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4 METODOLOGIA OU FAZER DECOLONIAL? O PROCESSO

4.2 A COMPOSIÇÃO DO NOSSO PROCESSO DECOLONIZANTE DE

4.2.2 As inscrições e as conversas iniciais

Durante e após o processo de divulgação da pesquisa, registramos no total 14 inscrições pela internet, sendo cinco mulheres e nove homens. Praticamente todas as inscrições se deram diretamente pelo formulário (já detalhado anteriormente, e conforme consta no apêndice E), sem contato prévio com o pesquisador. Alguns poucos jovens, antes de fazerem a inscrição, entraram em contato pelo WhatsApp em busca de mais detalhes e nesses casos o pesquisador se apresentou, informou o local onde atuava e repassou o link do formulário de inscrição, pedindo sempre que socializassem com quem pudessem. Acreditamos que a apresentação pessoal do pesquisador, mesmo que virtual, inicialmente, foi importante para gerar algum vínculo, ou pacto, com base na confiança. Alguns desses jovens retornaram e se inscreveram, outros não.

Por mais que as informações institucionais constassem no material de divulgação, o pesquisador evitou se apresentar diretamente ao público no material de divulgação, principalmente por conta do receio de possíveis retaliações, uma vez que estávamos num período efervescente de polarização política em torno do golpe de 2016, seus desdobramentos e também estávamos no turbilhão do processo eleitoral de 2018. No entanto, não sofremos nenhum tipo de hostilidade de forma direta.

Alguns detalhes no preenchimento dos formulários nos chamaram atenção. Entre as mulheres que se inscreveram, retomamos o contato com todas, explicitando de forma bem sucinta e dialogada que o público-alvo era masculino. Algumas não deram retorno, outras duas informaram que fizeram a inscrição para contribuir com a divulgação. Fizemos contato com todos os jovens homens inscritos. Alguns estavam dentro do perfil do público-alvo (jovem homem homossexual residente no campo e estudante do ensino médio no agreste). Outros não estavam dentro do perfil (ou eram de outras regiões, incluindo capital, ou não estudavam mais no ensino médio). Alguns desses informaram que contribuiriam com a divulgação. Outro respondeu buscando informações sobre metodologia, propomos contato pessoal, o que não aconteceu. E alguns não deram retorno. Um dos jovens que se inscreveu e se tornou participante se posicionou sobre a pesquisa já no formulário de inscrição e isso será discutido na seção 5, que tratará da análise das informações.

Os primeiros contatos pessoais para as conversas iniciais com os inscritos, para apresentação do pesquisador, do possível participante e apresentação de informações sobre a pesquisa ocorreram na Cidade Verde com quatro jovens, e posteriormente com dois jovens inscritos na Cidade Vermelha. A articulação e os agendamentos com os inscritos se deu

inicialmente por e-mail e WhatsApp. Algumas das conversas iniciais ocorreram durante o processo de divulgação, e outras só puderam ocorrer após o período da greve dos caminhoneiros18 e o consequente desabastecimento de combustíveis, que inviabilizou o deslocamento de todos nós.

A primeira conversa foi com o participante Gabriel, na Cidade Verde, e ocorreu em uma universidade. Gabriel foi localizado para a conversa junto aos seus colegas, que permaneceram próximos a nós e ele expressou, após questionamento do pesquisador, que não haveria problemas em conversamos próximos aos seus amigos. Avaliamos que poderia ser uma estratégia dele para lidar com alguém desconhecido. Ele nos informou que ficou sabendo da pesquisa através de uma ex-professora. O pesquisador, que estava um pouco apreensivo por ser a primeira conversa, deu informações básicas sobre a pesquisa, também informou que era homossexual, que também teve dificuldades na sua escolarização, e que a questão da homossexualidade no contexto rural tem perpassado pelo seu trabalho desde que começou a atuar como psicólogo na região (ao perceber jovens homossexuais indo embora, ou vivendo relações heterossexuais por conveniência).

