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Capítulo II – O recrudescimento do movimento e as ligações internacionais

5. As instruções de Kissinger

Em meados de agosto, o Departamento de Estado toma muito a sério a possibilidade de um golpe separatista nos Açores e a ameaça de recurso ao terrorismo caso continuasse a ser ignorado o desejo de independência. Começavam a ouvir-se rumores sobre a formação de um governo pós independência. Apesar de noutras alturas

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62 o Departamento de Estado ter instruído quer a embaixada quer os serviços consulares para a forma como deveriam reagir perante uma ameaça independentista em curso, nenhuma foi tão expressiva e pormenorizada como a emitida a meados de agosto de 1975.

Na origem deste novo patamar de preocupação estará, sobretudo, o receio do sucesso de uma revolta nos Açores influenciar negativamente o avanço dos moderados no continente situação na qual a administração americana estava empenhada e envolvida. O receio norte-americano é partilhado também pelo governo francês132. Ao Departamento de Estado chegam insistentemente indicações de vários quadrantes, não apenas do seu embaixador em Lisboa, sobre a importância de permitir que os moderados se instalassem no comando do poder em Portugal. O Secretário de Estado norte-americano releva a perspetiva descrita por um conselheiro da embaixada de França em Washington

“Uma rebelião nos Açores ou declaração de independência iria minar as forças anti-gonçalvistas na metrópole. (…) A França está a ser bastante cautelosa em relação à questão dos Açores, evitando o contacto com os separatistas”.133 Henry Kissinger trata de alertar, a 13 de agosto, o consulado em Ponta Delgada, missão EUA NATO e embaixadas em Lisboa, Londres, Bona e Paris para uma informação difundida pela FBIS – Serviço de Transmissão de Informação do Exterior – segundo a qual AFP (a agência de notícias France Press) dava conta de duas cartas enviadas pelo denominado governo clandestino provisório para o Presidente português e para o Secretário-Geral da ONU, o austríaco Kurt Waldheim. As cartas advertiam

132 A França tinha instalado nessa altura (1964-1993) a Estação de Telemedidas das Flores. Na base francesa era feito o rastreio de misseis balísticos.

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”Se o governo português, as Nações Unidas e todos os outros países não procurarem uma solução democrática para o problema dos Açores, faremos uso de violência entre outros métodos desagradáveis. O governo provisório enviou para a AFP, a partir da sua sede em Summerset, as cópias das duas cartas datadas de 6 e 7 de agosto.” 134

Na mesma data, o Secretário de Estado, ciente que “está a aumentar nos Açores o suporte para a declaração unilateral de independência”, dá orientações minuciosas sobre a forma como os norte-americanos, civis e militares, deveriam agir durante e após uma eventual declaração de independência. Kissinger sabe que a ação de qualquer norte-americano em Portugal, e em particular nos Açores, seria altamente escrutinada pelas várias forças políticas em presença – como seja o governo central e a própria FLA – bem como pela imprensa e comunidade internacional. Nesse sentido, as instruções são pormenorizadas, a fim de ser evitado, ou no mínimo mitigado, qualquer erro de interpretação em relação à posição dos Estados Unidos face à questão açoriana.

O Secretário de Estado, certo de que haverá uma mudança de paradigma, já não fala em termos de presente, mas sim de futuro, afirmando que ”a política norte americana em relação ao futuro estatuto político dos Açores” continua a ser de estrito não envolvimento.

“Nós não defendemos nem nos opomos à independência dos Açores, é um assunto interno de Portugal e deve ser resolvido entre os povos das ilhas e o governo de Lisboa.”135

Kissinger nunca tinha sido, no ano de 1975, tão explícito em relação à posição da administração norte-americana como neste momento.

134 “Washington, 192247, augusto, 13, 1975” www.archives.gov/aad/series-description.jsp.

135 “Washington, 191909, augusto, 13, 1975” www.archives.gov/aad/series-description.jsp. (cf. Apêndice documental, p. 162-164).

64 Do ponto de vista genérico todos os funcionários da administração americana a residirem nos Açores deveriam evitar qualquer ação que pudesse indiciar ou ser interpretada como sendo um reconhecimento a um governo independente dos Açores ou, por outro lado, revelador de apoio à posição portuguesa de se opor à independência.

