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3. O TEATRO E OS CONTEXTOS DE PRODUÇÃO DOCUMENTAL DOS

3.4 OS EVENTOS E OS ARQUIVOS PESSOAIS NO TEATRO

Na busca por categorias outras que evidenciassem as origens dos documentos no arquivo pessoal, o evento foi cunhado por Camargo e Goulart (2007, p. 64) como uma “modalidade particular de contextualização, que focaliza as circunstâncias mais próximas e imediatas que justificam o documento, em detrimento daquelas de longo e largo espectro, associadas a fenômenos regulares e duradouros”. Por sua própria natureza, talvez seja o evento a qualidade mais plural dentre as razões que justifiquem a geração de registros no decorrer das trajetórias dos artistas e críticos teatrais. Eles são ainda a saída, enquanto “operação classificatória básica” (CAMARGO; GOULART, 2007, p. 64), para a identificação de toda uma sorte de acontecimentos que pode não se ligar diretamente ao que até aqui foi tratado em termos de funções e organizações enquanto contextos de produção documental.

Existe, neste sentido, uma circunstância de acumulação documental que se não recorrente, característica no âmbito do teatro, e, portanto, emblemática enquanto evento: as viagens de estudo. Entorno delas estão reunidos, inclusive, muitos registros acumulados de acordo com os interesses dos titulares dos arquivos. Durante alguns anos, do século XX, as viagens eram, até mesmo, prêmios conquistados por artistas em virtude de suas participações em festivais. Elas consistem em práticas que objetivavam o aprimoramento intelectual dos mesmos em consequência do contato com obras, personalidades e instituições que eram tidas como referências no Brasil.

Paulo Afonso Grisolli realizou uma dessas viagens quando obteve uma bolsa de estudos no I Festival de Teatro Amador da Guanabara, enquanto diretor do Teatro da BIBSA. O artista ficou na França, entre 1962-1963, tendo estagiado no Théâtre National Populaire, de Jean Vilar, e no Théâtre de la Cité, dirigido por Robert Gilbert e Roger Planchon. De modo que existe em seu arquivo pessoal, uma documentação acumulada sobre esses dois grupos enquanto resultado dessa experiência de Grisolli. A datação do material relativo ao Théâtre de la Cité ultrapassa o período em que ele permaneceu em Paris, indo até 1969. Pois, mesmo de volta, ele continuou recebendo documentos daquela entidade, em virtude das relações estabelecidas durante sua estada francesa.

No exemplo mencionado acima, fica nítido que se o assunto dos documentos marca um interesse do titular, a razão da sua presença no fundo não está vinculada apenas ao tema dos mesmos, porque aponta para um contexto de acumulação documental muito específico da vida do artista enquanto um evento. Desta maneira, a resposta acerca das condições de origem de tais registros, no fundo do qual fazem parte, encontrava-se “fora do conteúdo específico

dos documentos”, nos demais registros que participavam do mesmo contexto de produção, ou seja, no próprio “conjunto dos documentos de arquivo” (CAMARGO, 2002 apud OLIVEIRA, 2012, p. 48-9).

Os eventos, no caso dos arquivos pessoais que formam os acervos teatrais, apresentam tamanha amplitude enquanto contexto de produção documental, que suas fundamentações se dão, em último grau, na própria relação indissociável que a classe artística tem com a sociedade. Um ótimo exemplo do exposto se encontra no interior do fundo Fernanda Montenegro-Fernando Torres. Trata-se dos documentos criados e reunidos em consequência do convite que a atriz recebeu para assumir o comando do Ministério da Cultura, em 1985.

Quanto a esse evento, encontram-se no arquivo do casal, documentos das mais variadas espécies e de diferentes fases de preparação e circulação. A carta de recusa da atriz, endereçada a José Aparecido de Oliveira, está presente enquanto rascunhos e minutas, assim como em forma de notícia, quando já publicada na imprensa. Há ainda a correspondência emitida por remetentes de diversas categorias, a qual trazia as expectativas geradas em torno do aceite de Fernanda Montenegro. Não só colegas lhe enviaram suas opiniões, e depois congratulações pela decisão tomada, mas também o público em geral, alguns políticos, e representantes de entidades de classe e do governo de vários cantos do país. É interessante, o bilhete enviado pelo crítico Yan Michalski: “Como espectador, fã e amigo, eu estava torcendo para que você tomasse a decisão que tomou. Como homem de teatro, tenho a sensação de que graças a você, todos nós ganhamos pontos e saímos valorizados deste episódio. Com carinho e admiração, Yan.”10

Quanto à participação na política de forma direta, é possível mencionar novamente o caso de Paschoal Carlos Magno. Além de ele ter desempenhado a função de vereador na capital do Rio de Janeiro, pela UDN, em 1950, o intelectual concorreu, pelo mesmo partido, para o cargo de deputado federal, em 1954. Não sendo eleito, sua candidatura corresponde a um evento em torno do qual se reúnem registros originários dessa tentativa.

No interior do arquivo de um dos atores mais polêmicos que o Brasil já teve, o ator Jaime Costa, há um contexto de produção documental, que se encaixa na categoria de eventos, embora seja bastante peculiar. Corresponde a umas das contendas que o ator travou, publicamente, nos anos 1940. Quase no final da década, o artista empenhou uma campanha para questionar a Ordem Nacional do Cruzeiro do Sul concedida a atriz Henriette Morineau, de origem francesa. Para ele, Morineau em nada contribuíra aos nossos palcos, pois, a artista não encenava textos de autores nacionais. O ataque de Jaime Costa pode até parecer

simplório, mas a disputa tinha por fim questionar mudanças radicais que vinham se operando no contexto cultural da época, em termos de criação e produção teatral – as quais viriam a marcar o advento do moderno no teatro brasileiro (BRANDÃO, 2009). Em seu fundo, encontra-se, cerca de 40 documentos referentes a esse evento.

Chamar atenção, até aqui, para os contextos de produção documental, no caso dos arquivos pessoais que compõem o patrimônio documental do teatro, foi um esforço de ressaltar a necessidade do emprego da abordagem contextual no processamento técnico desses conjuntos. O que significa, por fim, defender o estatuto arquivístico dos arquivos pessoais, inclusive, daqueles originados em decorrência das trajetórias e práticas artísticas.

Não seria demais frisar que apenas foram pontuados casos que representam uma multiplicidade imensa de contextos arquivísticos presentes nos fundos de artistas e críticos teatrais. Admiti-se, ainda, que nos conjuntos referenciados, há a presença de itens que não puderam ter suas presenças identificadas em vista da perspectiva de análise defendida. Confessa-se então, o mesmo que Oliveira (2012, p.85), quando essa diz: “Reconheço que em determinadas situações alguns documentos perdem suas conexões, e fica impossível ao arquivista reconstituir seu vínculo”.

Porém, tanto a diversidade das circunstâncias que correspondem à gênese documental nos arquivos pessoais, quanto a impossibilidade, por vezes, de sua identificação por parte do arquivista, não refratam a existência clara de contextos de produção específicos que devem orientar a classificação dos registros que compõem tais conjuntos. Logo, ressalta-se, aquilo que se vem defendendo neste trabalho: para identificar as razões que estão na origem dos documentos dos arquivos pessoais, no caso do teatro, é preciso procurar entender antes como os indivíduos nele trabalham e se relacionam, porque o modo como estas pessoas existem socialmente é próprio do meio que elas circulam e habitam. Tal consideração ficará ainda mais clara, quando discutida algumas questões acerca das tipologias documentais presentes nestes conjuntos documentais.

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