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5 OS PROBLEMAS GERADOS NO ACOPLAMENTO DO DIREITO

5.2 Os tratados são classificáveis como “leis internas”?

Outra questão relacionada à do tópico anterior, porém dele distinta, é a que diz respeito à classificação dos tratados dentre as formas de introdução de novos enunciados prescritivos no direito.

Como visto, são enunciados prescritivos constantes de ordens jurídicas distintas, criados em diferentes esferas, por pessoas, processo de produção, modificação e extinção igualmente díspares. Ou seja, a enunciação é diferente, assim como o produto dela decorrente. No entanto, a doutrina vê a questão de maneira distinta.

Roque Antonio Carrazza expõe que os tratados são inseridos na ordem interna através de decretos legislativos que não possuem supremacia em relação a leis federais, estaduais, distritais e municipais. Expõe que são introduzidos no ordenamento jurídico pátrio pelo reconhecimento dado pelo decreto legislativo, numa posição igualitária ao direito interno infraconstitucional.423

Cecília Hamati expõe que essa equiparação implica uma redução da competência da República Federativa do Brasil, que é a pessoa jurídica de direito internacional, bem como a pessoa jurídica de direito interno, pois requer concebê-la como mera executora de competência de um único ente da federação.424

Diva Malerbi expõe que os tratados seriam classificáveis hierarquicamente como leis nacionais. Porém, tendo caráter especial, detêm prevalência à aplicação, inclusive diante de leis internas e gerais posteriores.425

Alberto Xavier e Flávia Piovesan apontam que, na análise do Recurso Extraordinário n. 80.004 (em litígio envolvendo matéria de títulos de crédito e não a seara tributária), o Supremo Tribunal Federal equiparou os tratados à legislação interna, ao dispor que a legislação interna posterior modifica o direito decorrente dos tratados. Eles afirmam que essa posição incorreu em equívoco, porque o tratado prevê regras específicas à sua produção, modificação e extinção. Além disso, é produzido pela República Federativa do Brasil, e não pelos entes que a compõem (União, Estados-membros, Distrito Federal e Municípios). Logo, somente a República pode extingui-lo.426

Esse equívoco também é apontado por Heleno Taveira Tôrres, em função da inexistência de enunciados prescritivos que imponham a igualdade dos tratados em face da legislação interna, nem que disponham especificamente sobre as situações dotadas de elementos de estraneidade, deixando ao direito internacional a função de

423 CARRAZZA, [s.d.], p. 186. CARRAZZA, 2002, p. 202.

424 HAMATI, Cecília Maria Marcondes. Tributação no Mercosul. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais e Centro de Extensão Universitária, 2002, p. 277.

425 MALERBI, Diva. Tributação no Mercosul. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais e Centro de Extensão Universitária, 2002, p. 79.

regê-las, notadamente porque é aplicável aos Estados que produziram este direito.427

Com essa decisão o Supremo Tribunal Federal retrocedeu, pois havia decidido em sentido contrário, no sentido de que as leis internas não teriam o condão de afastar os tratados internacionais.428

José Augusto Delgado traz à baila lições de Philadelpho de Azevedo para expor que os tratados têm normas próprias que regem sua extinção, o que normalmente ocorre pela denúncia, acarretando óbice a essa equiparação.429

Defendendo a teoria monista, Alberto Xavier aduz que há superioridade dos tratados em relação à lei interna em função do art. 5º, par. 2º da CRFB, que prevê a recepção plena dos tratados, que devem ser vistos como um princípio geral, abrangendo inclusive matéria tributária. Afirma ainda que os tribunais aplicam os tratados como tal, e não como leis internas, que a celebração e a extinção competem ao Presidente da República, que o CTN prevê sua prevalência em relação à legislação interna, e, por fim, que os Decretos legislativo e presidencial não transformam o tratado em lei, mas viabilizam sua aplicação.430

O art. 5º, par. 2º da CRFB expressa que os direitos e garantias expressos na Constituição não excluem outros decorrentes de tratados de que a República Federativa do Brasil faça parte. Em que pese o máximo respeito pelas opiniões em contrário, o direito requer a compreensão do conjunto de enunciados prescritivos à sua interpretação, e, notadamente em matéria tributária, não há previsão de recepção plena. Pelo contrário, a Constituição é nítida em impor a recepção dos tratados como condição à sua aplicação no plano interno (art. 84, VIII, c/c 49, I, da CRFB).

Há, portanto, uma razão lógico-deôntica, fundada em enunciados prescritivos que compõem o próprio texto constitucional, impondo a recepção para reconhecer a

426 XAVIER, 2004, p. 118 e 119. PIOVESAN, 2002, p. 84. 427 TÔRRES, 2001, p. 571-572 e p. 575.

428 PIOVESAN, op. cit., p. 85.

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aplicação dos tratados no plano interno, visto que não é a mera inserção do tratado no direito internacional que impõe sua aplicação. É preciso, ainda, que haja reconhecimento prévio pelo direito interno.

O próprio Alberto Xavier concorda que os tratados são inseridos no ordenamento jurídico pátrio pelo mesmo procedimento, tratem ou não de matéria tributária.431 Ademais, ao cientista cabe descrever o direito, a forma pela qual ele foi positivado, objetivado, atentando para as evidências que estabelece em relação ao direito interno.

Ciente dessas evidências, Heleno Taveira Tôrres expõe que a Constituição prevê a dualidade de ordens, permitindo tão somente a aplicação dos tratados no âmbito interno. Portanto, não os equipara à legislação interna. Se os equiparasse, prevendo a mesma natureza jurídica, não haveria razão de prever a declaração de inconstitucionalidade de tratado ou de lei (art. 102, III, “b”, da CRFB). Diga-se o mesmo em relação à decisão que contrariar ou negar vigência a tratado ou à lei federal (art. 105, III, “a”, da CRFB), ou às competências exclusivas para tratar de matérias envolvendo litígios fundados em tratados (art. 109, III, da CRFB). Tais previsões demarcam a distinção do tratado em relação a leis internas. Em contrário, bastaria a previsão em relação à “lei”.432

Os enunciados prescritivos constitucionais que demonstram a existência de uma prevalência de aplicação dos tratados em vez da legislação interna (como os arts. 5º, par. 2º, 105, III, “a”, e 102, III, “b”, da CRFB, e 98 do CTN) não modificam seu processo de enunciação, sua produção, nem os equipara a lei, mas apenas demonstra o seu caráter especial, impondo uma relação de conexão, com a subordinação da legislação interna aos tratados.

Ademais, a legislação interna se subordina aos tratados porque eles são produzidos em conjunto com outros Estados (pessoas jurídicas de direito internacional) para reger fatos vinculados aos respectivos ordenamentos jurídicos

430 XAVIER, 2004, p. 119-120. 431 XAVIER, 2004, p. 126. 432 TÔRRES, 2004, p. 577.

internos, em prol do estabelecimento da igualdade de tratamento tributário às pessoas e objetos relacionados a fatos que transcendem um único território.433

O art. 102, III, “b”, da CRFB apenas aponta que os tratados, tal como as leis pátrias, não se sobrepõem à Constituição (que estabelece a ordem jurídica da República Federativa do Brasil e não da “União”), com a diferença que de eles são específicos em reger a produção das leis internas, mas não os tratados.

A conseqüência é que os tratados internacionais em matéria tributária não são classificáveis como leis internas, pois diferem tanto no que tange ao processo de enunciação (produção, o que abrange a pessoa apta a produzi-lo), quando no conteúdo, pois regem diretamente relações entre Estados.