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Multiplicidade e controle: manipulações corporais da moda

2 CAPÍTULO – CORPO E SIGNO

2.3 A TÁTICA DO DEIXAR-SE VER

2.3.3 Multiplicidade e controle: manipulações corporais da moda

A pessoa da moda traz essa experiência constante de mutação para seu cotidiano e para o cotidiano de tantas outras pessoas que, na vida prática, acompanham suas diferentes imagens. As moças de ANTM, por exemplo, sempre estão ansiosas pelo próximo signo que precisarão encarnar e isso significa, nada mais, do que vestir o corpo para transformar-se em um corpo novo. E quando se vestem automaticamente se tornam objetos em sua ânsia por representar-se a si próprio da melhor forma possível para vender (-se) melhor49. Mas também se vêem indivíduos de fato50 que podem vestir o que quiser, sem se deixar diminuir pela experiência da fantasia ou do sacrifício a que são levadas pelo uso da roupa. “O jogo do vestuário aqui não é mais o jogo do ser, a questão angustiante do universo trágico; é

48 Essa Identificação, segundo Stuart Hall, está fundada “na fantasia, na projeção e na idealização.” (2007, p. 107) e, exatamente por isso, é fundamental à identidade, visto que esta é construída na fantasia e “tem necessidade daquilo que lhe falta.” (Ibidem, ibidem), tem precisão do outro, que pode ser um outro corpo midiatizado, distante e próximo; o outro que é a moça da capa de que nos fala Barthes, a qual precisa ser mil para que mil diferentes olhares a identifiquem e se identifiquem e, ao mesmo tempo, ser apenas uma para que acreditem em seu corpo-entidade.

49 Os objetos de culto precisam ser encenados por um tempo curto e por isso de forma eficaz. As pessoas chamam-se a si mesmas de ‘cena’, de ‘tecnocena’ etc., com um flanco aberto para aquilo que virá posteriormente (LUHMANN, 2005, p. 90);

simplesmente teclado de signos, entre os quais uma pessoa eterna escolhe a diversão de um dia; é o último luxo de uma personalidade bastante rica para se multiplicar, bastante estável para jamais se perder” (BARTHES, 1979, p. 243).

Partindo desse princípio, observamos a ausência de uma submissão do corpo em relação à roupa e vice-versa e passamos a compreender a efetivação de um diálogo lúdico e performático entre esses elementos. A esse diálogo Wilton Garcia (2005) atribui o termo transcorporalidade51 que se trata da possibilidade do corpo de, inserido em contextos sócio- culturais que reproduzem as características da contemporaneidade (como é o caso, por exemplo, do universo da moda), conseguir se apropriar, em suas manifestações, das inconstâncias de uma realidade cujo tecido é talhado pela mutabilidade programada pela aceleração e por uma simultaneidade de vogas que “anima a pessoa a ser várias, tantas quantas ela pode portar, ou suportar em seus modos de presença no mundo” (CASTILHO, 2004, p. 10). Nesse contexto, o mais importante é manter o corpo inteligentemente controlado a serviço da plasticidade poética (sugerida pela roupa), a qual é preciso alcançar para vender o corpo e, conseqüentemente, o produto. Não o contrário. O controle de que se fala é mais precisamente um reorganização dos gestos como imagem possível de ser comercializada. Assim, mesmo a mais impactante performance precisa ser enquadrada em uma determinada racionalidade sancionada pela cultura a fim de transmitir um ou mais significados. Dessa maneira, é o sentido imposto e/ou sugerido que precisa ser captado e em seguida controlado pelo corpo e pela roupa posta sobre ele. Ao precisar assumir o papel de uma criança brincando no parque, a concorrente London Levi-Nance (12º Ciclo) escuta o seguinte conselho do diretor de cena: “Como uma modelo, você está vendendo a roupa, então não é apenas brincar de cabo de guerra”. Diante do aviso, a modelo não se retrai, ao contrário, pula, alegra-se, envolve-se com a roupa, com o corpo, com a brincadeira, com tudo aquilo que é próprio de seu personagem (Figura 14). O corpo não precisa definitivamente morrer diante da roupa, apenas permanecer atento ao significado que precisa transmitir em comunhão com ela. Seja como for, o certo é que “o sentido não pode nascer onde a liberdade é total ou nula: o regime do sentido é o da liberdade vigiada” (BARTHES, 1979, p. 153).

51 O conceito de transcorporalidades se destaca como “categoria crítica capaz de agregar diferentes possibilidades para pensarmos as manifestações do corpo contemporâneo. Seja na publicidade, na mídia, na arte ou no cotidiano, essas transcorporalidades surgem como estados de performance, em que o corpo ressalta suas nuanças poéticas, plásticas, que evidenciam a discursividade visual estratégica. Nesse sentido, o corpo emerge sempre em trânsito – deslocamento constante e que aponta o movimento estratégico corporal.” (GARCIA, 2005, p.13).

Figura 14 – Modelo London Levi-Nance (12º Ciclo de America´s Next Top Model).

