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As miríades de múltiplas e profundas transformações, que assiste-se na cena contemporânea, revelam características que vem sendo gestadas desde o século XIX e Século XX, onde se apresenta o entrecho da cultura urbana metropolitana. Um quadro marcado por intenso fluxo de alterações globais nos distintos e imbricados aspectos: sociais, econômico, políticos e culturais.

O cenário apresenta a fisionomia das grandes metrópoles, com a crescente urbanização e industrialização, com a instalação do comércio, das inovações tecnológicas. A nova atmosfera forja inauditas formas de trabalho e lazer, que transformam os modos de ser, pensar, agir e sentir. Esse processo incita novas reações que passam a responder aos estímulos sensoriais, que fomentam o desejo de consumo – sobretudo através da produção em massa e geração dos signos, bens e imagens. No meio do frenético turbilhão de mudanças o desenvolvimento econômico, do período, propicia a geração de grandes fortunas. Ampliam-se, portanto, os investimentos do capital. Em resposta, a essas mutações, novos espaços de sociabilidade são criados em decorrência da separação entre tempo de trabalho e tempo livre. Tem-se como desdobramentos, dessa realidade, a vivencia de experiências coletivas, que possibilitam novas interações à vida social.

No bojo dessas elaborações encontram-se como alavanca propulsora dos extraordinários avanços das técnicas, das teorias científicas e dos meios de comunicação. As descobertas de novas fontes de energia (petróleo, eletricidade), a chegada do aço e ligas de metal reverbera suas transformações de modo global. Assim, os novos meios de transportes e de comunicações, a exemplo do telefone, telégrafo, trem expresso, o automóvel, o avião etc., além da criação de uma variedade de eletrodomésticos, do motor elétrico, das novas tecnologias do lazer como parques de diversões, o advento da fotografia e do cinema promovem consequências antes inimagináveis.

95 Nesse particular é importante observar o olhar de Renato Ortiz, lançado com acuidade sobre o aperfeiçoamento registrado nesse período. Para o sociólogo, o progresso econômico passa necessariamente pelo progresso científico. Alerta, ainda, que os efeitos que essas mudanças operam, extrapolam os aspectos econômicos e técnicos. Seus desdobramentos promovem mudanças substanciais na esfera da cultura. A descoberta do automóvel é ilustrativa a esse respeito, pois redimensiona o emprego do tempo, as pessoas podem ir de um lugar a outro com mais velocidade e conforto. O mesmo pode-se assinalar com a eletricidade que propícia um conforto antes desconhecido (iluminação das casas, das ruas, funcionamento de uma série de utensílios, elevador etc.). Outro exemplo significativo é a propagação do telefone. Sua função extrapola o ambiente das transações comerciais; e ao viabilizar o contato direto entre as pessoas, o meio de comunicação altera sobremaneira as noções de proximidade e distância. “Dentro desse contexto, a própria sociabilidade dos indivíduos é reorganizada.”82

Para além do círculo íntimo das comodidades aristocráticas, o conforto, enquanto qualidade de vida adquire uma face também pública. Nesse contexto, ganha relevo os investimentos de grande soma dos Municípios para promover melhora substancial nos serviços públicos, quais sejam: água, iluminação, esgoto, transporte.83

A Revolução Industrial irá multiplicar o número desses objetos úteis. Eles cobrem os setores mais diferenciados da vida social. Nas casas surgem as pias, os banheiros, as privadas, os bidês: novos objetos de toilette são introduzidos, como a navalha para barbear e as escovas de dente. Nos escritórios, um conjunto de instrumentos auxiliam a realização das tarefas mecânicas: mata- borrão, borracha, grampeador, clipe, apontador de lápis [...] outra inovação penetra o mundo da administração: a caneta estilográfica. A seu lado, iremos encontrar a máquina de escrever, o papel-carbono, o estêncil. (ORTIZ, 1991, p. 140-141).

As cenas descritas preparam os alicerces sobre os quais se constroem o novo palco gerado pela produção industrial, quais sejam: a dilatação da concorrência

82 ORTIZ, Renato. Cultura e modernidade: a França no século XIX. São Paulo: Editora Brasiliense, 1991, 28.

96 entre os países mais industrializados, que buscam matérias-primas para abastecer a produção de mercadorias. Ganha igualmente amplitude a procura por mercados consumidores. Essa corrida descortina uma nova etapa marcada pela política imperialista. O horizonte aponta a expansão europeia e posteriormente dos Estados Unidos por áreas do globo ainda não colonizadas.

