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Capítulo 3: Espalhando as sementes: metodologias de trabalho

3.2 As narrativas

Procurando realizar as tessituras metodológicas de nossa pesquisa, somos inspiradas pelas leituras das obras de Walter Benjamin no que concerne às narrativas de histórias de vida dos sujeitos praticantes do cotidiano do acampamento Elizabeth Teixeira. Essas narrativas nos permitem conhecer nas lutas cotidianas as artes de fazer desses sujeitos. Porém, quando trabalhamos narrativas na perspectiva de Benjamin, alguns questionamentos são levantados: O que são narrativas benjaminianas? O que são narrativas para Benjamin?

No texto Experiências e Pobreza, Benjamin (1994), relata a experiência de um pai que, em seu leito de morte, compartilha com os filhos a experiência de obter riqueza a partir do trabalho nos vinhedos da família e não das barras de ouro que, na lógica dos filhos, poderiam estar enterradas naqueles vinhedos. Para Benjamin, a narrativa experienciável, assim como a arte de ouvir e, principalmente, aqueles que possuem experiências para contar podem estar rareando na vida moderna e capitalista que vivemos.

Em sua obra O Narrador, Benjamin (1983 [1936]) apropria-se de aspectos das tradições narrativas gregas e judaicas (LAGE, 2007), delineando o perfil de uma figura que

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é protagonista de uma arte considerada por ele em via de extinção: a arte de contar histórias.

[...] a arte de narrar caminha para o fim. Torna-se cada vez mais raro o encontro com pessoas que sabem narrar alguma coisa direito. É cada vez mais frequente espalhar-se em volta o embaraço quando se anuncia o desejo de ouvir uma história. É como se uma faculdade, que nos parecia inalienável, a mais garantida entre as coisas seguras, nos fosse retirada. Ou seja: a de trocar experiências. (BENJAMIN, 1983, p. 59)

Entretanto, é um engano pensarmos que Benjamin está lamentando e criticando o fim da narrativa como um todo, pois o que ele lamenta é o fim das narrativas coletivas, aquelas que em suas “brechas” permitem que outros sujeitos entrem e compartilhem suas experiências. Para ele, o narrador é aquele que possui a capacidade de intercambiar as experiências, carregando coisas não conscientes.

O típico narrador para Benjamin tem duas características básicas: sábio e justo, assim como o narrador da tradição judaica (LAGE, 2007). Esse narrador de quem ele lamenta o desaparecimento é um “misto de sábio e santo e de homem comum que sabe contar uma história que serve para ajudar alguém, como um conselho” (idem: 127). Esse narrador tradicional, para Benjamin, precisa nutrir suas narrativas de “influxos psíquicos afins à melancolia” (ibidem), pois ele precisa contar e recontar suas histórias.

Se o sono é o ponto mais alto da distensão física, o tédio é o ponto mais alto da distensão psíquica. O tédio é o pássaro de sonho que choca os ovos da experiência. O menor sussurro nas folhagens o assusta. Seus ninhos – as atividades intimamente associadas ao tédio – já se extinguiram na cidade e estão em via de extinção no campo. Com isso, desaparece a comunidade dos ouvintes. Contar histórias sempre foi a arte de contá-las de novo, e ela se perde quando as histórias não são mais conservadas. Ela se perde porque ninguém mais fia ou tece enquanto ouve a história. (BENJAMIN, 1983, p.62)

O ato de narrar é também o ato de rememorar, de buscar na memória imagens do passado. Para Benjamin, esse é um trabalho árduo, como o de um arqueólogo que — no

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esforço da escavação — encontra, no presente, “o lugar exato em que guardar as coisas do passado” (BENJAMIM, 2013, p.101).

Assim, o trabalho da verdadeira recordação deve ser menos o de um relatório, e mais o da indicação exata do lugar onde o investigador se apoderou dessas recordações. Por isso, a verdadeira recordação é rigorosamente épica e rapsódica, deve dar ao mesmo tempo uma imagem daquele que se recorda, do mesmo modo que um bom relatório arqueológico não tem apenas de mencionar os estratos em que foram encontrados os achados, mas, sobretudo os outros, aqueles pelos quais o trabalho teve de passar antes. (BENJAMIN, 2013, p.101)

Buscando uma discussão sobre currículo baseado na ressignificação da própria experiência do cotidiano, na cultura e suas práticas, nas experiências vividas e nas memórias conscientes e inconscientes dos sujeitos, procuramos trabalhar as narrativas benjaminianas utilizando a metodologia das mônadas (PETRUCCI-ROSA et. alli., 2011).

As mônadas podem ser entendidas como pequenos fragmentos de histórias que juntas exibem a capacidade de contar sobre um todo, muito embora esse todo possa também ser contado por um dos seus fragmentos [...] a mônada pode revelar o caráter singular da experiência educativa realizada, sem perder de vista suas articulações com o universo amplo da cultura em que ela está imersa e com o olhar subjetivo do pesquisador. (PETRUCCI-ROSA et. alli., 2011, p. 204-205)

Inspirados na obra Infância em Berlim por Volta de 1900 (1975), em que Benjamin escreve suas memórias de experiências da infância na forma de pequenas historietas chamadas de mônadas, Petrucci-Rosa et al. (2011) as trazem como uma metodologia de pesquisa, em que representam fragmentos de história prenhes de significação e brechas através das quais é possível visualizar aspectos de um tempo e um lugar social aparecendo nas tensões espaço-tempo particular e universal, como explica Galzerani (2002):

No que diz respeito à produção de memórias ou produção de conhecimento histórico em Walter Benjamin, passamos a mergulhar em algumas “mônadas” ou miniaturas de significados – conceito que o pensador, ora focalizado, coloca em ação no diálogo como o físico Leibniz. Tais centelhas de sentido (...) podem ter a

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força de um relâmpago. (GALZERANI apud PETRUCCI-ROSA et al. 2011, p. 204)

Complementada pela citação de Benjamin (1994):

[...] a ideia é mônada – isto significa, em suma, que cada ideia contém a imagem do mundo. A representação da ideia compõe como tarefa, portanto, nada menos que a descrição dessa imagem abreviada do mundo. (BENJAMIN, 1994 apud: PETRUCCI-ROSA et.al. 2011, p.205)

Neste trabalho, trouxemos narrativas de histórias de vida dos moradores do acampamento Elizabeth Teixeira e reconhecemos essas narrativas como mônadas para compor essa colcha de retalhos que buscamos tecer. Acreditamos que as mônadas apresentam a potencialidade das narrativas experienciáveis e se articulam com o universo cultural, histórico e simbólico do narrador, estando sempre sujeitas ao olhar subjetivo do pesquisador (PETRUCCI-ROSA et.al. 2011).

Dessa forma, permeando espaços de discussões junto aos Estudos Culturais e acreditando que a legitimação de conhecimentos também representa uma condição de justiça política e social, pensamos a cultura como um espaço de contestação onde podem estar imbricadas relações de poder. Nesse sentido, pensamos que as narrativas poderão nos ajudar a compreender os hibridismos que surgem dessas inter-relações entre culturas e conhecimentos.