O que não traz grandes prejuízos ao corpo se levarmos em consideração que, na situação estratégica que é o viver na Moda e na contemporaneidade, “a anatomia não é mais um destino, mas um acessório da presença, uma matéria-prima a modelar, a redefinir, a submeter-se ao designer do momento” (LE BRETON, 2003, p. 27 e 28). O controle do sentido, sob essa nova condição corporal, não está numa submissão cruel do corpo à roupa, mas na suberversão com limites da roupa pelo corpo. Ou seja, a roupa carrega um significado que o corpo precisa aderir à sua maneira, não um significado diante do qual o corpo deva se anular. Cabe às modelos, de ANTM e todas as outras do mundo, aderir à transcorporalidade de forma indolor e, dessa maneira, tornar vendável o corpo em constante transformação pelo uso da roupa. E, se o desafio é significar “sem dor” diante de um significado imposto, a solução é transformar a indumentária em traje para então vendê-lo como indumentária52.

52 Recorrendo aos ensinamentos de Saussure, segundo o qual a linguagem humana pode ser estudada sob dois aspectos, o da língua (langue) e o da fala (parole), Barthes relaciona o primeiro aspecto à indumentária e o segundo ao traje, sendo os dois responsáveis pela composição de um todo genérico denominado vestuário (que é a linguagem em Saussure). Assim, da mesma forma que a língua, a indumentária “é uma instituição social, independente do indivíduo, é uma reserva normativa na qual o individuo haure sua fala” (2005, p. 268), enquanto

Dessa forma, os dois significantes – roupa e corpo – precisam unir-se em torno de um determinado significado para assim tornarem-se signo do sentido proposto. Se falo música pop (Figura 15), por exemplo, imagino um corpo X e uma roupa Y. Mas é a capacidade do corpo em reorganizar seus gestos dentro da roupa que vai fazer com que eu acredite que aquele corpo com aquela roupa me transmitem realmente o sentido de música pop e, em conseqüência, o signo do pop. Corpo e roupa devem ser organizados dentro de um quadro estrutural no qual a identificação com o outro tende a ser inevitável, pois, como afirma Roland Barthes, a identificação é “uma pura operação estrutural: sou aquele que ocupa o mesmo lugar que eu” (2003a, p. 207). O estrutural perde então o seu sentido objetável (que era o de apenas servir de suporte para a roupa) e humaniza-se na configuração de um corpo que, juntamente com a roupa, constrói a identidade de um sujeito (ainda que uma identidade sob a lógica da moda) com o qual se deseja identificar (e por conseqüência consumir). Barthes explica:

Toda rede amorosa é por mim devorada com o olhar, nela reconheço o lugar que seria o meu, se dela fizesse parte. Diviso não analogias, mas homologias: constato, por exemplo, que sou para X... o que Y... é para Z...; tudo o que dizem de Y... me atinge na carne viva, apesar de sua pessoa me ser indiferente, desconhecida mesmo (Idem, ps. 207 e 208).

Figura 15 – Modelo Lauren Utter (10º Ciclo de America´s Next Top Model).

amplo, corresponde ao resgate do invisível, do espírito de que fala Merleau-Ponty e que, para tanto, é necessário “reencontrar esse espírito bruto e selvagem sob todo o material cultural de que se revestiu – Neste ponto assume todo o seu sentido o título: Natureza e Logos. Existe um Logos do mundo natural, estético, no qual se apóia o Logos da linguagem” (2006, p. 343).

A necessidade por manter a todo custo o sentido proposto pela imagem está, pois, invariavelmente ligada ao imaginário, visto que como indica De Certeau fazemos hoje uma distinção maior entre aquilo que está escrito (o dito) e o gesto que o produz (o dizer). O autor continua: “sem dúvida essa tendência participa da nossa experiência cultural, que refere os sistemas de significados aos procedimentos ou ao ato dos quais eles resultam – o enunciado a uma enunciação” (1995, p. 243). Nessa paisagem cultural, nada melhor do que um bom corpo vestido, o qual

é um enunciado e uma enunciação, e os simulacros de enunciador e de enunciatário nele investidos possibilitam ao analista depreender quem é o destinador que faz o destinatário corpo vestido, atuando no seu contexto de relações, ser um sujeito. Ao vestir o corpo com essas variáveis, o sujeito, pela sua aparência, é levado a assumir uma multiplicidade de estados ou enfatizar um deles pela sua força estética ou pela sua força estésica; pela sua força funcional ou pela força simbólica (OLIVEIRA, 2008, p. 99).

Parece-me, com isso, que a moça da capa de revista não tem muito a temer em relação à roupa. Ela, no entanto, deve seguir o conselho de Tyra Banks e focar nas marcas corporais que a diferenciam, tendo sempre cuidado para que seus gestos não causem interferências no processo de comunicação entre imagem e receptor. Quando Gianni Vattimo fala do processo de “tomada da palavra” pelas minorias sócio-culturais a partir da ascensão do mundo da comunicação generalizada no século XX, ele afirma que “também os dialetos têm uma gramática e uma sintaxe, mas só quando conquistam dignidade e visibilidade descobrem sua própria gramática” (1989, p. 15). Ou seja, da mesma forma como a roupa (LURIE, 1997, p. 20-23), o corpo tem seu próprio dialeto com uma gramática e uma sintaxe; alcançar então a dignidade e visibilidade mencionadas por Vattimo permitirá ao corpo se divertir com a roupa que quiser, pois a dona do corpo já se tornou a grande top model americana, a imagem-signo de si mesmo e, por isso, servirá, sem muito esforço, como signo de qualquer coisa que lhe for colocada a significar. É somente como signo de si mesmo então que ele, o corpo, exalta sua estética sem perder sua funcionalidade.