Então, o limiar do século XIX, período que comumente denomina-se como modernidade, abre as portas para as grandes transformações que fazem o mundo trilhar novos rumos. E já na aurora do século XX, observa-se a propagação da cultura do consumo, que “passa a significar não apenas a compra de bens materiais para a satisfação das necessidades, mas também o consumo de imagens e de valores para uma grande parte da sociedade.”84 Atento a essas reflexões Padilha elucida que a “cultura do consumo” que nasce na Europa Ocidental, vincula-se profundamente à reconfiguração do espaço urbano.85

Na modernidade o lugar torna-se fantasmagórico, ou seja, os locais são completamente penetrados e moldados por influencias sociais que encontram-se distantes deles. Nesse sentido, o que estrutura o local não é meramente presente na cena, pois a forma visível não revela as relações distantes que determina sua natureza.86

A par das alterações que amanham os passos da humanidade, Anthony Giddens,87 elucida que as mudanças ocorridas nos três ou quatro séculos, “um diminuto período de tempo histórico”, foram tão vastos e dramáticos em suas influencias decisivas, que para tentar interpretá-las tem-se apenas a ajuda limitada dos conhecimentos das tradições precedentes. De acordo com essa vereda, Giddens,

84 PADILHA, Valquíria. Shopping Center: a catedral das mercadorias. São Paulo: Boitempo, 2006, p. 43.

85 Id., 2006, p. 43.

86 GIDDENS, Anthony. As consequências da modernidade. São Paulo: Editora UNESP – Universidade Estadual Paulista, 1991, p. 27.

97 esclarece que existem continuidades entre o tradicional e o moderno, e que nem um e nem o outro elaboram um todo separado.

Os modos de vida produzidos pela modernidade nos desvencilham de todos os tipos tradicionais de ordem social, de maneira que não têm precedentes. Tanto em sua extensionalidade quanto em sua intensionalidade, as transformações envolvidas na modernidade são mais profundas que a maioria dos tipos de mudança característico dos períodos precedentes. Sobre o plano extensional, elas serviram para estabelecer formas de interconexão social que cobrem o globo; termos intensionais, elas vieram a alterar algumas das mais íntimas e pessoais características e nossa existência cotidiana. (GIDDENS, 1991, p. 14).

Nesse sentido, a cidade manifesta e guarda os elementos tecidos no passado. E o “momento atual, por sua vez, revela continuidades e descontinuidades que se combinam em consequências das transformações na relação espaço/tempo urbanos.”88 Os distintos usos e apropriações do espaço, as relações forjadas entre as gerações, a dinâmica dos grupos, do trabalho, do lazer, entre outros são frutos e sofrem influência da produção, do consumo e das práticas culturais. Em outros termos, pode-se, ainda, dizer que “a própria organização do espaço, o planejamento das edificações, é em si mesma uma manifestação de códigos culturais específicos.”89

Nesse sentido torna-se essencial compreender que o desenvolvimento das cidades ocidentais, no século XIX, em especial Londres e Paris, encontram-se imiscuídas com o nascimento da “sociedade de consumo”. Em contrapartida do cenário delineado, o desenvolvimento urbano é tecido por indubitável contradição. O acelerado crescimento da população revela, no entanto, o lado reverso desse processo de prosperidade, qual seja: o fenômeno da pobreza. Ora, nesse mar de caudalosa transformação, visualiza-se que no mesmo compasso que ocorre o problema da superpopulação ganha-se igualmente ressonância o incremento das condições de vida subumanas. Outro aspecto que marca sobremaneira, esse período, é o aumento gigantesco nos índices de prostituição, suicídios e alcoolismo.

88 CARLOS, Ana Alessandri. O espaço urbano: novos escritos sobre a cidade. São Paulo: Contexto, 2004, p. 8.

89 FEATHERTONE, Mike. Cultura de consumo e Pós-Modernismo. São Paulo: Studio Nobel, 1995, p. 135.

98 Eis um momento curial: a chegada da pletora de trabalhadores advindos do campo inunda as cidades, que não possuem condições estruturais – saneamento básico, moradias e assistência médica etc. para receber tamanho contingente de pessoas. Os camponeses “convertidos em grandes massas de operários”,90 são submetidos às condições de trabalho e de vida profundamente desumanas.