Ele nos informou sobre o local onde mora, sobre a relação com a mãe e demais familiares, a forma como descobriram a sua homossexualidade, que já havia finalizado o ensino médio há seis meses, que havia passado no Enem e que começaria os estudos em uma universidade em breve. Quando informamos sobre o processo da pesquisa, observamos alguma dificuldade dele em concordar em participar da roda de conversa, que seria o primeiro momento da construção de informações, por acreditar que não ficaria muito à vontade diante de outras pessoas, mesmo que os demais participantes tivessem o mesmo perfil que ele. Outro fator que nos chamou atenção é que, para nós pesquisadores, o lugar informado como moradia não se configura como zona rural (discutiremos essa questão em nossas análises).

Considerando essas questões do contato inicial, e apesar de observarmos que ele não cumpriria o requisito de ser estudante do ensino médio e de não estar, sob nossa perspectiva, na zona rural, observamos também que ele havia finalizado os estudos há pouco tempo, demonstrava grande interesse pela pesquisa, e que a questão de pertencimento ao rural e moradia no campo seria uma questão a ser explorada em sua entrevista (assim também como na dos demais participantes). Por esses motivos, mantivemos contato e realizamos a entrevista posteriormente, com a orientação prévia e acordada que trataríamos sobre a sua experiência

18 A segunda quinzena de maio de 2018 foi marcada pela greve dos caminhoneiros por todo o Brasil, que teve como pauta, entre outras, a redução do preço do óleo diesel, conforme sintetiza a reportagem intitulada “Greve dos caminhoneiros: a cronologia dos 10 dias que pararam o Brasil”, disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-44302137.

no ensino médio, e que a entrevista se daria antes dele iniciar os estudos na universidade, o que foi feito. Optamos por realizar com ele, inicialmente, a entrevista antes da roda de conversa, como forma de garantir adesão e participação do mesmo. Esse fator foi determinante para que, posteriormente, flexibilizássemos os momentos de construção de informações junto a todos os participantes. Trataremos especificamente sobre isso no próximo tópico deste texto.

A segunda rodada de conversas iniciais se deu de forma inusitada e nos surpreendeu positivamente. Agendamos a conversa com dois participantes inscritos em outra cidade, que denominamos aqui de Vermelha. Nos contatos feitos individualmente pelo WhatsApp, os dois inscritos solicitaram que a conversa inicial ocorresse em uma escola do município. Questionamos aos dois se esse seria mesmo o local adequado, se prefeririam algum lugar mais reservado na cidade mesmo, alguma lanchonete ou local público, como uma praça, por exemplo. Porém, os dois participantes reafirmaram que a escola seria o local mais adequado.

Além disso, estava chuvoso e seria difícil termos a conversa em local aberto. Então, agendamos, em horários diferentes, com cada um deles. Nesse momento, mesmo tenso diante da possibilidade de algum rechaço por parte da escola, o pesquisador precisou mudar a estratégia de contato, necessitando adentrar na escola se apresentando para os gestores, informando a filiação junto às universidades, falando, com algum receio, sobre a pesquisa e os objetivos dela e dizendo que dois dos seus estudantes estavam inscritos na mesma. E solicitamos autorização, junto à gestora que nos atendeu, para conversar com os estudantes.

E foi nesse momento que nos surpreendemos. Pediram ao pesquisador que aguardasse e em seguida pudemos observar, a partir do pátio da escola, que a gestora e dois estudantes se articularam naquele momento, sem a nossa participação e por iniciativa deles, para que o pesquisador conversasse sobre a pesquisa com mais seis alunos homossexuais, além dos dois com quem tínhamos marcado. Ficamos um pouco receosos, procurando não transparecer o receio, concordando com a proposta, mas, ao mesmo tempo, informando todos os procedimentos feitos anteriormente, que se deram individualmente sob a justificativa do sigilo. A gestora, porém, esboçou sempre cordialidade e acolhimento à pessoa do pesquisador e de sua proposta. Os jovens todos se reuniram na biblioteca da escola, chamaram o pesquisador para a conversa, sem a presença da gestora, que se iniciou meia hora após os chamamentos e organização deles. E o que aconteceu foi um momento único, muito rico e surpreendente, que mudou muitos rumos da pesquisa. Consideramos que a postura desses jovens e desses educadores configurou uma atitude decolonial que colocou em questão o nosso fazer acadêmico.

