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2 CONJUNTO DE ENUNCIADOS PRESCRITIVOS POSITIVADO E DOTADO DE

2.1 A linguagem do direito positivo e sua importância

2.1.1 Os enunciados do direito positivo (enunciado-enunciado e enunciação-

No tópico anterior, vimos que a linguagem do direito tem a função de reger a conduta humana, ou seja, função “prescritiva”.

Essa função é manifestada através de enunciados, de frases, orações que dispõem de maneira objetiva (portanto, identificáveis e compreensíveis) como a conduta humana é regida, isto é, como os homens deverão agir. Daí a lição de Norberto Bobbio, que explica ser o enunciado “a forma gramatical e lingüística pela qual um significado é expresso”.151

O direito cria condutas, pessoas ou objetos que serão qualificados como jurídicos, e também fixa os efeitos que decorrerão de sua concretização no mundo dos fatos, isto é, ao descrevê-las através de enunciados positivos, o direito lhes confere importância jurídica, relacionando-as a efeitos específicos por ele definido dentre as hipóteses possíveis no momento da positivação. Esse ato de criação constitui uma enunciação, que pode corresponder a um processo legislativo, à redação de um contrato ou à lavratura de uma decisão.152

Gregorio Robles Morchon exemplifica esse ato de criação do direito aduzindo que um homicídio só ganha importância ou relevância jurídica depois que houver um texto de direito definindo o que é “homicídio”, assim como só considera relevante um fato concreto correspondente à morte de uma pessoa como efetivamente ocorrido após a descrição em linguagem competente (como, por exemplo, pela lavratura de um atestado de óbito).153

151 BOBBIO, 1998, p. 73.

152 ALCHOURRÓN; BULYGIN, 2002, p. 57-58, p. 71-72.

153 ROBLES MORCHON, Gregório. O direito como texto: quatro estudos de teoria comunicacional do direito. Tradução Roberto Barbosa Alves. Barueri, SP: Manole, 2005, p. 29-30.

O acontecimento “morte” (manifestação do mundo real, da realidade social) para o direito é um “evento”154 que, relatado como antecedente de um enunciado prescritivo, é transformado em “fato jurídico”. Esse fato será abstrato se meramente previsto hipoteticamente no texto de uma lei, por exemplo, ou concreto se descrito numa sentença em relação a um caso concreto. E, frise-se, jurídico porque tem a força de produzir efeitos no mundo do direito, ou seja, acarretar efeitos jurídicos.155

Esses atos de criação correspondem à enunciação do direito, aos atos praticados com o intuito de enunciar, de produzir enunciados prescritivos (estes são produto daquela).156

Como ensina Eurico Marcos Diniz de Santi, a enunciação é o ato de pintar, e o enunciado o quadro pintado. A atividade de legislar é enunciação, enquanto que a lei é o enunciado. O ato de proferir uma sentença é uma enunciação, ao passo que a sentença é o enunciado.157

Os enunciados correspondem ao texto positivado, distinguindo-se das proposições, porque estas são os significados daqueles, ou melhor, nossa compreensão do texto positivado158, nosso juízo acerca dele, assim como a

extensão do mesmo.159

O efeito disso é que uma proposição pode ter enunciados diversos (como no caso de uma frase em idiomas distintos, isto é, a escrita, a forma de expressão é distinta, mas o significado da frase é o mesmo em todos os idiomas). Contudo, um enunciado também pode ter proposições distintas, como, por exemplo, em frases que têm significados diferentes, de acordo com o contexto em que forem manifestadas (por exemplo, uma pessoa, ao sair de uma concessionária de veículos,

154 ARAÚJO. Clarice Von Oertzen de. Fato e evento tributário: uma análise semiótica. In: DE SANTI, Eurico Diniz (Org.) Curso de especialização em direito tributário: estudos analíticos em homenagem a Paulo de Barros Carvalho. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 349.

155 CARVALHO, 1999, p. 111.

156 CARVALHO, 2007, p. 46 e 49. IVO, 2005,p. 129.

157 DE SANTI, Eurico Marcos Diniz. Norma, evento, fato, relação jurídica, fontes e validade do direito. In: DE SANTI, Eurico Diniz (Org.) Curso de especialização em direito tributário: estudos analíticos em homenagem a Paulo de Barros Carvalho. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 28.

