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2 CAPÍTULO – CORPO E SIGNO

3.1 OLHANDO O CORPO QUE NÃO É MEU

3.1.4 Detalhe e disciplina

Analeigh é um sonho. Exceto que ela tem olhos largos, um nariz substancial e uma boca larga.

Paulina Porizkova sobre a candidata do 12º Ciclo Analeigh Tipton

“A disciplina é uma anatomia política do detalhe”, diz Foucault (1997, p. 120). Não surpreende, por isso, que seja na procura pelo detalhe que as candidatas confirmem sua eficácia de corpo-máquina produtor de sentido. Sentido que é construído, transmitido e consumido através da publicidade que trabalha, minuciosamente, com nosso imaginário, dividindo-o em dois (segundo a análise barthesiana) cada um com seu repertório de assuntos, os quais coordenam nossas mais ínfimas e mais coletivas inteligibilidades de mundo. Minuciosamente, a publicidade trabalhar para nossos olhos, mas se interessa por nossas almas.

Seguindo essa lógica, o corpo de agora, semelhante à época referida por Foucault, “entra numa máquinaria de poder que o esquadrinha, o desarticula e o recompõe” (1997, p. 119). Porém mais do que o corpo, a alma também entra em reformulação. Assim, conforme argumenta Sibilia, “em todas as sociedades o corpo está imerso em redes que lhe impõem certas regras, obrigações, limitações e proibições” (SIBILIA, 2002, p. 32). As formas de coagir a alma (bem como o próprio conceito de alma), de maneira parecida, mudam de acordo com o momento histórico. Mesmo porque “a alma é um produto dos dispositivos de saber- poder, uma criação social. Ela é, ao mesmo tempo, um poderoso efeito e um instrumento das ‘artes do corpo’. É precisamente através dela que se dá a internalização da disciplina e a domesticação dos corpos dóceis e úteis” (SIBILIA, 2002, p. 107 e 108). Principalmente daqueles que são utilizados numa concepção artística. Isso porque “numa obra onde não exista ordem, a todo instante a alma/Imaginário sente perturbar-se a ordem que ali quer introduzir” (MONTESQUIEU, 2005, p. 25). E se a publicidade reclama, a cada dia, um lugar de arte, decerto seus elementos (sendo o corpo o principal deles) deverão compor a ordem almejada pela alma a qual, trocando as palavras, bem pode ser entendida na atualidade como o Imaginário. O corpo na publicidade virtualiza assim os desejos de ordem da alma (através de um processo estrutural de identificação, que somente será efetivado com o consumo do produto indicado pelo corpo). Em contrapartida, o olhar cultural reordena a alma na construção do corpo, qualquer corpo, para a cultura e esse corpo reordenado culturalmente chega-nos, entre outras instâncias, através de signos difundidos pela mídia. Esses signos, investidos de um poder simbólico reproduzido através de marcas corporais, conduzem-nos a

modelar nosso corpo dentro da estética proposta pelas imagens-signos. “Ou seja, o que vemos nos olha, propondo-nos e exigindo de nós que possamos/devamos ser assim!” (SOUZA, 2002, p. 101). Essas indicações de condutas midiáticas sobre os corpos também fazem parte daquele movimento de resposta do mercado à revolta corporal de que nos fala Foucault e cujo “investimento não tem mais a forma de controle-repressão, mas de controle-estimulação: ‘Fique nu... mas seja magro, bonito, bronzeado!” (FOUCAULT, 1982, p. 147). É de fato um jogo de tática e estratégia, no qual “a cada movimento de um dos adversários corresponde o movimento do outro” (IDEM, ibidem).