O pesquisador se apresentou, deu explicações sobre a pesquisa, os jovens tiraram dúvidas e falaram sobre o movimento que existe na escola de apoio aos estudantes gays, lésbicas e bissexuais. Informaram que o gestor principal, que é homossexual, com a gestora que atendeu o pesquisador e uma das professoras, foram os principais articuladores de grupo de ajuda mútua, e que todos eles, gestores, educadores e os jovens estudantes, já estavam sabendo da pesquisa pelas redes sociais. O panfleto digital foi socializado por uma ex-aluna do pesquisador, moradora da Cidade Vermelha, egressa da escola e psicóloga parceira da mesma. Eles também disseram que esse grupo foi criado após o suicídio de uma das estudantes, que era lésbica e tinha dificuldades com a comunidade e com a família diante da sua orientação sexual. Esse evento abalou bastante o contexto escolar, e o grupo passou a ser uma das estratégias para lidar com o luto e também para o enfrentamento e fortalecimento desses estudantes. Confessamos que não esperávamos essa conjuntura e essa abertura por parte dos gestores da escola e dos estudantes mobilizados.

Foram ao todo oito participantes da reunião articulada por eles, sendo que os dois inscritos também estavam presentes. A maioria deles estava bem retraída, porém dois conversavam bastante e foram os principais articuladores da reunião. Todos os inscritos concordaram que a conversa se desse nesses termos, mas alguns deles, inclusive não inscritos, quiseram conversas individuais após a reunião. Durante a mesma tratamos dos objetivos e fatores que justificavam a pesquisa, que se tratava de um desdobramento do projeto de extensão e suas constatações. Nesse momento, o pesquisador também informou que era homossexual e que se sentia na responsabilidade de fazer algo em torno dessa questão. A partir desse momento, percebemos que os mesmos ficaram bem mais à vontade para falar e entendemos que foi vivenciada uma atitude decolonial, que possibilitou a construção de um pacto com a maioria deles e com a escola. O pesquisador pediu que todos se apresentassem, o que se deu de forma dinâmica, com algumas piadas internas entre eles. E, desde já, apresentaram demandas ao pesquisador. A maioria concordou alegremente com a roda de conversa, mas alguns deles ficaram receosos. Percebemos novamente que a entrevista poderia ser o momento inicial para garantir vínculo e participação efetiva na pesquisa.

Durante a conversa com eles, já surgiu a proposta de fazermos um trabalho futuro na escola, assim como sugeriram que as alunas lésbicas integrassem o grupo. Um dos jovens sugeriu que nas rodas tratássemos sobre os estereótipos e as “bichas afeminadas”. Pudemos perceber, nessa reunião, que há uma certa resistência à afeminada, ao mesmo tempo em que constatamos que a maioria do grupo que participou dessa reunião era de afeminadas. Alguns deles, afeminados ou não, demonstraram algum desconforto através do corpo e dos gestos.

Todos se conheciam entre si, tirando brincadeiras e se chamando de “pocs” e também de “poc afro”, em referência aos mais afeminados e negros. Entre os participantes, três deles eram negros, sendo que dois eram mais afeminados. Ficamos observando se não estavam se ofendendo, porém percebemos no decorrer da reunião que era uma forma de brincadeira com um certo carinho e valorização entre eles. Eles falaram muito do quanto era importante a escola dar espaço para aceitar os gays e as lésbicas, e que eles se sentiam muito bem com isso. Ao fim da reunião, agradecemos a presença, falamos da satisfação de encontrarmos esse grupo e pegamos os contatos de todos eles. Somente um deles não participou da pesquisa em nenhum momento, e outro não teve possibilidade de participar da entrevista por indisponibilidade de horários, mas pôde participar da roda de conversa, o que foi muito importante. Um dos participantes reside em outro município, que denominaremos de Cidade Azul. Foram ao todo oito participantes dessa escola na Cidade Vermelha.

