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5 AS CONSTRIBUIÇÕES DA ESTÉTICA DA RECEPÇÃO PARA

5.1 AS ORIGENS

A teoria da Estética da Recepção tem seu marco inaugural a partir da renomada aula magna proferida pelo professor Hans Robert Jauss, em 13 de abril de 1967, na Universidade de Constança, na Alemanha, tendo como título original “O que é e com que fim se estuda história da literatura”, posteriormente recebendo o título de “A história da literatura como provocação da ciência literária”. Essa conferência busca polemizar as concepções vigentes de história da literatura, criticando o ensino e apresentando outras propostas, provocando uma ruptura radical e o início de uma nova fase para a Literatura.

Os estudos da Universidade de Constança procuraram desenvolver uma experiência pedagógica original e inovadora, estimulando as traduções e resgatando o Formalismo russo e o Estruturalismo tcheco. Houve, também, a formação de um grupo que organizou encontros interdisciplinares sobre poética e hermenêutica, cujos estudos atualizaram a estética e teoria das literaturas alemãs. Mas as contribuições também contemplaram o campo da linguagem.

A partir da determinante aula inaugural, Jauss deu continuidade aos seus estudos, liderando, na condição de professor, uma reforma no currículo do ensino superior, cujos cursos foram profundamente questionados. Embora tenha construído uma acentuada crítica às teorias vigentes, presas a padrões herdados do idealismo ou do positivismo do século XIX, sua intenção não foi suprimir aquele modelo desacreditado de ensino da história da literatura, mas sim reconstruí-lo. Na década de 1960, portanto, ocorrem transformações marcantes para as investigações literárias:

Talvez o traço mais marcante dessa década tenha sido a revelação do “poder jovem”, a juventude vindo a constituir uma força política até então desconhecida, de um lado, por rapidamente converter seu inconformismo em revolta, de outro, por atuar independentemente dos partidos existentes ou das ideologias de esquerda ou direita herdadas das gerações anteriores. Além disso, sua forma de agir provocou efeitos imediatos: mudou profundamente os padrões de comportamento e conferiu direções inusitadas à vida cultural. As consequências foram, às vezes, radicais; porém, não conseguiram modificar a estrutura da sociedade capitalista que, talvez com rapidez equivalente, soube absorver o choque e impedir que a revolução cultural se alastrasse a ponto de comprometer os fundamentos do sistema em vigor. (ZILBERMAN, 1989, p. 8-9)

Nota-se aqui o poder do sistema capitalista, que tudo absorve em proveito próprio, tendo como parte da sua engrenagem a indústria cultural. Todavia, grandes são as contribuições da Estética da Recepção para o leitor. Mesmo não direcionada ao leitor da arte industrial, sua teoria auxilia no entendimento deste.

O que Jauss propriamente critica:

[...] A história da literatura, em sua forma mais habitual, costuma esquivar-se do perigo de uma enumeração meramente cronológica dos fatos ordenando seu material segundo tendências gerais, gêneros e “outras categorias”, para então, sob tais rubricas, abordar as obras individualmente, em sequência cronológica. A biografia dos autores e a apreciação do conjunto de sua obra surgem aí em passagens aleatórias e digressivas, à maneira de um elefante branco.Ou, então, o historiador da literatura ordena seu material de forma unilinear, seguindo a cronologia dos grandes autores e apreciando-os conforme o esquema de “vida e obra” – os autores menores ficam aí a ver navios (são inseridos nos intervalos entre os grandes), e o próprio desenvolvimento dos gêneros vê-se, assim, inevitavelmente fracionado. Esta última modalidade de história da literatura corresponde sobretudo ao cânone dos autores da

Antiguidade clássica; já a primeira encontra-se com maior freqüência nas literaturas modernas, que se defrontam com a dificuldade – crescente à medida que se aproximam do presente – de ter de fazer uma seleção dentre uma série de autores e obras cujo conjunto mal se consegue divisar.(1994, p. 6-7)

O que Jauss considera inaceitável é a estrutura autossuficiente do texto literário, que se basta na sua organização interna, desconsiderando o sujeito-leitor. Ao estudioso da literatura, portanto, cabia apenas a descrição da sua estrutura, e não sua interpretação, a qual poderia possibilitar a interferência dos valores pessoais do crítico, comprometendo a ciência da literatura.

É interessante observar como alguns aspectos desse modelo criticado por Jauss ainda perduram em alguns livros didáticos brasileiros, no que tange à abordagem do conteúdo referente ao currículo de Literatura do Ensino Médio. Geralmente, os textos e as obras (uma seleção dos considerados mais representativos de determinado período literário) são dispostos em uma sequência cronológica de períodos ou movimentos literários, cujos principais autores e obras são precedidos pelo contexto histórico e características estéticas, de maneira isolada, sem um diálogo entre eles, levando, muitas vezes, o aluno a ter verdadeira aversão aos textos literários dispostos no currículo.

