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3. A QUESTÃO AGRÁRIA NO PARANÁ E O DESENVOLVIMENTO DO MST

3.4. As lutas nos campos paranaenses a partir da década de 90

A década de 90 foi marcada por um crescente número de violências contra trabalhadores rurais sem terra no Estado do Paraná. Entre 1991 e 1992, posseiros que viviam nas proximidades do município de Pinhão, região centro oeste do Estado, em ocupações que haviam se iniciado há mais de uma centena de anos, passaram a ser atacados por pistoleiros da milícia armada da Madeireira Zattar. A intenção era forçar os posseiros a abandonar a área, em favor da madeireira. Esse grupo paramilitar aterrorizou a região, efetuando ataques às crianças nas escolas, aos assentamentos, prendendo os posseiros, queimando as casas, ameaçando e matando os trabalhadores, inclusive crianças. Esse tipo de violência foi uma constante na vida destas famílias de posseiros ao longo de toda a década de 90, sem uma intervenção efetiva das autoridades competentes a fim de coíbi-los49.

Em 1991, 400 famílias sem terra ocuparam uma área da Fazenda Santana, no município de Campo Bonito, região Oeste do Paraná, a 50 km de Cascavel. A Fazenda era de “propriedade” do grupo Agroindustrial Beledelli que, segundo Villalobos (2001, p.15), “apossou-se das terras da União, localizadas na faixa de fronteira”. Num acordo mediado pela Assembléia Legislativa do Paraná entre os empresários e os ocupantes, a empresa se comprometeu em doar uma parcela das terras para a criação de um assentamento, obtendo em contrapartida a regularização da outra parte da propriedade. Entre 1991 e 1992 foram assentadas cerca de 250 famílias.

Em 03 de março de 1993, as 150 famílias restantes, que há aproximadamente dois anos aguardavam a desapropriação da área para o assentamento, reocuparam a fazenda, na tentativa de agilizar a desapropriação. Neste mesmo dia, no início da tarde, três policiais à paisana, integrantes da polícia secreta (P2), foram até o acampamento, a fim de obter informações, papel que, de acordo com Villalobos (op.cit), não é da polícia militar e sim da polícia civil. Temendo que fossem pistoleiros, os sem terra decidiram revistá-los. Ao se aproximarem, dois sem terra foram dominados sob a mira de armas de fogo. Nestas circunstâncias, iniciou-se um tiroteio “provocado pelas tensões e a negligência dos policiais que estavam vestidos à paisana” (Villalobos, 2001, p. 15), que resultou na morte dos três

49 Maiores detalhes sobre esse e outros casos de violência na década de 90 no Estado do Paraná, estão

policiais e alterou todo o curso do que deveria ser um ato de resistência pela reivindicação de um direito legítimo.

A partir de então, iniciou-se uma gigantesca operação militar cercando o acampamento. Todas as rodovias que davam acesso ao município foram controladas pela polícia militar. Helicópteros sobrevoavam o local. No dia seguinte, 4 de março, Lourival Castilhos, um dos sem terra que estava presente na ocasião do tiroteio, se entregou ao Capitão Valdir Cumpetti Neves que, ao invés de apresentá-lo ao delegado, seqüestrou-o para uma sessão de interrogatório a fim de que entregasse os outros sem terra que participaram dos fatos. Para tanto, utilizou como instrumento espancamento, choque elétrico, afogamento e ameaça de morte. O mesmo procedimento foi realizado com outros seis sem terra. No dia seguinte foram presos 150 homens sem terra.

A polícia intensificou a caçada por Diniz Bento Teixeira da Silva, conhecido como Teixeirinha, uma das lideranças dos agricultores. Segundo Villalobos (2001, p. 16), desde que soube “que havia sido decretada pena de morte contra ele”, Teixeirinha se escondeu num buraco próximo ao acampamento. Teixeirinha decidiu se entregar depois da notícia de que seu filho de 13 anos havia sido preso e torturado. Entregou-se, foi preso e espancado diante das câmeras de televisão e diante de mais de 20 testemunhas. Em seguida foi levado para a sua roça e executado com cinco tiros, sendo dois nos joelhos – evidência de tortura – um tiro no abdômen e dois na cabeça. Na versão da polícia, a execução foi uma reação desencadeada pela tentativa de Teixeirinha em fugir do cerco policial.

O “caso Teixeirinha”, como ficou conhecido, ganhou repercussão nacional e internacional, pela natureza política da execução, evidenciado na “caçada” de cinco dias, cujo desfecho foi o esperado. O então Secretário de Assuntos Fundiários do Governo Estadual pediu exoneração do cargo por meio de uma carta acusando o governo do Estado, na época Roberto Requião (1991-1994), de conivência com a ação policial: “V. Excia. é o responsável, ainda que indireto, pela execução sumária do companheiro ‘Teixeirinha’, pela reedição da tortura, pelo desencadear da repressão militar sobre aqueles que lutam contra a opressão e, por último, mas não finalmente, por ter dado a chave (a ordem) para que os quartéis esparramassem o terror contra o povo”. (In: Villalobos, 2001, anexos, p.22).

