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Dos riscos de olhar o mito

1.1 A MEDIDA DA VERDADE IMAGINADA

1.1.4 Corpo, mito e “hipnose midiática”

1.1.4.1 Dos riscos de olhar o mito

Constatamos que a própria TV responsável, em parte, pela eclosão da poluição que permeia nosso cotidiano, encarrega-se de produzir os mitos e os símbolos imagéticos que nos ajudam a readquirir um certo senso de estabilidade ontológica. E isso através do corpo transformado em produto publicitário, pois, como não podemos esquecer, as candidatas do

reality são submetidas a um “tratamento” midiático que busca conferir aos seus corpos os

mecanismos necessários para a produção de sentido através da imagem publicitária. Não por acaso, os arquétipos, mitos e estereótipos são os componentes essenciais dos vários imaginários produzidos pela publicidade (BARTHES, 2005); e esta, apesar de sua rigidez em coordenar persuasivamente o comportamento do consumidor contemporâneo (CHARLES, 2004, p. 19), é, cada vez mais, de acordo com Lipovetsky, “mobilizada para despertar uma tomada de consciência dos cidadãos diante dos grandes problemas do momento e modificar diversos comportamentos e inclinações: alcoolismo, droga, velocidade na estrada, egoísmo, procriação, etc.” (1989, p. 194).

A partir desse novo direcionamento publicitário (que não deixa de ter um compromisso certo com o mercado), o corpo assume uma dupla responsabilidade: ser exibido

em espetáculo numa tela-espelho cuja moral é a do mercado14 e emergir “como mecanismo

lingüístico que pondera sua forma em um tecido enunciativo; ele deixa de ser mero objeto orgânico para transformar-se em linguagem, que enuncia e agrega valores socioculturais” (GARCIA, 2005, p. 27). É por sua condição de linguagem, ou seja, de transmitir mensagem

através das imagens que produz, que o corpo passa a ser percebido como mito15 destinado a

radicar-se na sensibilidade das massas. Ou seja, o corpo individual, por meio de sua ordenação em signo-mito, reconduz à ordem o corpo coletivo, mesmo que apenas imageticamente16.

Por isso, aproximar a performance das personagens a um desempenho mítico é enfatizar o que Fredric Jameson chamou resumidamente de “dimensão utópica da narrativa”. Ao reescrever as ações dos personagens das narrativas cinematográficas em termos de mito,

14 “A cultura da televisão é também a cultura do mercado” (2008, p. 26), afirma Teixeira Coelho e Muniz Sodré diz que “a moral da mídia

contemporânea é apenas mercadológica” (2002, p. 65);

15 Diz Barthes: “já que o mito é uma fala, tudo pode constituir um mito, desde que seja suscetível de ser julgado por um discurso. O mito não

se define pelo objeto da sua mensagem, mas pela maneira como a profere... [...] o discurso escrito, assim como a fotografia, o cinema, a reportagem, o esporte, os espetáculos, a publicidade, tudo isso pode servir de apoio à fala mítica” (2003, p. 199 e 200);

16 “Assim, em certos contextos sociais e semiológicos, a subjetividade se individua... [...] Em outras condições, a subjetividade se faz

coletiva, o que não significa que ela se torne por isso exclusivamente social. Com efeito, o termo ‘coletivo’ deve ser entendido aqui no sentido de uma multiplicidade que se desenvolve para além do indivíduo, junto ao socius, assim como aquém da pessoa, junto a intensidades pré-verbais, derivando de uma lógica dos afetos mais do que de uma lógica de conjuntos bem circunscritos” (GUATTARI, 1992, p. 19 e 20).

Jameson indica que é a partir da apropriação do mito pelas narrativas audiovisuais que se desenvolve “a celebração ritual da renovação da ordem social e de sua salvação, não somente da ira divina, mas também da liderança indigna” (1995a, p. 27). Com efeito, é partindo dessa possibilidade de ação mítica dos personagens da ficção e da quase-ficção que se desenvolve o potencial utópico e transcendente da obra de arte da cultura de massa, seja um filme, uma novela ou um reality show.

