• Nenhum resultado encontrado

3. O TEATRO E OS CONTEXTOS DE PRODUÇÃO DOCUMENTAL DOS

3.3 AS ORGANIZAÇÕES TEATRAIS: COMPANHIAS, GRUPOS,

Analisar as organizações teatrais, pelo menos no que tange os conjuntos que formam o campo empírico deste trabalho, é se aproximar de um paradoxo interessante, já que se trata de

chamar atenção para entidades produtoras de documentos que extrapolam o indivíduo, mas que devem ser discutidas como contextos de produção documental em arquivos pessoais.

O teatro, como já dito, é uma arte essencialmente coletiva. Se observados os registros que resultam da criação e produção de espetáculos – ou seja, da principal função desempenhada pelos artistas -, vê-se que eles não trabalham sozinhos. Eles se articulam, geralmente, em grupos ou companhias, com durações mais ou menos longas, mas que consubstanciam circunstâncias específicas de produção documental. Antes de tudo, é preciso salientar que os espetáculos estão subordinados a essas organizações sociais, sendo eles produtos, comumente, lançados como de autoria de tais coletividades. Muitos outros documentos também só podem ser explicados nos fundos dos artistas se levada em consideração estes agrupamentos de múltiplas naturezas jurídicas e formatos, com graus de formalização dos mais distintos e variados.

É o que ocorre, por exemplo, com o arquivo de Fernanda Montenegro-Fernando Torres. O casal, titular do fundo, formou, junto com outros colegas, ou em torno essencialmente deles, empresas responsáveis pelos espetáculos protagonizados pela atriz, e produzidos, pelo ator, nos quais, às vezes, ele também atuava. Ainda que o conjunto não esteja completamente organizado, essas empresas representam classes, que no arranjo preliminar, agrupam a documentação das peças teatrais realizadas, numa classificação que prevê um arranjo multinível, de natureza hierárquica. Algumas destas empresas são: o famoso Teatro dos Sete - ícone de empreendimento do teatro moderno carioca -, a Torres e Britto Produções de Cena LTDA e a Fernando Torres Diversões. O próprio casal tem no interior do fundo, documentos em que eles ocupam as duas pontas de uma contratação de serviço. Como um recibo assinado por Fernando Torres, pelos préstimos de empresário ofertado a uma dessas organizações.

O arquivo de Walter Pinto é ainda mais emblemático desta situação, porque ele é composto, em grande parte, pela documentação da Empresa de Teatro Pinto Ltda., fundada por seu pai, em 1925, e herdada em 1940 (CHIARADIA, 2014). Além de textos teatrais, partituras musicais, programas de espetáculos, há considerável presença de documentos administrativos, como: livro de registro de empregados, fichas cadastrais de girls e bailarinas, faturas de compras de material (como tecidos vindos da França para confecção de figurinos), demonstrativo da conta de lucros e perdas, etc., além de documentos gerados por causas trabalhistas sofridas pela empresa de teatro de revista.

Walter Pinto comandou ainda o Teatro Recreio, edifício que se situava na Praça Tiradentes, no Rio de Janeiro, onde, normalmente, se davam seus espetáculos. De modo que,

no seu arquivo, não se encontram apenas registros das montagens de sua empresa, como também de companhias para os quais ele arrendava o espaço, principalmente, quando estava em turnê – marca característica da administração não só dele, como também de seu pai (CHIARADIA, 2014).

Sendo assim, percebe-se que estes indivíduos que se desdobram em empresas, fundadas em torno de si ou na reunião com demais colegas ou familiares, por vezes, representam ainda edifícios teatrais. Reconhecer tais implicações é essencial para distinguir, em sua inteireza, os contextos de produção e acumulação dos documentos nos arquivos pessoais gerados no âmbito do teatro.