Após a reunião, fizemos conversas individuais breves com quatro deles. Alguns falaram sobre a dificuldade de se definirem como gays, o forte apoio do gestor principal da escola (alguns sugeriram que o mesmo participasse da roda de conversa), sobre suas relações com familiares e com a escola, e suas dificuldades em lidar com o preconceito no cotidiano. Falaram também sobre as questões raciais, considerando desde a homossexualidade do pesquisador, que é negro, passando pela branquitude deles (embora não tenham denominado assim) e tratando das bichas afeminadas que são negras. Percebemos que um deles tem uma certa liderança entre os demais, e que foi um dos articuladores da reunião com o pesquisador. Pudemos conversar também com a professora articuladora e com outro estudante indicado por eles, em outro turno. Porém, percebemos que o mesmo ficou constrangido, falou muito pouco e o deixamos bem à vontade sobre sua participação. Reiteramos convites posteriormente, mas o mesmo não participou da pesquisa. De forma geral, avaliamos que o contato com essa escola, com esses gestores, essas gestoras e esses estudantes foi muito rico e um verdadeiro “achado” em termos de resistência no agreste alagoano.

As últimas conversas iniciais ocorreram na Cidade Verde também de forma inusitada, embora sem relação com o contexto escolar diretamente. Nesta cidade, tivemos três inscritos. Ao articular a conversa inicial pelo WhatsApp, os três falaram que se conheciam e um deles ofereceu a própria casa para que a reunião acontecesse, informando que a mãe estaria em casa. Questionamos se seria o local mais adequado, o mesmo respondeu positivamente. Indicou o trajeto e o transporte e seguimos ao encontro dos três. Um deles subiu no mesmo ônibus que o pesquisador estava e já nos identificamos e nos conhecemos no próprio veículo.

O trajeto é percorrido pela periferia da cidade e pela zona rural. Até que chegamos ao bairro, um conjunto habitacional, próximo a sítios da cidade.

Ao chegarmos, fomos recebidos pelos outros dois no ponto de ônibus e pela mãe de um deles, em sua casa. A recepção foi muito boa. A mãe demonstrou abertura e dialogou bastante com o pesquisador sobre outras questões que envolviam família e sua história de vida. Após essa conversa ficamos no quarto de seu filho Simon, que foi o anfitrião e um dos inscritos, junto com Cléber e o outro rapaz amigo deles, que não pôde participar da pesquisa por questões de logística e agenda. Simon estava no ensino médio, Cléber havia finalizado um ano antes e o colega deles já estava no ensino superior. Todos se conheceram pelas redes sociais. Simon conheceu o colega pelo aplicativo Tinder19, tiveram contato pessoal, não namoraram e se tornaram amigos. E Cléber conheceu Simon pelo Facebook e são namorados.

Simon e Cléber atuam em coletivos políticos de juventude no Estado. O colega, conhecedor e usuário de tecnologias de informática e comunicação, sugeriu que fizéssemos um documentário sobre a pesquisa, mas não seguimos com sua proposta, pelo menos não para esta pesquisa. Falaram sobre suas relações com familiares, escola, trajetórias e perspectivas. Cléber reside em outra cidade da região agreste, que denominaremos de Cidade Amarela. Algumas questões abordadas por Simon e Cléber serão apresentadas e discutidas na análise das entrevistas. A conversa foi bem proveitosa e o pesquisador foi bem acolhido por todos.

Entendemos que essas e as demais vivências, que nos surpreenderam já nas conversas iniciais, configuraram atitudes decoloniais que colocaram em questão, de forma pertinente, os caminhos desta pesquisa e a postura do pesquisador. A maior parte dos participantes já nesse momento buscou questionar nossas normas, apresentando as suas formas de conceber troca e relação na perspectiva da conversa alterativa. De forma tranquila e genuína, nesse momento nós fomos muito bem colocados por eles como o “outro” a compor a decolonização de gênero e sexualidade já em andamento, a partir deles. No momento da análise discutiremos mais sobre como eles têm construído essa decolonização. A seguir, trataremos sobre as entrevistas como outro momento fundamental na tentativa de construir a pesquisa mutuamente.