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Capítulo 2. Solo arado, solo fértil: as contribuições de Michel de Certeau para as artes de fazer

2.3 Artes de fazer: táticas e estratégias de um cotidiano ordinário

2.3.1 Os lugares e espaços de Michel de Certeau

Como já destacamos, Certeau faz uma diferenciação entre “lugar” e “espaço”. Procuraremos abordar aqui as formas como ele emprega esse conceito em seus textos e como esse conceito se emprega em nosso trabalho. Para isso, procuraremos também conduzir a discussão com a ideia de “cultura popular”, ou seja, uma cultura ordinária, expressa pelos homens ordinários. Vale lembrar, que Certeau “apaixonou-se” pela cultura brasileira e esteve no Brasil diversas vezes para apresentar seminários e realizar suas pesquisas. No livro A Invenção do Cotidiano 1: artes de fazer, ele apresenta diálogos com culturas ordinárias e, dentre elas, a cultura brasileira.

Utilizando-se de metáforas, Certeau nos envolve em uma esfera de pensamento filosófico e crítico acerca da pluralidade do mundo que habitamos, definindo em suas análises o espaço e o lugar, não como termos opostos, mas sim como dois aspectos de um único tema extremamente complexo: a organização dinâmica de uma sociedade (JOSGRILBERG, 2005).

Certeau sugere a noção de lugar, indicando um “lugar próprio”, organizado por diversos procedimentos estratégicos, ou seja, realizado pelo forte e representando uma vitória sobre o tempo. Dessa forma, dois elementos nunca podem estar na mesma localização, pois se organizam um em referência ao outro, estrategicamente “administrados em relação a uma exterioridade composta de alvos e ameaças” (JOSGRILBERG, 2005, p.50).

Tratando-se dos procedimentos estratégicos, Certeau atribui à escrita um papel fundamental de organização da sociedade Ocidental. Para ele, no mundo ocidental, o que

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antes era regulado por um discurso mítico passou a ser regulado pela prática da mítica da escrita, tornando-se uma prática organizadora, uma máquina de autorre-gulação, como um poder que não pode ser possuído, mas que se exercita (Josgrilberg, 2005). A escrita torna estável — em termos de tempo, posição etc. — a organização dinâmica de uma sociedade; torna passível de leitura o objeto da história que desapareceu e deixou apenas traços do que já foi.

O progresso da máquina escriturística é articulado sobre o que Certeau chama de “perda da Palavra”, “la perte de la Parole” (Certeau, 2012: 203); o discurso (cosmológico) mítico que organizou a sociedade não pode ser mais ouvido. A perda da Palavra revela, então, uma incerteza que problematiza as autoridades que organizam a sociedade: quem está falando, em nome de quem? Quem pode falar? Nessa situação de indeterminação, uma constante partida, um estar em movimento contínuo se faz necessário nesse processo em que a sociedade moderna tenta se redefinir sem “a Palavra”. Desse ponto em diante, o “ser se mede pelo fazer”, escreve Certeau (ibidem). (JOSGRILBERG, 2005, p.51) Quando se trata da cultura popular, Certeau identifica que a ideia de popular está relacionada repetidamente ao “ingênuo, ao natural, à verdade ou ao infantil” (Certeau, 2012, p.83) e aponta a incapacidade do discurso teórico moderno para o tratamento da questão cultural, silenciando a cultura, sobre a qual os analistas querem falar. O discurso teórico acaba obedecendo às suas próprias regras e estratégias, organizando o espaço onde o tempo e as posições dos elementos constituintes são controlados, fabricando, assim, uma chamada “cultura popular”. Portanto, Certeau não apresenta uma solução, mas traz a necessidade de uma ação política e faz uma observação acerca de se “questionar o lugar de onde os pesquisadores falam e o que pode ser dito” (JOSGRILBERG, 2005, p.70).

As táticas (arte do fraco) operam a partir das estratégias (arte do forte) e abrem os chamados “espaços”, ou seja, quando um lugar é submetido à organização complexa e dinâmica quer dizer que esse ele foi praticado e não se dará mais a partir de um lugar próprio, o lugar transforma-se em espaço. É dessa forma que:

As táticas não podem ser pensadas sem um lugar, da mesma forma que fala não pode ser pensada sem língua, ou enunciado sem enunciação. O objetivo da crítica

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de Certeau é um tipo de lugar onde há dissociações, realizadas por operações técnicas, que não leva em consideração as outras práticas que organizam a sociedade ou, em outras palavras, que desconsidera a morte que assombra qualquer organização “estável” e não reconhece a dependência do Outro. A reflexão se aplica a toda organização espacial: disciplinas acadêmicas, nações, grupos marginais, a sociedade etc. Ninguém é autônomo. Todos dependem do Outro. (JOSGRILBERG, 2012, p.71)

Procurando dar ênfase à ausência de um lugar próprio para as táticas e os movimentos cotidianos operarem, complementaremos a reflexão com uma discussão acerca do “lugar praticado”, também chamado de espaço.

A dinâmica de um lugar praticado pode se dar, por exemplo, como faz Certeau, através do ato da leitura. O texto, nesse caso, se constitui num espaço limitado em tamanho e estrutura de forma, que permite uma leitura – ele constitui um lugar. Porém, à medida que o leitor faz o ato da leitura das páginas escritas (lugar), ele produz um movimento somente seu, o tempo não é controlado, e cada leitor tem a liberdade de criar seu espaço de leitura. “Um mundo diferente (o do leitor) se introduz no lugar do autor” (CERTEAU, 2012, p.48). Utilizando a metáfora do “apartamento alugado”, Certeau apresenta as mutações que tornam o texto habitável pelo leitor. Essa metáfora mostra como cada inquilino pode transformar a propriedade do outro, tomando de empréstimo, ou melhor, alugando, um lugar que não é seu — praticando o lugar à sua maneira, transformando o lugar em seu espaço particular de convívio social, inventando e criando uma nova vida ali dentro, totalmente diferente daquela que outro inquilino, que ali habitasse, criaria.

Um último exemplo, também ilustrativo, que Certeau apresenta é a rua. A rua é um lugar fixo e cheio de pontos de referência e limites para os pedestres; porém, cada pedestre traça seu itinerário próprio e transforma as ruas em um lugar praticado, em espaços.

É importante ressaltar que Certeau nunca quis livrar-se dos lugares — e nem poderia. Ele reconhece que alguma forma de organização espacial sempre será necessária, admitindo-as como referências. É por esse motivo que, nessa bricolagem de ideias, ele encontra na criatividade cotidiana um grande desafio: analisar as práticas culturais e cotidianas dos sujeitos comuns, buscando nessas práticas ordinárias novas possibilidades de articulações sociais que possam contribuir, de alguma forma, com a ideia de dar lugar ao outro.

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