O mesmo ocorre com outro casal de artistas, Maria Della Costa e Sandro Polônio, que juntos, além de criarem o Teatro Popular de Arte, construíram um prédio, em São Paulo, que serviu como sede desse conjunto artístico, e o qual levava o nome da atriz. E ainda que pensado como um abrigo para a sua companhia, lá também ocorreram apresentações de outros conjuntos que resultaram num material presente no arquivo pessoal do casal. Essa documentação, relativa a um exercício de acumulação, diz respeito ao primeiro objetivo de um teatro, enquanto edifício, o de abrigar espetáculos, e às funções de seus detentores, a de gerenciar tais equipamentos culturais. Isso é nítido porque os teatros, mesmo os particulares, dificilmente, abrigam produções ou empreendimentos de um único coletivo ou de uma única empresa.

As funções dos artistas acabam, muitas vezes, se misturando de tal forma com as organizações que eles representam ou atuam que a identificação do contexto arquivístico se torna uma tarefa de extrema complexidade quando se lida com seus arquivos pessoais. É o que reflete parte da descrição do fundo de Aurimar Rocha, ator e dramaturgo:

Grande parte deste arquivo diz respeito a duas funções de Aurimar Rocha que não podem ser separadas: a administração do Teatro de Bolso e o comando de sua companhia de teatro, na qual ele atuou também como diretor e ator, a qual viria a receber diversas denominações ao longo dos anos. Apesar de os espetáculos de Aurimar Rocha não terem se apresentado apenas no Teatro de Bolso, excursionando algumas vezes para São Paulo e cidades do Sul do país, é impossível separar as atividades da companhia de teatro de Aurimar Rocha das atividades desenvolvidas na sua casa de espetáculo. Da mesma forma, o seu papel de autor está diretamente relacionado a essas outras duas dimensões da sua atuação no âmbito do teatro, ainda que algumas de suas peças tenham sido montadas por outros conjuntos teatrais. (FUNARTE, 2016, p. 32-3)

Até aqui foram tratados casos de companhias, que pode parecer implicar, por vezes, numa formalidade maior quanto à estruturação e manutenção de um coletivo, porque se

tratam de organizações com fins comerciais. Porém é preciso mencionar ainda, neste quesito das organizações, os conjuntos amadores. Mesmo que inseridos numa esfera da prática teatral outra, que não corresponde com os objetivos de uma empresa que tem por escopo o entretenimento, muitos deles apresentam documentação similar à descrita até agora; a qual constitui, inclusive, os conjuntos de seus fundadores, diretores e membros. Prova disso é o Arquivo Paschoal Carlos Magno, que guarda grande parte dos documentos produzidos pelo Teatro do Estudante do Brasil, e do Arquivo Labanca, conjunto que reúne, até agora, a maioria da documentação encontrada produzida pelo grupo Os Comediantes, famoso por sua montagem de Vestido de Noiva, de Nelson Rodrigues, em 1943. Citar características da formação desses fundos, quanto à espécie ou tipo documental, seria redundante, porque eles agrupam registros decorrentes das mesmas ações e atividades dos profissionais, inclusive em termos de documentos administrativos.

As observações traçadas até o momento, quanto às organizações teatrais, são consonantes com as considerações de Savona (2004), elaboradas sobre a noção de companhia na tentativa de definição de um registro de autoridade. Segundo ele, se essas, em seu senso de coletividade, caracterizam o teatro, são tais agrupamentos sociais frágeis na atribuição de uma autoria, dada a dificuldade de fixação das mesmas pessoas em torno de um empreendimento, por algum tempo considerável. Seu caráter, quanto à composição de pessoal, é extremamente fluído, já que as companhias, e mesmo os grupos, são marcados por constantes alterações na constituição de suas fichas técnicas. Reflexo disto é o fato de estar nos arquivos pessoais registros de tais organizações sociais, já que, quase nunca, no contexto do século passado, companhias e grupos apresentam seus próprios fundos. Consequência não só do que foi exposto, mas de uma confluência de fatores, que abarcam os próprios modos de produção do teatro e dos problemas que decorrem, por exemplo, da ausência de uma sede9.