Passados oito anos, em 2001, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, órgão da OEA (Organização dos Estados da América), considerou a execução uma atitude de

retaliação pela morte dos policiais e, segundo Ferreira (2002), condenou o Estado brasileiro pelo encobrimento dos fatos e das investigações. Essa foi a primeira vez que um organismo internacional reconheceu um crime de grave violação aos direitos humanos contra o MST. Passados mais três anos, em 2004, numa decisão histórica, os juízes da Terceira Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Paraná, condenaram o Estado a pagar uma indenização por danos morais e materiais à esposa e ao filho de Teixeirinha.

O “caso Teixeirinha” marcou com sangue o primeiro mandato do governo Requião50. Um caso de gravidade sem precedentes na história recente do Paraná, sobretudo pela premeditação, pelos requintes de crueldade, por colocar os agentes do Estado deliberadamente em posição de uma milícia privada, ou seja, em retaliação a um fato provocado, em última análise, por uma intervenção indevida da polícia secreta, quando na verdade o papel do Estado deveria ser o de garantir aos trabalhadores a realização do acordo de assentamento por ele afiançado. Esse foi um caso isolado dentro do governo Requião. Com o fim deste governo, Jaime Lerner foi eleito governador e, a partir do seu primeiro ano de mandato, 1995, a violação de direitos humanos no campo passou a acontecer de forma sistemática, tornando-se um método de ação.

No dia 08 de novembro de 1995, no município de Santa Isabel do Ivaí, norte do Estado, conforme dados da CPT e MST51, ocorreu o “projeto piloto” a partir do qual se desenvolveriam as “táticas de guerra” para as desocupações das fazendas ocupadas por sem terras. A Fazenda Saudade era uma área desapropriada para a reforma agrária, com 1.022 hectares. No entanto, sem mandado judicial, 90 policiais invadiram a área e despejaram aproximadamente 30 famílias, queimando os barracos, utilizando bombas de gás lacrimogêneo e tiros nas pernas e pés dos trabalhadores, o que levou Pedro Lopes dos Santos, de 54 anos, a amputar a perna esquerda em virtude de ferimentos à bala e espancamento.

O governo do Estado prometeu uma solução para aquelas famílias. Passados dois anos sem a prometida solução, 46 famílias reocuparam essa fazenda, em fevereiro de 1997. Em setembro do mesmo ano, cerca de 80 homens encapuzados e armados com fuzis, escopetas,

50 Roberto Requião governou o Paraná de 1991-1994. Em 2003 assumiu pela segunda vez o governo do Estado,

com uma postura política bastante diferenciada, pautada no diálogo e negociação com os movimentos sociais, sobretudo com o MST.

51 Esse caso está relatado no documento elaborado pela CPT e MST, dentre outras entidades de apoio a reforma

metralhadoras e coletes à prova de bala, invadiram a fazenda, dizendo que estavam procurando as lideranças do MST. Queimaram todos os barracos, inclusive um carro que estava no local, espancaram as lideranças e atiraram aleatoriamente contra todo o acampamento. Posteriormente, os sem terra foram à delegacia para registrar a ocorrência. Entretanto, o delegado se recusou a registrá-la. Esta atitude revelava os primeiros indícios de uma posição política de intensificação do vínculo entre governo estadual e latifundiários, grande parte deles organizado na UDR.

A União Democrática Ruralista surgiu quando os latifundiários, alarmados com o crescimento do MST em todo o país, decidiram se unir e criar uma organização que exercesse pressão política junto às instâncias do poder legislativo, representados pela bancada ruralista no Congresso Nacional, e que ao mesmo tempo atuassem para impedir o avanço do MST por meio de força militar paralela ao Estado, as milícias armadas. Partindo desse pressuposto, reuniram-se em 24 de julho de 1985, no município de Santa Maria, Rio Grande do Sul, cerca de 800 fazendeiros que, segundo Branford e Rocha (2004, p. 59), decidiram criar sua própria organização alegando que o governo “relutava em usar a força para desalojar as famílias” e que os obrigava a criar uma organização “para cuidar das expulsões”. De acordo com Bernardo Mançano Fernandes (1999a, p.93), a organização foi composta “por fazendeiros muito atrasados do setor pecuarista e contrários à reforma agrária”.

O nascimento da UDR contou também com o apoio de setores como a TFP – Tradição Família e Propriedade, organização político-religiosa de extrema direita que impulsionou e sediou este encontro. Nas palavras de Oliveira (2004), esse “é o pêndulo da violência: se a polícia age contra os sem terra, os fazendeiros se abstêm. Se o governo não age com violência, as milícias reaparecem”. (Oliveira, op.cit., p. 58).

No governo de Jaime Lerner, iniciou-se um movimento um tanto diferenciado, ou seja, a UDR e o governo deixaram de agir de forma isolada, como coloca Oliveira, e passaram a agir em conluio. A UDR esteve à frente dos confrontos contra os sem terra, em nível institucional – exercendo pressão política não apenas no poder legislativo, mas nas instâncias relacionadas à Secretaria de Segurança Pública do governo do Estado, respingando também sua influência sobre o poder judiciário (como demonstram os relatos que trabalharemos ao longo deste capítulo) – e também atuando diretamente com sua polícia privada, treinada para realizar despejos, torturas, assassinatos e seqüestros de trabalhadores rurais sem terra.

3.5. A instrumentalização do Estado pelas elites fundiárias: uma operação