Ora, evidentemente, que o quadro pintado, com cores alegres que simbolizam o clima de progresso e prosperidade erigido pelas benesses proporcionadas pela industrialização e pelas novas descobertas no campo cientifico delineou outros contornos que efetivamente se constituíam em desafios, pois é “sabido que a industrialização que aumentou a produção provocando um aumento também da população no século XIX, trouxe consigo uma deterioração das condições de vida nos bairros pobres das principais cidades da Europa ocidental.” (PADILHA, 2006, p. 48).

Nesse contexto, as ruas das cidades são palcos para mais um personagem urbano: a multidão. Nas ruas passa-se a “desfilar” distintos tipos humanos. Perscrutando esse fenômeno, Heitor Frúgoli, destaca que a gigantesca quantidade de desenraizados do campo que migram para a cidade, delineia uma nova paisagem: “o espetáculo da pobreza”.91 São membros da classe trabalhadora e desempregados em condições degradantes que passam a perambular pelas ruas. Essa nova ambiência forja-se uma nova consciência sobre a pobreza, propagando-se o medo quanto à possibilidade de agressão criminosa. “Já que a população trabalhadora era vista como um perigo a ser controlado, circunscrito, afastado.”92

No que concerne a esses aspectos, Carlos Roberto de Andrade assevera, que as cidades modernas se caracterizam pelo signo do confinamento. Primeiro nasceram amuralhadas, fortalezas novas, como as cidades militares do Renascimento, ou legado do período medieval com seus espaços de clausura. Para o autor a cidade moderna enquanto máquina territorial é construída para controlar todo

90 FRÚGOLI JÚNIOR, 1995, p. 13.

91 Ao referir-se “espetáculo da pobreza” o autor faz emprega o termo denominado por Maria Stella Bresciani.

99 tipo de fluxos, e esta marca influencia sua forma e as múltiplas imagens que delas são engendradas. “Além do controle dos fluxos diversos que a atravessam – da água e ar, aos homens, mercadorias e desejos – como nó que une os fios de uma muralha, articulando-se em uma rede urbana, a cidade moderna também exercerá o controle do olhar, disciplinando-o.”93 Em meio a esse fremente processo não é de se admirar que,

a história da urbanística moderna é marcada pela luta dos trabalhadores pelo

direito à cidade, disputando o centro, mas também pela criação de modos de

morar confinados, em vilas operárias, conjuntos de habitação social, subúrbios- jardins [...] que são a expressão físico-territorial da segregação social e das profundas separações que atravessam a cidade moderna – entre local de trabalho e local de moradia, entre o centro e periferia, entre o público e privado. (ANDRADE, C., 1997, p. 99-100, grifos da autora).

As intervenções urbanísticas que rasgaram largas e novas avenidas e bulevares, como no caso de Paris, promoveram a demolição de antigos bairros, deslocando a população. Buscava-se inserir a capital francesa “numa escala de circulação mais propícia à ordem capitalista industrial. [Ao destruir os bairros populares] dominados pelas assim chamadas ‘classes perigosas’, com uma elevação dos aluguéis [empurrou-se] o proletariado para a periferia da cidade.”94

Ao mesmo tempo, que a ampliação do comércio apressurou a produção das mercadorias e bens de consumo, deflagrou as mutações no tecido urbano, redefinindo usos e funções dos espaços públicos. A partir deste momento o horizonte é estruturado tendo a perspectiva as grandes obras que tinham como fito promover uma nova imagem da cidade.

Assim, sob a égide de uma operação política, visava-se criar uma imagem moderna de cidade. Todavia, o intuito de embelezar a Paris e adequá-la às necessidades de circulação, que a cidade industrial exigia, guardava também outras

93 ANDRADE, Carlos Roberto Monteiro de. Confinamento e deriva: sobre o eclipse do lugar público na cidade moderna. In.: SOUZA, Célia Ferraz de; PESAVENTO, Sandra Jatahy. (Orgs.). Imagens urbanas: os diversos olhares na formação do imaginário urbano. Porto Alegre: Editora da

Universidade Federal do Rio Grande do Sul/UFRGS, 1997, p. 97. 94 FRÚGOLI JÚNIOR, 2000, p. 20. (Grifo conforme original).

100 intenções, a saber: disciplinar estrategicamente os usos do espaço urbano, evitando com isso, a construção de barricadas. (LEITE, 2004, p. 18).

