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As performances da coisificação

2 CAPÍTULO – CORPO E SIGNO

2.3 A TÁTICA DO DEIXAR-SE VER

2.3.2 As performances da coisificação

Quando você é modelo, você não aparece como você quer aparecer. Você aparece do jeito que as pessoas dizem que você deve aparecer naquele dia.

Tyra Banks

A performance da moça da capa deve ser entendida pela lógica do mercado, mas também através do sentido mais humano que o termo performance sugere. Afinal a moça da capa sabe de sua situação de objeto, mesmo porque essa é a condição para fazer parte do jogo social contemporâneo das aparências no qual todos estão envolvidos: “a publicidade hoje transforma o homem em objecto, tal como ele se transforma a si próprio em objecto”, dizia Giorgio Lomazzi na década de 1970 (1989, p. 79). E nos diz mais recentemente Bauman quando apresenta a transformação do indivíduo em objeto sob a lógica do consumo: “os

membros da sociedade de consumidores são eles próprios mercadorias de consumo, e é a

qualidade de ser uma mercadoria de consumo que os torna membros autênticos dessa sociedade” (BAUMAN, 2008, p. 76).

E se tudo é jogo, a performance pode ser entendida sob a lógica da cultura da

performance ou do comportamento que tem como uma de suas figuras nucleares “a do mundo

que se move pela ideia de competição” (COELHO, 2005, p. 180). Para esta cultura, “não é mais possível (ou tático) descurar da evidenciação do valor [...] o valor em cena (em jogo) é evidenciado e sublinhado em todas as fases de seu processo de desdobramento do valor e, para que não se tenha dificuldade em avaliá-lo, será expresso por um esforço físico que fornece e explicita seus critérios quantificáveis de apreciação” (Idem, ibidem). A cultura da performance mantém relações próximas com as culturas do narcisismo (procura da autosuficiência fadada ao auto-aniquilamento) e do consumismo (por exemplo, o uso de roupas de certas etiquetas, de alta obsolescência do ponto de vista do estilo), mas também com a cultura da atitude ou do comportamento, singularmente promovida pela TV. A essência dessa cultura, segundo Coelho, é a simulação. Nela, “a diferença maior entre a atitude ou comportamento e a coisa real deve ser procurada na ausência, no caso da atitude e do comportamento, de uma relação estrutural e causal entre essa atitude ou comportamento e um paradigma mais amplo de inserção do sujeito no mundo” (COELHO, 2005, p. 181). Dessa maneira, “atitudes e comportamentos surgem como fragmentos de uma existência (freqüentemente imaginária) desprovidos de todo elo estrutural entre si” (IDEM, Ibidem).

Representação do Eu na Vida Cotidiana. Goffman acredita ser conveniente dividir os

estímulos que formam a fachada pessoal em “aparência” e “maneira”, de acordo com a função exercida pela informação que esses estímulos transmitem. Assim, “pode-se chamar de ‘aparência’ aqueles estímulos que funcionam no momento para nos revelar o status social do ator” e de “ ‘maneira’ os estímulos que funcionam no momento para nos informar sobre o papel de interação que o ator espera desempenhar na situação que se aproxima” (GOFFMAN, 2004, p. 31). Uma compatibilidade confirmadora entre aparência e maneira, segundo Goffman, é freqüentemente esperada na vida social e esta compatibilidade pode, a meu ver, ser intensificada somando-se a ela todas as culturas apontadas por Coelho e ainda mais uma: a cultura da publicidade, “toda ela baseada nos modos da atitude (a atitude de fumar um cigarro em público, de enlaçar a namorada na rua, de balançar o corpo na discoteca) e cimentada no paradigma dos 30 segundos” (COELHO, 2005, p. 182).

Aliar aparência e maneira conforme o esperado por determinado contexto num tempo máximo de 30 segundos parece ser de fato o motor que impulsiona as relações de poder na contemporaneidade. E mais ainda numa situação de participante de America’s Next Top model em que é preciso trabalhar com a velocidade do caminhar na passarela, a agilidade em se deixar capturar pelo clique da câmera fotográfica, a destreza em transmitir o conteúdo de um determinado produto em um comercial televisivo e a capacidade de se mostrar “modelo” diante da bancada dos jurados. Em todos esses momentos, corpo e roupa participam como vetores de uma personalidade em formação. Personalidade que, nas palavras de Barthes, é composta, e não complexa; essencialmente quantitativa, mas não necessariamente qualitativa; constitui-se a partir do jogo das aparências, onde a multiplicação das pessoas num único ser é sempre considerada como um índice de poder. Poder que pode estar na roupa, no corpo, numa peruca, não importa, contato que o ser mostre-se de diferentes maneiras, sem perder a essência de sua identidade, sem deixar de ser ele mesmo, ao tempo em que age de acordo com as regras propostas pelo grupo. Este tipo de coerência pode ser ilustrada pelo elogio de Tyra a uma foto da concorrente Marjorie quando esta precisou utilizar longos cabelos artificiais para produzir um signo do feminino proposto pelo conceito do ensaio fotográfico: “É bom que você seja uma camaleoa. Botou um pouco de cabelo e não virou só uma Marjorie de cabelo longo. É uma mulher totalmente diferente”.

A personalidade/identidade da pessoa em Moda pode ainda, indica Barthes, prender-se ao número de elementos em jogo e à sua contrariedade aparente. É onde surge de fato o efeito exigido pela alta moda: o embate entre o corpo que diz uma coisa e a roupa que fala outra,

mas que juntos comunicam um mesmo signo. É através desses paradoxos que é construída a personalidade da moça da capa (não somente como modelo, mas como sujeito) e também são fortalecidos seus laços de identificação com o público48. Pois ao trocar de roupa e imageticamente produzir um outro corpo e uma outra personalidade, a modelo atesta “um sonho de totalidade segundo o qual o ser humano seria tudo ao mesmo tempo e não teria que escolher, isto é, rejeitar nenhum traço particular” (1979, p. 241). É este o grande desafio da aparência não só para as modelos, mas para todos nós, segundo Ana Cláudia de Oliveira: “Ser um, mais de um, todos, nenhum, esses são os desafios diários que o sujeito enfrenta no ato de vestir o corpo, de combinar os acessórios e complementos, de arrumar a sua face, a cabeleira e assim, no seu arranjar, obter uma entidade subjetal ou objetal” (2008, p. 97). A mutabilidade da aparência corresponde ainda ao ideal de beleza contemporâneo apresentado pelos meios de comunicação, os quais

não apresentam mais nenhum modelo unificado, nenhum ideal único de Beleza. Podem recuperar, mesmo em uma publicidade destinada a durar uma única semana, todas as experiências da vanguarda e, ao mesmo tempo, oferecer modelos dos anos 20, anos 30, anos 40, anos 50... [...] Os meios de comunicação repropõem uma iconografia oitocentista, o realismo fabulístico, a opulência junonal de Mae West e a graça anorexia das últimas modelos; a Beleza negra de Naomi Campbell e a nórdica de Claudia Schiffer; [...] a mulher fatal de tantas transmissões televisivas ou de tantas publicidades e a mocinha água-com-açúcar à Julia Roberts ou à Cameron Diaz (ECO, 2004, p. 427 e 428).