Elizabeth Badinter trata desse aspecto de reconstrução corporal, em ambos os sexos, sob dois pontos de vista – o estético e o erótico – os quais estão imbricados “no mesmo processo que transforma o corpo em objeto desinvestido de seu caráter erótico em prol de uma modelagem que acompanha os modismos da época e o mercado de consumo” (2008, p. 109 – 113). Paula Sibilia, de forma semelhante, chama a atenção para uma mudança nos cuidados sobre o corpo, que é aguçada pela necessidade do indivíduo em fazer-se objeto de consumo em uma sociedade cada vez mais impregnada pela cultura do espetáculo e pela moral das sensações. Ao associar a remontagem corporal ao desvio da lógica do cuidado de si para uma focalização do corpo físico per se no que tange à procura pela adequação ao corpo perfeito (modelo universal de consumo), Sibília comenta que

a recente moralização das práticas corporais que se desenvolve na sociedade contemporânea possui metas mais prosaicas: vencer no mercado das aparências, obter sucesso ou ganhar eficiência, efetuar uma boa performance física e sobretudo visual – enfim: valores mercadológicos, itens bem cotados no mercado contemporâneo (2006, p. 98).

A pesquisadora prossegue sua análise remetendo a procura pela perfeição corporal à invalidade do corpo em sua condição de material orgânico e perecível. De acordo com ela, a necessidade pelo excesso no retoque corresponde à necessidade pelo excesso de vida: prolongar-se a todo custo como meta do ser humano na contemporaneidade; e, para tanto, a autora fala da transição dos procedimentos mecânicos e analógicos aos métodos bioinformáticos como movimento que une os sonhos de virtualização e o culto ao corpo belo em torno da mesma tendência de “desprezo pela carne considerada impura e por suas viscosidades orgânicas, além da mesma vontade de eliminá-las com a ajuda das ferramentas tecnocientíficas” (2006, p. 106). Dessa maneira, “o corpo encarna a parte ruim, o rascunho a ser corrigido” (LE BRETON, 2003, p. 16); e essa correção supõe a busca por escapar da morte, por “apagar ‘a insustentável leveza do ser’” (Idem, p. 17), ainda que seja investido

sobre esse corpo todo tipo de tecnologia maquínica. Resumidamente, “o corpo não é descartado por ser pecador, mas por ser ‘impuro’ em um novo sentido: imperfeito e perecível” (SIBILIA, 2002, p. 96).

Aproveita-se então o lado imaterial desse corpo em detrimento do material. Privilegia- se aquilo que ele pode mostrar, além de sua organicidade obsoleta. Dá-se importância à virtualidade das informações que ele produz a partir de aspectos visíveis em sua superfície. Ironicamente, é uma exigência do mercado a novidade, mas também a perenidade corporal e adequar-se, mercadologicamente, significa metamorfosear o corpo em conformidade com os seus desígnios, renovando-se de todas as formas possíveis. Se é então preciso, por exemplo, fugir da organicidade do corpo; livrar-se de qualquer vestígio de gordura, toda a publicidade dos produtos de beleza, como comenta Barthes, é fundamentado numa espécie de representação épica do íntimo. “As pequenas introduções científicas destinadas a apresentar publicitariamente o produto informa-nos que ele limpa em profundidade, desobstrui em profundidade, alimenta em profundidade, isto é, custe o que custar, ele se infiltra” (BARTHES, 2003b, p. 84). E se é necessário fugir da morte, a publicidade faz da morte uma palavra maldita e do cenário da morte uma brincadeira erótica (Ver Figura 27).

Figura 27 - Modelo Raina Hein (14º Ciclo de America´s Next Top Model).

Infiltrar, limpar, remover e nos fazer sonhar com a eternidade - é essa a meta da publicidade, visto que “os verbos ‘falecer’ ou ‘morrer’ parecem não fazer parte da publicidade nem do processo existencial do corpo” (GARCIA, 2005, p. 26) e, mais ainda, da publicidade de moda. Por isso, “poder-se-ia dizer que a juventude do modelo é afirmada, defendida, sem cessar, porque é, naturalmente, ameaçada pelo tempo” (BARTHES, 1979, p. 244). Isso ocorre porque, na argumentação de Badinter, “em nossa sociedade de consumo sexual, o corpo deve ser jovem, de alto desempenho e excitante. Para atingir esse ideal não há sacrifícios” (2005, p.