Concernente a essas reflexões, Helena Angotti Salgueiro (2001, p. 23-24), apresenta outro ponto de vista, alerta, no entanto, para a renovação das interpretações que vieram a lume acerca do modelo haussmanniano. Segundo a autora alterou-se a visão do simplismo datado e redutor em perceber a abertura dos

boulevards apenas como um ato deliberado para viabilizar a passagem dos canhões

sobre o povo e cessar com as barricadas. Passou-se a estudar os resultados que a remodelação da cidade dava a representações anteriores e a problemas urbanos gritantes como a salubridade e circulação, o que significava equipar com praças arborizadas, jardins, ruas pavimentadas, esgotos, transportes, estações, prédios padronizados em pedra e providos de água, luz e gás etc., medidas que trariam condições novas a vida cotidiana. “Havia na Paris do Segundo Império, observa A. Picon, um sentimento geral de que era preciso fazer alguma coisa para resolver os conflitos sociais, os problemas decorrentes da falta de saneamento e de mobilidade na cidade capital, cada vez mais cosmopolita.”95

Na esteira dessas analises Antoine Picon96, em seu ensaio “Racionalidade técnica e utopia: a gênese da haussmannização”, traz contribuições importantes com relação a origem dos modelos urbanos, as alterações das representações no século XIX e prevalência da racionalidade técnica dos engenheiros e as intervenções na cidade. Recortando o ângulo de análise à luz das concepções e atuação dos engenheiros, o autor revela que a Paris de Haussmann não é apenas a cidade dos políticos e arquitetos.

Picon (2001, p. 66), afirma, ainda, que para se compreender a gênese da haussmannização torna-se imprescindível levar em consideração a atuação dos engenheiros na cidade, na virada dos séculos XVIII e XIX, pois suas influencias

95 SALGUEIRO, Heliana Angotti. Cidades capitais do século XXI. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2001, p. 24.

96 PICON, Antoine. Racionalidade técnica e utopia: a gênese da haussmannização. In.: SALGUEIRO, Heliana Angotti. Cidades capitais do século XXI. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo,

101 sobrepujam a mera construção de pontes e portos. São esses profissionais, herdeiros das inquietações referentes à circulação, que tiveram seu nascedouro no século XVIII, que assumem papel decisivo em relação as transformações urbanísticas. “Nos anos de 1830-1840, essas redefinições se esboçam [...] nas reflexões feitas nos meios de engenheiros ligados a movimentos utópicos, como o sansimonismo e o fourierismo.

É notável, sublinhar nesse particular, que as mutações impressas na urbi se efetivaram, igualmente, porque a “elite das Luzes”, do século XVIII, passa a reconhecer uma capacidade de crescimento que rompia com as representações tradicionais da cidade. Tal percepção é gerada pelo incremento dos fluxos naturais e humanos que passam a desenhar no espaço urbano novas características. A cité outrora fechada com seus limites definidos, cercada de fortificações ou boulevares de difícil acesso, abre-se para a possibilidade de expansão dos seus horizontes, assumindo limites transitórios. Picon aponta, ainda, que em concomitância a esse painel de alterações assiste-se o nascimento de uma ideia de solidariedade econômica entre as cidades dispersas no território.

Eis um momento seminal, sob a regência de Georges-Eugène Haussmann, a cidade de Paris foi cenário, após a Revolução, de uma constelação de obras baseada em um novo urbanismo e arquitetura. A cidade guardada por muros, traçada por pequenas vielas, passa a ser algo da política que visava a salubridade da cidade. Para isso, a “Paris de Haussmann [passa a ser] também uma cidade de redes, rede viária [...], rede de água e esgotos [...] e ainda rede de parques e de lugares de passeio.” (PICON, 2001, p. 86). Inaugura-se além das linhas férreas, iluminação pública, tubulação a gás, mercados, novos prédios, hospitais.

Assim, as observações dos aportes que marcam as tendências da época revelam que a cidade irregular, herança da Idade Média e época clássica passam a ser redesenhada tendo como base uma geometria que privilegia o movimento das mercadorias e das pessoas. Vem-se, desse modo, ganhar corpo uma nova traça bem distinta dos bairros antigos. Vale ressaltar que a redefinição do estatuto do urbano, como assinala Picon, relaciona-se naturalmente com a evolução dos valores e das práticas urbanas. Esse conjunto de variações reverbera-se inclusive na literatura, que

102 as divulga ao descrever as tensões da grande cidade. Essas tensões geram um novo prazer, o do caminhante, do flâneur, que percebe o urbano como uma paisagem na qual ele aprecia encontrar a variedade e o pitoresco.97

Tais acontecimentos engendram uma nova fisionomia, qual seja: as ruas passam a serem ocupadas pela multidão inebriada. Essas variações trazem à tona uma nova concepção acerca da cidade, que passa a ser percebida como espaço do perigo e ameaça.

