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CAPÍTULO IV “GRAÇAS A DEUS TEMOS ESSA RAIZ”: PROCESSOS

1 AS PRÁTICAS DE RESISTÊNCIA QUILOMBOLA

1.1 A ancestralidade no cotidiano quilombola

1.1.2 A mata e o rio: a natureza como pertença

Como está descrito na metodologia, o locus desta pesquisa situa-se em um território de florestas tropicais, rodeado pela biodiversidade da mata atlântica. Durante a trajetória de formação dessas comunidades em terras de Itacaré muitas populações tradicionais, entre as quais quilombolas, desenvolveram modos de vida integrados aos ecossistemas naturais. A Pesquisa de Silva (2008) mostra que a conservação da natureza não é um mero acaso, mas o resultado de um processo histórico que marginalizou populações negras e fez muitas dessas construírem seus territórios rurais distante dos grandes centros. Os povos indígenas e africanos são os grandes responsáveis pela existência e manutenção da mata atlântica restante no país (SILVA, 2008).

Na trajetória de permanência, a comunidade do Fojo construiu práticas de interação com a mata e os rios garantindo uma relação dinâmica e equilibrada entre o ser humano que estratifica e a natureza que doa. Esse equilíbrio nasce da relação de respeito de quem também faz parte desse espaço natural e reconhece-o como parte integrante do seu território físico e espiritual. Dois lugares desse espaço natural aparecem como destaques na memória histórica e coletiva da comunidade: o Rio das Contas e as cachoeiras da mata atlântica, chamadas por todos de pancadas.

Os modos de vida e a trajetória dos mais velhos indicam uma imbricação de suas vidas com o meio ambiente. A mata atlântica e o Rio das Contas sempre fizeram parte do cotidiano do Fojo e compõem a dinâmica das experiências sociais da comunidade e da sobrevivência das famílias no passado e no presente. Desta forma, homens – mulheres – natureza são indissociáveis e fazem parte de um ecossistema cultural.

O Rio das Contas representa com suas margens largas e caudalosas a natureza que sustentou e protegeu no passado seus filhos da dominação dos poderosos coronéis da região dando-lhes sustento e força vital para sobreviverem. Hoje, ensina para o mundo a importância da resistência cultural, da identidade e da memória no(s) território(s) quilombola (s) da nascente na Chapada Diamantina a sua foz em Itacaré. As falas mostram a relação dos moradores com o rio.

Sr. João: – A história de minha mãe é que ela que vivia na beira do rio pescando botando roça, pra dar sustento. (Fragmento de entrevista, 05/04/2012)

Sr. Pedro: – É ver a zuada dela quando o rio tá cheio, mas muita gente que nasceu aqui não conhece a pancada serena, só eu e as meninas, a pancada serena é falada (LARCHERT, trabalho inédito, f. 103).

Sobre a mata, diz seu Pedro, “É que o povo nessa mata plantava mandioca e comia mais caça, ninguém fazia feira na cidade não” (LARCHERT, trabalho inédito, f. 104), essa vivência harmoniosa com a mata extraindo dela o seu sustento sem a depredação tem passado por mudanças com a vinda do capital estrangeiro para a região e dos grandes fazendeiros de cacau, derrubando a mata para fazer pasto.

De ecossistema cultural a propriedade privada de estrangeiros que cerceam as relações da mulher, do homem e das crianças com os elementos da natureza, Sr. Pedro continua a sua fala, desta vez com indignação “É tudo reserva, só que o gringo comprou dentro da reserva só que ele comprou essa área, então ele não deixa ninguém entrar lá não” (LARCHERT, trabalho inédito, f. 104).

Essa integração com a natureza dá aos moradores do Fojo, mesmo os mais novos ou aqueles que não lidam diretamente com a mata, a roça ou o rio, trabalham e moram na cidade, conhecimentos sobre ela. Fazem a leitura do tempo durante o dia, olhando o céu e a posição das nuvens. Algumas passagens vividas durante a inserção apontam esse conhecimento:

Retornando da reunião, pergunto ao Sr. João: – posso marcar com o senhor para andar pela comunidade, isso se a chuva contribuir?

Ele respondeu: – A chuva vai dá uma trégua. Esse mês sempre tem esse sol, veja só: nesse mês o pessoal coloca fogo na roça, porque esse é o veranico que começa em maio, tem o verão de janeiro e o veranico de maio. Os dez primeiros dias de maio não choveram, porém, os outros vinte dias choveram sem parar (LARCHERT, trabalho inédito, f. 44).

Sentados em baixo do jambeiro, a pesquisadora, D’ajuda, Nivaldo e Jai (...) eu estava inquieta, pois no céu tinha nuvens pretas parecendo que ia chover. Em determinado momento, falei da minha preocupação em chover, por conta do meu retorno dirigindo.

Jai disse: – Essa chuva não é para aqui, e explica: quando as nuvens estão desse lado pode ter certeza que não vai chover, porque os ventos que vêm do mar as tiram e levam para outro lugar. Quando retornava pude verificar que as nuvens carregadas tinham ido para outro lado e realmente não choveu (LARCHERT, trabalho inédito, f. 52).

Fui até a casa de July marcar a entrevista era mais ou menos 13h00minh. July estava no rio lavando roupa. Conversamos e marcamos a entrevista para quarta-feira. Do lugar em que estava, esfregando uma roupa na mão, July olha para o céu e disse: – As nuvens prometem chuva.

Caio que a tudo ouvia, disse: – Mas a entrevista ainda é pra quarta feira, hoje é segunda, essas nuvens até la já passaram.

Final da história: não entrei no Fojo na quarta-feira porque choveu muito (LARCHERT, trabalho inédito, f. p. 85).

Essas falas retratam conhecimentos ditos por Siqueira (2006, p. 9) como os múltiplos saberes africanos, aos quais ela destaca:

O saber respeitar as pessoas mais velhas; a história da família dos seus antepassados; o culto à natureza; os saberes em relação à chuva e à posição do sol; os efeitos da lua; o tempo de plantar e de colher; o perigo dos raios, a leitura da força dos trovões; a importância da água em todos os momentos da vida.

Os trechos referem-se à chuva, esse fenômeno da natureza foi marcante este ano no sul da Bahia, porque não é costume chover períodos tão longos na região com grande quantidade pluviométrica como ocorreu durante o período de abril a novembro, esse foi o período de coleta de dados da pesquisa e constantemente a pesquisadora necessitava saber do tempo para entrar e sair do Fojo durante a inserção.