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2 CONJUNTO DE ENUNCIADOS PRESCRITIVOS POSITIVADO E DOTADO DE

2.3 As manifestações dos enunciados prescritivos: regras e princípios

198 KELSEN, 1998a, p. 62-63. 199 NINO, [s.d.], p. 87. 200 FERRAZ JUNIOR, 2001, p. 113. 201 VILANOVA, 2005, p. 39. 202 CARVALHO, 2007, p. 111. 203 ABBAGNANO, 2000, p. 716.

Alicerçados na lição de que as normas não se confundem com o texto do direito positivo e que são construídas a partir da análise deste, portanto, do conjunto de enunciados prescritivos204, cabe agora direcionar nossa atenção para as diferentes manifestações de enunciados do direito positivo.

Os enunciados prescritivos do direito não são idênticos. Apesar das características em comum, manifestam-se de distintas formas.

Hans Kelsen classifica os enunciados prescritivos (a que chama de normas) em autônomos e não-autônomos. Para ele, são autônomos aqueles que ligam uma ação a uma sanção (como os de direito penal, que prevêem a conduta e a sanção), e não-autônomos os que requerem conexão com outros para terem sentido205. Contudo, mesmo prevendo ação e sanção específica, um único enunciado prescritivo não é autônomo para, por si só, viabilizar a construção de uma norma, quer para que se conhecer previamente os efeitos de uma conduta e então optar pela maneira de agir (ativa ou passivamente), quer para aplicá-la ao caso concreto.

Como assevera Paulo de Barros Carvalho, o direito é uno e indecomponível. Seus enunciados estão intimamente interligados, não subsistindo isoladamente. Sua compreensão prescinde do conjunto.206 Daí a dificuldade em compreendê-los como

autônomos, e a conclusão do próprio Kelsen de que a produção do enunciado

descritivo se dará pela análise do conjunto, pela íntima relação dos enunciados.

Gregorio Robles Morchon observa a evolução da obra de Kelsen, afirmando que, na segunda edição da Teoria Pura do Direito, ele conclui que um enunciado prescritivo nem sempre tem por objeto regular um comportamento, mas simplesmente expressar como algo deve ser ou acontecer, perdendo importância a existência ou não de sanção. Essa seria a razão de classificá-los em autônomos (completos) e heterônomos (incompletos), mas conclui afirmando que a distinção é infrutífera, porque uma “norma” sempre dependerá de “construção”, resultando,

204 COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Teoria geral do tributo, da interpretação e da exoneração tributária. 3. ed. São Paulo: Dialética, 2003, p. 71-74.

205 KELSEN, 1998b, p. 60-62. 206 CARAVALHO, 2007, p. 14.

conseqüentemente, na insuficiência de enunciados prescritivos analisados de maneira isolada.207

Como conjunto, os enunciados prescritivos são extremamente ricos em diferenças nas suas manifestações. Contudo, cremos que podem ser classificados tomando por evidência o fato de se manifestarem como “regras” ou “princípios”.

Humberto Ávila define princípios como enunciados prescritivos que estabelecem uma finalidade, um estado ideal de coisas a ser alcançado através dos comportamentos aptos a viabilizá-lo. As regras, por sua vez, são enunciados prescritivos compostos pela descrição de um comportamento (e não de uma finalidade), que estabelecem como obrigatório, permitido ou proibido.208

Herbert Hart leciona que os princípios são caracterizados pelo fato de serem abrangentes (pois sob seu manto podem estar várias regras, ou seja, não descrevem uma única situação específica), impondo finalidades (aptas a justificarem as regras ou lhes ampararem como fundamento lógico) a serem alcançadas, mas “não” de maneira, necessariamente, “conclusiva” (isto é, admitem serem sopesados para aplicação conjunta com outros princípios diante de casos concretos).209

José de Oliveira Ascensão aponta que os princípios podem se referir ao ordenamento jurídico e não somente a casos específicos como as regras e, ainda, que a finalidade não é meramente sugestiva, mas dotada de caráter coercitivo.210

O critério decisório constituído pela regra é mais específico, por força da riqueza descritiva, identificadora dos pressupostos à aplicação, ao passo que nos princípios é mais abrangente por fixar parâmetro ao alcance de determinada finalidade.211

207 ROBLES MORCHÓN, 1999, p. 166 e p. 170.

208 ÁVILA, Humberto. Sistema constitucional tributário: de acordo com a Emenda Constitucional n. 51, de 14.02.2006. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 38 e p. 40.

209 HART, Helbert L.A. O conceito de direito. 3. ed. com Pós-escrito editado por Penélope A. Bulloch e Joseph Raz. Tradução de A. Ribeiro Mendes. Lisboa: Calouste Gulbenkian, p. 321-325.

210 ASCENSÃO, 2001, p. 435-436.

211 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 5. ed. Coimbra: Almedina, 2002, p. 1239.

Diante desse caráter geral dos princípios, sua aplicação requer “densificação”

212, isto é, ser reduzido a regra pelos destinatários, seja para o legislador (como o

princípio da legalidade tributária previsto no art. 150, I, da Constituição da República Federativa do Brasil, que lhe impõe o dever de descrever em lei os critérios objetivos necessários à verificação da materialidade, da incidência tributária, para que sirvam de guia à aplicação da lei pelas autoridades administrativas), seja para o aplicador (tal como no caso do princípio da legalidade previsto pelo art. 37 da Constituição, que impõe as autoridades administrativas o dever de aplicar a lei, observando os critérios objetivos que dela constarem), seja, ainda, para a comunidade, como o princípio da boa-fé, previsto no art. 113 do Código Civil, pelo qual ao vender um automóvel, por exemplo, deverá ser informado ao adquirente que o mesmo já sofreu uma colisão ou que possui um problema no sistema elétrico, evitando que a omissão dessa informação não cause lesão a direito do adquirente.

Adotando essa distinção baseada nas diferenças de manifestação dos enunciados do direito, forma-se a classe dos princípios e das regras. No primeiro caso, o enunciado prescritivo é expresso de maneira mais abrangente, apontando uma finalidade a ser alcançada na produção do direito e que não obsta a sua aplicação conjunta para concretizar outras finalidades. No segundo caso, nas regras, os enunciados prescritivos são expressos de maneira mais específica, com linguagem descritiva que retrata determinada ação (positiva ou negativa), objeto ou pessoa, aos quais confere efeito jurídico determinado de maneira obrigatória, permissiva ou proibitiva.

Essa distinção é de extrema importância para a interpretação do direito, no que tange à construção das normas jurídicas, pois permite identificar que existem finalidades diferentes a serem alcançadas conforme o tipo de conduta, definição de objeto ou procedimento a ser regido pelo direito, requerendo, necessariamente, tratamento distinto à produção do direito, o que, conseqüentemente, norteará sua compreensão e aplicação.

212 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de direito constitucional. 32. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 393-394.