabia ler nada.

(LARCHERT, trabalho inédito, f. 93).

Aparece, em uma memória recente, o ancestral mais próximo, aquele que está guardado nas lembranças como o grande Pai de toda família Santos e Gomes, o Sr. Alfredo, o Avô que aparece em alguns depoimentos. “Há uma memória também constituída por pessoas importantes: homens e mulheres que se dedicaram ao coletivo de seus tempos” (PÓVOAS, 2010, p. 51).

Jai: – Porque o senhor conheceu véio Alfredo, né? é por isso que o senhor pegou essas festas.

Sr. Pedro: – Conheci. O avô dos meninos, eu ainda conheci. Pesquisadora. Quem era o véio Alfredo?

Jai: – O véio Alfredo era o dono das terras toda.

Sr. Pedro: – O véio Alfredo que era o avô de João, Floripes, D. Maria. Pesquisadora. O dono do Fojo?

Jai: – Era.

Sr. Pedro: – O véio Alfredo eu conheci bem velhinho, mas já tava bem, aí eu menino ele logo morreu.

Jai: – Era o pai de todo mundo aqui, era o Abraão do Fojo.

Sr. Pedro: – Só eu que conheci, que meu pai era dono daquela fazenda ali do capitão, era vizinha com essa do Fojo e agente só vivia aí, foi criado tudo aqui junto, eu conheci, eu era menino mas conheci o véio.

Pesquisadora: – E você conversava com ele?

Jai: – Demais, todo mundo falava, que na verdade todo mundo chamava ele de pai né?

Sr. Pedro: – Tava bem véio, eu não sei que idade aquele véio morreu não. Cem anos não sei se tinha, mais se tinha menos era pouco.

Jai: – Tirando Pedro, o resto aqui era tudo neto. Sr. Pedro: – É esses netos não conheceu não.

Jai: – Os bisnetos que não conheceu porque os netos era João.

Pesquisadora: – D. Floripes, Sr. João era neto? D. Maria e o pai de Igor. Jai:–Isso. Pai era neto.

Sr. Pedro: – Os netos conheceu, mas os bisnetos não. Aqui, na verdade, é tudo é bisneto dele.

Jai. Essa festa toda acontecia bumba meu boi e tal, quando véio Alfredo era vivo porque ele bancava o povo, então quando ele morreu separou.

(LARCHERT, trabalho inédito, f. 93).

No testemunho do Sr. Pedro aparece a cronologia do antes e do depois, de certo que ele sujeita os fatos históricos a seus significados, encurtando por vezes fatos considerados por ele menos importantes e prolongando a duração dos acontecimentos passados relevantes de seu ponto de vista. Há também uma tendência a regularizar as genealogias, as sucessões e a sequência de grupos de idade, para conformá‑las às normas ideais da sociedade no momento (VISINA, 2010, p. 191). Na busca de fazer emergir a memória histórica, o Sr. Pedro expressa e elabora em uma força narrativa a consciência coletiva do grupo e individualmente a sua crítica, tendo em vista a nova situação religiosa em que se encontra a comunidade do Fojo.

A importância de reconhecer os mais velhos para a comunidade “o véio Alfredo eu conheci bem velhinho, mas já tava bem, eu era menino, ele logo morreu”. Jai acrescenta “era o pai de todo mundo aqui era o Abraão do Fojo”. A tradição há

de resgatar seu fundador, pelas lembranças aparece aquele mais próximo dos acontecimentos atuais do Fojo, o velho Alfredo.

A narrativa remete a um passado recente e apresenta uma época de fartura, nos relatos aparecem um passado cheio de prosperidade, festas, comemorações e partilhas. “É que o povo nessas mata plantava mais mandioca e comia mais caça, ninguém fazia feira na cidade”. “A olaria, casa de farinha que era muito boa”. Essas evocações refletem uma memória imediata sobre a experiência vivida enquanto comunidade negra rural e se inscreve em exemplos práticos da vida cotidiana. Como Halbwachs (2004) afirma que a memória coletiva não é formada a partir de uma história específica, mas de fatos cotidianos suficientes para conservar o sentido e o significado que os indivíduos atribuem ao tempo e ao espaço vividos por eles.

– Aqui meus avôs tal meus tios tudo morava aqui, na questão de finanças não dava para viver, que não tinha recursos foram saindo, aí venderam foram, saindo os herdeiros do Fojo, tudo do outro lado da rodagem tudo isso aí, as fazendas todas, então cada qual morava numa parte de terra dessa, aí foi vendendo para os fazendeiro (LARCHERT, trabalho inédito, f. 103).

Evocações sobre a saúde da comunidade

Sr Pedro: – Minha mãe sabia muito de remédio de mato, era muito demais remédio, porque ela era parteira pegou muito menino na vida até velhinha pegava menino (LARCHERT, trabalho inédito, f. 104).

D’ajuda: – Você sabia que as crianças eram mais saudável, tinha uma saúde melhor do que hoje(LARCHERT, trabalho inédito,f. 87).

Jai: – Rapaz eu acho que todo mundo é quase médico, porque quando um diz que esse mato serve para alguma coisa as vezes que eu não sei para que esse mato serve, mas outro já sabe e vai ensinado, hoje é porque tem, o povo vai mais atrás do medico, mas antigamente não tinha médico se adoecesse tinha de ser dos mato mesmo, um ensinava outro ensinava (LARCHERT, trabalho inédito, f. 104).

Essas falas são reveladoras de uma vivência histórica partilhada, tanto pelas famílias originais do lugar como pela vizinhança. Destacamos que os testemunhos sobre a história da comunidade evocam uma época de fartura, partilha, comemorações, “muita” briga e desentendimento, saúde da população e trabalho. Apontam para uma família numerosa, e seus antepassados para práticas sociais e culturais afrobrasileiras, eis a existência do quilombo!

Os autores Bosi (1994), Halbwachs (2004) e Ricouer (2007) mostram como a memória, em situações de conflito ou de ameaça a integridade de um grupo, se mobiliza para uma “memória coletiva” como função fundamental na defesa do

grupo contra seus agressores, esta época guardada na memória sinaliza para um passado coletivo. No Fojo, percebemos como a memória, que vem a tona como uma pulsão de vida, e a identidade coletiva têm sido a grande defesa das famílias e do território.

A memória é fonte que legitima e mobiliza politicamente o reconhecimento do território e das famílias do Fojo “Antigamente ninguém tinha estudo, mas tinha essa experiência, tinha essa capacidade”. É a partir do movimento dialético entre lembranças e esquecimentos que a realidade presente dos negros e negras quilombolas se torna visível para a sociedade de entorno da comunidade.

É a memória oral que permite conhecer esses tempos passados, percebemos que nos momentos que esta memória vem à tona há de imediato, por parte do grupo presente no momento da narrativa, uma ligação identitária com este passado, denunciando que a memória não deixa a história ser esquecida muito menos ser calada.