Reverso dessa percepção é assinalado por Walter Benjamin com a figura do flâneur, – que não se esquiva da multidão, nela penetra, simbolizando, desse modo, a vivencia de novas aventuras urbanas e negação do refúgio privado. Diante da novidade histórica, a cidade gera um novo olhar, “levando intelectuais como Baudelaire, seguido por Walter Benjamin, a cantar as suas virtudes, buscando romper com a nostalgia pelo campo.”98

Nas mãos de Haussmann Paris torna-se uma metrópole. No entanto seu modelo de modernização recebeu severas críticas. Walter Benjamin, analisando o período declara que o barão era um ditador que promovia mudanças antipopulares na cidade. Na leitura de Benjamin as intervenções que demoliram bairros inteiros, obrigaram o proletariado a se instalarem nos arrabaldes da cidade. Assim, Haussmann “faz de Paris, para seus próprios habitantes, uma cidade estranha, estrangeira. Os parisienses não se sentem mais como eles mesmos e começam a tomar consciência do caráter inumano da metrópole.”99

Corroborando com essas angulações, Ortiz, pontua que um novo modelo de modernidade urbanística se impõe com a configuração do espaço privilegiando as grandes vias, a circulação de transporte e pessoas. Para o sociólogo, as grandes reformas, ao redefinir a malha medieval com a demolição de prédios, desencadearam a remoção da população do antigo centro, deslocando as classes populares para os

97 PICON, 2001, p. 76.

98 GASTAL, Susana. Alegorias urbanas: passado como subterfúgio. Campinas: Papirus, 2006, p. 67.

99 BENJAMIN, Walter. Paris, capital do século XIX. Espaço & Debates: Revista de Estudos Regionais e Urbanos. São Paulo, Ano IV, N. 11, p. 05-13, 1984, p. 12.

103 bairros periféricos, locais onde se instalam as empresas fabris. “Tudo se passa como se as mudanças estruturais da sociedade se refletissem no espaço urbano, que deve agora se distanciar das cidades vetustas do Antigo Regime, com suas ruas estreitas e tortuosas.”100

Ora, embora o haussmannismo suscite críticas e opiniões convergentes, os estudos acerca do modelo de reformas parisiense revelam que sua influência se fez marcante, não apenas em solo francês – Lyon, Bordeaux, Marseille – ou nas cidades europeias. “O haussmannismo não se explica apenas com termos e valores de seu tempo, apresentando-se, sobretudo como um evento que foi capaz de pôr em prática valores representados em várias épocas que o precederam.”101 A onda modernizante cruzou o oceano e ganhou eco em outros países a exemplo do Brasil, cujas cidades passam a ser reformuladas tendo como aporte o modelo propagado pela “Cidades das Luzes”.

Destacável, ainda, nesse sentido, são as novas concepções de modernidade, assomadas no Século passado, que desenrolou-se inicialmente nas cidades norte-americanas. Esta nova compreensão privilegia a segmentação, especialização e funcionalidade do desenho urbano, suprindo as necessidades da cidade no tocante a circulação motorizada. “Segundo Le Corbusier, um dos expoentes desse movimento, era preciso ‘matar a rua’ para transformá-la em ‘máquina de tráfego.’”102 Tal concepção, ao se expandir pelo mundo, promoveu profundas alterações à vida cultural das cidades.

Heitor Frúgoli decorrendo sobre o tema expõe que esse tipo de planejamento “monofuncional” e atomizador ganhou relevo a princípio nos Estados Unidos, com o desenvolvimento dos subúrbios uniformes, que contribuíram significativamente para o processo de esvaziamento da vida pública.103

100 ORTIZ, Renato. Cultura e modernidade: a França no século XIX. São Paulo: Editora Brasiliense, 1991, p. 21.

101 SALGUEIRO, 2001, p. 39-40.

102 FRÚGOLI JÚNIOR, 1995, p. 16. (Grifos conforme original). 103 Idem, 1995, p. 16.

104 Abordar essa temática torna-se imperioso referenciar as contribuições de Jane Jacobs (2000), que efetivou vigorosas críticas às práticas urbanísticas em voga nos Estados Unidos. Sua proposta desliza no sentido de combater o urbanismo moderno e ortodoxo, representados na sua obra – “Morte e vida de grandes cidades”