110). Ou pelo contrário, há muitos sacrifícios que são, por uma questão de sobrevivência em sociedade, desrotulados de sua condição sacrificial e elevados à categoria de privilégios sociais. Já vimos que a mudança de roupas indica um índice de poder e o mesmo pode ser dito das alterações na aparência. É nesse sentido que a modelo personifica o ideal de mulher, pois está sempre mudando, uma fotografia após a outra, sem deixar de ser ela mesma; mas é também por representar um ideal de mulher que ela está sempre sob a mira do regime panóptico da Moda que lhe exige jamais envelhecer, jamais engordar, jamais ser apenas ela mesma, ainda que precise tornar-se uma marca de si. Moldar o corpo a tal ponto que nenhuma suspeita recaia sobre ele; para que não passe pela mesma situação da candidata do oitavo Ciclo de ANTM, Renee Alway, cujas avaliações fotográficas eram sempre seguidas da pergunta: “Ela não parece velha demais?”. Num exemplo oposto ao de Renee, está o da modelo Heide Klum que pôde mostrar com orgulho seu corpo definido no último desfile da grife Victoria’s Secrets, mesmo aos 37 anos e tendo dado à luz a poucas semanas do show.

O vigiar panóptico (que partindo do universo da Moda se estende por todos os corpos alcançados por ele) pode ainda ser percebido como um exercício de autocontrole diante de um mundo incontrolável e imprevisível. Assim, “incapazes de reduzir o ritmo estonteante da mudança, muito menos prever ou controlar sua direção, nos concentramos nas coisas que podemos, acreditamos poder ou somos assegurados de que podemos influenciar... [...] Nossa atenção é chamada [...] para exorcizar o espectro da pressão alta, do nível alto de colesterol, do estresse ou da obesidade” (BAUMAN, 2007a, p. 17). E para que possamos nos concentrar em nós mesmos com eficácia, buscamos na mídia as ferramentas necessárias. Dentre elas, o controle que outros exercem sobre outros corpos que não nossos. É o caso de ANTM. Não fosse essa sensação de estabilidade que nos é concedida pelo olhar alheio sobre o corpo do outro, o reality perderia muito do seu sentido. E uma observação do tipo “É uma boa foto, mas acho que ela tem quadris bastante largos!” feita pelo fotógrafo e jurado Nigel Barker a uma das candidatas não lhe atribuiria status algum de poder de influência sobre qualquer corpo.

“Cada época inventa seus próprios sofrimentos”, diz Sibilia (2006, p. 100). E o sofrimento dos corpos imersos na incerteza das relações contemporâneas parece ser a conquista do corpo que se comunica sem dizer nada, ou seja, tornar-se exatamente o corpo construído pela mídia: magro, sarado, esguio que, sem dizer muita coisa (ou dizendo nada), fala para quem quiser ouvir que ele é o corpo a ser indubitavelmente aceito por todos, sem exceção. É sob essa perspectiva que o enunciado de Wilton Garcia de que “compramos

produtos por meio da publicidade, porém desejamos o corpo” (2005, p. 51) soa-nos assustadoramente clara. Assustadora, mas não irreal, afinal é essa a função do corpo na publicidade atual: ser exibido em espetáculo para ser consumido (MAFFESOLI, 2008, p. 26). Assim, ainda que fisicamente eu adquira uma calça Dolce&Gabanna, subjetivamente é a possibilidade de um corpo irretocável presente nos anúncios publicitários da grife o que realmente vale na compra, uma aproximação ainda que irreal com os corpos presentes nas imagens do anúncio, as quais “se convertem em objetos de desejo a serem reproduzidos na própria carne, que de algum modo é virtualizada nesse processo” (SIBILIA, 2006, p. 105). Dessa forma, o corpo do outro se apresenta subjetivamente como parâmetro para a conquista de nossa auto-estima e conseqüente inserção social satisfatória. É o corpo que não é nosso - o corpo limpo, editado, digitalizado, robótico - que nos permite criar a ilusão de que podemos sim ultrapassar com segurança qualquer atribulação contemporânea.

Chegou-se o dia em que os corações são mesmo de metal. Também se faz necessário para uma adequação e melhor assepsia que se retirem pedaços de órgãos saudáveis para adestrar uma volúpia de um desejo que deve ser contido na marra. Extirpando parte do corpo para que este possa se adequar ao espaço reservado para cada indivíduo na ‘grande máquina’ globalizada (MAGALHÃES, 2006, ps. 78 e 79).