Kissinger definiu o plano de ação a ser adotado pelos norte-americanos, incluindo os que não pertencessem à administração, instalados em Ponta Delgada, Base das Lajes e Washington nos vários momentos do processo. Assim, quando o movimento para a independência estiver em marcha, adverte para as seguintes medidas a serem tomadas em Washington quanto à navegação aérea e marítima, civil e militar

“As aeronaves militares não devem usar a Base das Lajes ou qualquer outro aeroporto dos Açores, com exceção para os casos de emergência.

- A todas as aeronaves militares que tenham programado usar as Lajes ou qualquer outro aeródromo dos Açores será dado um plano de voo alternativo para evitar o desembarque nas ilhas dos Açores. Todos os aviões privados e comerciais serão informados das condições políticas e aconselhados a não usar nenhum aeroporto dos Açores até outro aviso prévio.

- Será transmitido um aviso marítimo para todos os operadores e navios informando-os das condições políticas nos Açores e aconselhando-os a adiar escalas nas ilhas até novo aviso.

- Será emitido um aviso público para todos os Estados Unidos informando os viajantes da instável condição política dos Açores e aconselhando-os a não viajarem para as ilhas até novo aviso.”

Os departamentos de Estado e de Defesa querem ser informados de todos os pormenores à primeira indicação de implementação da independência. Com o objetivo de garantir que os norte-americanos nas Lajes permaneçam publicamente imparciais

65 relativamente à ação independentista, são fornecidas instruções precisas ao corpo militar e civil ali estacionado.

“O movimento de todo o pessoal dos Estados Unidos da América não essencial será restrito quando começar uma ação com vista à independência; O nosso pessoal que esteja fora da Base na altura (ou porque residem fora da base, estão de passeio, a fazer compras, em turismo, etc) não farão qualquer esforço para regressar à Base, a menos que recebam instruções para isso, uma vez que a própria Base é, provavelmente, o principal alvo da FLA na ilha Terceira. Na medida do possível, o pessoal que reside fora da Base deve manter-se nos bairros. O pessoal na Base ficará restrito à nossa área nas Lajes ou nos bairros, fica à descrição do comandante.

- As estações de rádio e TV da Base transmitirão instruções específicas em relação às restrições sobre os movimentos, áreas de conflito e rígida política de não envolvimento.

- Em caso de ataque, usará dos meios adequados para proteger as instalações ou pessoas.

- Até instruções em contrário, todos os voos militares originários ou que passem pelas Lajes serão cancelados.

- Todo o pessoal, sem exceção, se afastará do lado português e evitará aproximar-se da área onde as hostilidades entre portugueses e a FLA se observem.

- Todo o pessoal irá evitar contacto com a FLA ou autoridades portuguesas e, em caso de necessidade de contacto, evitarão expressar opiniões sobre a questão da independência dos Açores.”

Para o consulado em Ponta Delgada a orientação geral é de “continuar a reiterar a política dos Estados Unidos de não envolvimento na questão da independência” e a primeira recomendação é dirigida aos funcionários locais ao serviço dos norte-

66 americanos. O Secretário de Estado, embora admita que estes possam ter opiniões pessoais favoráveis à independência, devem entender que “qualquer comentário feito por eles em relação a esta questão pode ser mal interpretada como um ponto de vista oficial dos Estados Unidos.”

No caso da concretização da declaração de independência, Kissinger alerta a cônsul para o comportamento que deve adotar

“Tome todas as medidas que considerar adequadas para assegurar a proteção e o não envolvimento do pessoal americano, cidadãos residentes e turistas.

- Se as autoridades portuguesas perderem o controlo efetivo de S. Miguel, reporte qualquer abordagem através de telegramas rápidos. Em nenhuma circunstância deve envolver-se em contacto oficial direto com um governo independente sem instruções específicas do Departamento de Estado, uma vez que tal ação poderia constituir um reconhecimento formal.

Estas instruções precisas e detalhadas sobre o modo como os norte-americanos deveriam agir, em caso de declaração de independência, demonstra não só que a ameaça estava a ser levada muito a sério como também revela a precaução dos agentes da política externa americana para que nenhum interesse futuro dos Estados Unidos pudesse ficar comprometido quer no relacionamento com Portugal quer com países terceiros. Com um comportamento equidistante, não associado a nenhum dos lados em confronto, a administração norte-americana teria total liberdade e legitimidade de ação. Nenhuma outra anunciada situação de rutura terá sido tomada tão a sério.