Com a Estética da Recepção, Jauss considera que:

[...] a relação entre literatura e leitor possui implicações tanto estéticas quanto históricas. A implicação estética reside no fato de já a recepção primária de uma obra pelo leitor encerrar uma avaliação de seu valor estético, pela comparação com outras obras já lidas. A implicação histórica manifesta-se na possibilidade de, numa cadeia de recepções, a compreensão dos primeiros leitores ter continuidade e enriquecer-se de geração em geração, decidindo, assim, o próprio significado histórico de uma obra e tornando visível sua qualidade estética. Se pois, se contempla a literatura na dimensão de sua recepção e de seu efeito, então a oposição entre seu aspecto estético e seu aspecto histórico vê-se constantemente mediada, e reatado o fio que liga o fenômeno passado à experiência presente da poesia, fio este que o historicismo rompera. (1994, p. 23)

Um possível exemplo para essa consideração de Jauss é o conto Pierre Menard, autor do Quixote, de Jorge Luís Borges (1972). Segundo Pin (2004), nessa narrativa, a originalidade pode ser percebida onde ela é menos evidente: a trama se constrói a

partir da não-menção de uma obra do escritor francês Pierre Menard, pelo crítico Mme. Bachelier, num jornal tendencioso, de recepção limitada. Essa obra é considerada por Menard “o mais absurdo e o mais ambicioso dos seus projetos”. Os amigos de Menard, alarmados e tristes com a publicação, resolvem retificar o catálogo, sendo representados pela voz do narrador-personagem do conto, o qual tece uma crítica à crítica realizada por Bachelier. Nessa retificação, o texto menciona que o Quixote é constituído de uma reprodução dos capítulos IX e XXXVIII da primeira parte e do capítulo XXII da segunda parte da obra Dom Quixote de la Mancha, de Cervantes, em que palavra por palavra e linha por linha “coincidem-se” (BORGES, 1972, p. 51-52).

Absurda, “invisível”, visivelmente, o traço de originalidade da obra está no objeto do narrador: “justificar o disparate” da composição. Na verdade, há somente uma referência aos três capítulos e toda uma reflexão acerca dessa escritura, e não os capítulos reproduzidos, propriamente. No último parágrafo do conto, denota-se a fusão da crítica e da narrativa, em que a “técnica nova” de Menard é destacada, quebrando a linearidade do tempo; mostrando que um texto pode ser a montagem de vários outros, cujas peças se misturam, tornando-se uma única matéria. O conto suscita uma vasta intencionalidade e isso também ocorre com a obra de Cervantes. “Visivelmente”, Dom Quixote de la Manchase apresenta como uma crítica às novelas de cavalaria da época e ao escritor Lope de Vega; a quebra da ilusão, da inocência; o despertar da Modernidade. “Subterraneamente”, o que importa é a leitura do leitor e do seu tempo sobre a obra, ou seja, a sua recepção, sendo possível, então, que os três capítulos que formam o Quixote não constituam uma mera transcrição, mas um novo texto “inconcluso” que agrega outro, inacabado, não deixando a obra se esvair em sua totalidade, mas projetando-a para o futuro, possibilitando outras leituras.

O conto constrói, também, discussões sobre a crítica literária. Para Pierre Menard, esta não se elabora por meio da censura ou do elogio. O que ocorre, muitas vezes, de fato, é que o crítico simpatiza ou não por uma obra e a partir disso emite seu veredicto. Menciona também que muitos publicam obras que são trabalhos intermediários, os quais sempre dizem a mesma coisa, com repetições ocultas.

O leitor, anteriormente desconsiderado, desloca-se de sua posição marginalizada para uma crescente valorização, na análise do texto literário, outrora estrutura imutável. Zilberman (1989, p. 11) observa que essa mudança coincide com a própria história, sendo contemporânea às revoltas estudantis, representando uma resposta a elas. Por conseguinte, a Estética da Recepção tem como dois principais objetivos reabilitar a história da literatura e a posição do leitor.

É interessante notar a postura vigilante e aberta da Estética da Recepção. Zilberman aponta que:

Em Jauss, está presente a recusa a todo dogmatismo: sua modelagem teórica permanece sob constante vigilância e aberta às novas tendências ou correções que se fizerem necessárias. Significa igualmente a suspeita diante de sistemas fechados e fórmulas acabadas, que se revelavam esgotadas quando a estética da recepção promovia sua estreia no cenário acadêmico europeu. (1989, p. 12)

E continua, acrescentando o principal mérito da Estética da Recepção– a grande preocupação com o leitor:

Também sob este aspecto é ela um produto característico de uma década de transformações que, se não alterou radicalmente estruturas poderosas do capitalismo ocidental, foi responsável por uma conquista básica: a noção de que os sistemas não explicam tudo, portanto, de que o novo pode emergir de lugares inesperados, exigindo que se esteja não só atento para a novidade, mas que se mantenham os sentidos em forma para perceber, compreender e interpretar da melhor maneira possível sua ocorrência. Talvez o mérito principal da estética da recepção resida em que traz embutida essa concepção, procurando extrair dela uma metodologia para conhecer a literatura. Nessa medida, parece ter muito para ensinar ao leitor, encarado como o principal elo do processo literário. (ZILBERMAN, 1989, p. 12)

Quando este trabalho propõe a análise da recepção da obra de Paulo Coelho, é com olhar atento e respeito ao escritor e ao leitor que se procura desenvolver esse estudo. Ainda quando esta tese encontrava-se em estado embrionário, a única certeza de que se tinha, naquele momento, era de não repetir a famosa máxima “Não li e não gostei”, mas sim de buscar entender o leitor, sua subjetividade enquanto sujeito histórico e o que, como e por que ocorre sua identificação com a

narrativa coelhana. Não se quer, aqui, por meio de uma postura ingênua, comparar a narrativa de Paulo Coelho com os cânones, pois não caberia tal feito, uma vez que a escrita daquele se situa em um tempo e espaço diferentes, demandando, portanto, outras perspectivas de análise. Ademais, não é intenção invalidar parte da crítica (aquela que não repete a tal máxima), pois, conforme poderá ser visto, quando a recepção desta for tratada, muito do que se observa sobre a narrativa coelhana procede, de fato. Cumpre apenas ressaltar que esse ponto de vista (e não verdade única) é válido se realizado no campo dos valores estéticos já legitimados. Embora o considere, não compartilha, este trabalho, com tal perspectiva, entendendo que, para se analisar o leitor de Paulo Coelho, são necessários outros olhares, “vigilantes e abertos”.