158 BOBBIO, 1998, p. 73. 159 ALVES, 2002, p. 204.

afirma: “comprei um carro”. A interpretação do significado no contexto natural pode ser “comprou um carro”, mas no contexto do direito a proposição ou significado pode ser “recebeu a posse do veículo em função de um contrato de leasing”, isto é, ainda “não comprou”).160

A análise do direito positivo demonstra que ele é composto por enunciados que têm por significado uma conduta, um agir, um fazer ou não-fazer, ou mesmo a forma de conceber determinado objeto ou sujeito (exemplo: o que é “renda”, quem é “capaz”). Tais significados positivados são chamados “enunciados enunciados”.161

Também é verdade que os textos de direito positivo contém enunciados que são “enunciação-enunciada”162. A enunciação consiste na produção de enunciado, na atividade desenvolvida cujo resultado é o enunciado. Sua importância decorre do fato de que, através da enunciação-enunciada, é retratada a produção dos enunciados, permitindo verificar se ela observou ou não as normas que regem a produção do direito163, notadamente se foi produzida pela pessoa a quem o direito

outorgou aptidão e com o observância do procedimento previsto para tanto.164

Esse retrato da enunciação, que permite sua reconstrução, é realizado a partir das evidências identificáveis no texto analisado. Essas evidências formam a “enunciação-enunciada”, através da qual se identifica a forma de manifestação do direito (se é uma lei, contrato ou decisão) e, conseqüentemente, o procedimento observado para criá-lo (se contratual, legislativo ou judicial), quem o criou, bem como dados quanto a sua concretização, no que tange ao espaço (onde) e tempo (quando). A enunciação-enunciada contém alguns elementos que permitem verificar a aplicabilidade ou não do enunciado ou conjunto de enunciados que foram

160 BOBBIO, 1998, p. 73. CARVALHO, 2007, p. 114.

161 MOUSSALEM, Tárek Moysés. Fontes do direito tributário. São Paulo: Max Limonad, 2001, p. 159 e p. 170.

162 José Luiz Fiorin leciona que a análise do texto permite a identificação de “dois conjuntos no texto- objeto: a enunciação-enunciada, que é o conjunto das marcas, identificáveis no texto, que remetem à instância da enunciação; e o enunciado enunciado, que é a seqüência enunciada desprovida de marcas da enunciação” (FIORIN, José Luiz. As astúcias da enunciação: as categorias de pessoa, espaço e tempo. 2. ed. São Paulo: Ática, 2002, p. 36).

163 Ibid., p. 31.

introduzidos pelo instrumento que os contém, como uma lei, um contrato ou uma decisão.165

A enunciação-enunciada é formada pelas marcas da enunciação expressas no texto, que conduzem à produção do direito.166

O procedimento permite verificar se o enunciado foi posto após discussão político-ideológica (notadamente no caso daqueles que decorrem de processo legislativo), se foi posto pelas partes em conjunto, ou pela adesão de uma delas, ou mesmo imposto por determinada pessoa.

A reconstrução da enunciação é baseada na análise interna e externa do texto. No plano interno, se dá pela verificação das evidências do procedimento de enunciação que ficaram registradas como marcas, como, por exemplo, a denominação “Emenda Constitucional” ou “contrato de prestação de serviços”. No plano externo, a reconstrução é realizada a partir da contextualização do texto positivo com os demais, como pela Constituição que dispõe sobre a produção de “emendas constitucionais”.167

Após a conclusão da enunciação, surgindo os enunciados com requisitos que o próprio direito lhes impõe, é que se obtém a criação do direito. Até esse momento não haverá direito, pois somente a partir desse instante é que ele é perceptível objetivamente, materialmente. A existência de enunciados do direito tem como pressuposto a enunciação, o procedimento que culminou no surgimento dos enunciados.168

O cotejo dos elementos internos com os externos permitirá verificar a legitimidade dos enunciados, do produto da enunciação no âmbito da integração do direito tributário interno com o direito tributário internacional, mas essa matéria será analisada posteriormente.

165 BARROS, Teoria semiótica do texto, p. 86. 166 DE SANTI, 2005, p. 29.