Outra questão que incide sobre o tema é a indistinção, sempre apontada quando se trata de arquivos pessoais, quanto às dimensões público e privada da vida humana (HOBBS, 2016). A imbricação dessas esferas, nos arquivos até então observados, é tamanha que chega algumas vezes a atingir a definição do titular do fundo, de modo a resvalar numa discussão em torno do princípio da proveniência. A resposta que visa encontrar a “pessoa legitimamente responsável pela produção, acumulação ou guarda dos documentos” (CARMARGO; BELLOTO, 2013, p. 71), algumas vezes, recaí, por exemplo, sobre um casal, como já

9 O assunto merece e carece de ser estudo com afinco. Porém é possível observar como, no contexto atual,

alguns conjuntos - por exemplo, o Teatro Oficina (SP) e o Grupo Galpão (MG) - apresentam uma preocupação com a preservação da sua documentação de forma sistematizada. Cada um deles tem um espaço próprio de trabalho.

apontado na menção aos títulos de alguns conjuntos utilizados em argumentações anteriores. Os arquivos de Fernanda Montenegro e Fernando Torres ou de Maria Della Costa e Sandro Polônio, e mesmo de Luiz Iglesias e Eva Tudor, são assim denominados porque a documentação presente neles é fruto, quase majoritariamente, de empreendimentos conjuntos, de bases, muitas vezes, familiares. E se é possível falar, ainda que com alguma dificuldade, de carreiras individuais na análise dessas duplas, a produção documental, que constitui seus fundos, não pode ser distinguida em termos da trajetória de uma só pessoa. Nesses três casos, o título do fundo representa, em última instância, uma organização social do trabalho não rara no teatro brasileiro, do passado: um casal formado por uma atriz principal e um empresário de companhia(s).

Se os titulares, enquanto indivíduos, grupos e companhias, ou ainda edifícios teatrais, são produtores de arquivo pessoais, esses conjuntos “extremamente ricos”, apresentam características de “arquivos familiares e arquivos profissionais” (ABBIATECCI, 2009, p. 58, tradução nossa). Deste modo, “a imbricação estreita dos percursos individuais de cada um dos membros da família e de seus itinerários profissionais – notadamente no que concernem os itinerários artísticos – explica que a distinção não seja sempre pertinente” (ABBIATECCI, 2009, p. 58, tradução nossa). E se os exemplos dos casais são extremos, vale lembrar o arquivo de Walter Pinto, que, mesmo em menor grau, apresenta registros oriundos da direção de seu pai quando à frente da empresa legada. Há também o caso do “arquivo composto primordialmente por documentos acumulados em decorrência das atividades de Nicolino e Dante Viggiani como empresários artísticos” (FUNARTE, 2016, p. 172). O empreendimento, passado de pai a filho, tinha como objetivo principal trazer ao Brasil espetáculos internacionais de grande magnitude e fama.

Logo, mesmo que produzidos por pessoas é preciso observar as organizações teatrais na identificação dos contextos de produção documental dos arquivos pessoais produzidos pelos artistas. Porque, por mais estranho que possa parecer, trabalhar com tais conjuntos, sem atenção a esse elemento, é correr o risco de infringir a aplicação interna do princípio da proveniência, ou seja, o respeito à ordem original (DOUGLAS, 2017). “Princípio que, levando em conta as relações estruturais e funcionais que presidem a gênese dos arquivos, garante sua organicidade” (CARMARGO; BELLOTO, 2012, p. 69).

Discutidos até o momento, contextos de produção documental que representam o que Camargo e Goulart (2007, p. 64) tratam enquanto “realidades mais amplas”, porque mais extensas e constantes no tempo, e de dinâmicas mais estáveis, que existem, muito embora de maneira distinta, no teatro, passa-se, agora, a categoria dos eventos.

Documentos relacionados