Mas a celebração às novas mitologias produzidas pelas mídias tem um preço que é pago com o risco da passividade do olhar, e a nulidade das ações dos telespectadores em contraposição à ação cada vez mais emergente dos participantes do reality. Pois se os primeiros vivenciam um projeto futuro, aqueles que os assistem se conformam a uma

presentificação heterodirigida. ANTM, por exemplo, por sua condição de espaço produtor de

imagens publicitárias, mas também de reality no qual é apresentado “publicitariamente” um estilo de vida que reproduz a ambiência da classe média estadunidense, produz um duplo efeito no consumidor de imagens: chama sua atenção para a possibilidade de felicidade que a imagem desperta, e limita suas ações por fazê-lo se sentir confortável em apenas vislumbrar a felicidade possível. Dessa forma,

as mitologias revelam aquilo em que não se ousa mais acreditar e que por isso se busca “em imagem”, e muitas vezes aquilo que somente a ficção oferece. Elas enganam simultaneamente a fome a ação. Elas traem ao mesmo tempo uma recusa a perder e uma recusa a agir. [...] Os belos programas de uma “nova sociedade” substituem habilmente a ação que mudaria nossa sociedade pela miragem dos discursos (DE CERTEAU, 1995, p. 44).

Deve-se, contudo, manter um cuidado para não cairmos no erro de acreditar que o consumidor de imagem vive apenas de uma passividade do olhar, de forma alguma responsiva. As opiniões postadas nas comunidades de ANTM nas páginas virtuais mostram- nos que a situação é bem outra17. As discussões acirradas entre os membros dessas comunidades revelam que muito mais do que assistir, os telespectadores estão envolvidos numa rede constante de prazeres e questionamentos. Nesse sentido, a heterodireção apresentada por Eco pode ser certamente relacionada ao programa por tratar-se de um produtor de imagens publicitárias que, a partir do imaginário coletivo, recria imagens convencionais. Ou seja, America’s é um produto televisivo que trabalha, antes de mais nada, com as técnicas e os efeitos da publicidade. Comumente, é possível conferir o depoimento (postado nas comunidades virtuais) de pessoas que, mesmo sem saber inglês, não se importam

17 Nessas comunidades pode-se observar aquilo que Thompson chama de “elaboração discursiva”, ou seja, “as mensagens da mídia são elaboradas, comentadas, clarificadas, criticadas e elogias pelos receptores que tomam as mensagens recebidas como matéria para a alimentar a discussão ou o debate entre eles e com os outros” (1995, p. 100).

em assistir o programa sem as legendas, pois o que lhes interessa são as imagens produzidas18. Apesar disso, por sua condição de programa televisivo, o reality está sempre sob o risco da ação do zapping19. Sem contar que a participante do Ciclo seguinte é sempre alguém que foi uma telespectadora da Ciclo anterior. Finalmente, “imagens de outros modos de vida constituem um recurso que os indivíduos têm para julgar suas próprias condições de vida” (THOMPSON, 1998, p. 157) e a partir disso gerar algum tipo de mudança.

Saindo de uma análise sobre os telespectadores e nos voltando aos personagens, é necessário não esquecermos que o programa é uma produção dos meios de comunicação norte-americanos e que os corpos envolvidos sob a condição de objeto no programa nos falam de uma determinada estética de vida própria desse país. Sendo assim, “o objeto de que fala essa imagem é a dessocialização em que resulta a valorização extrema que nessa cultura se atribui à experiência individual. Os heróis da nova mitologia, mais do que representar a comunidade que encarnam, representam sua própria trajetória, seu esforço para se fazer” (Idem, ibidem). Observamos isso na fala aflita de Anya, concorrente do 10º Ciclo: “Eu preciso ser modelo! É a minha paixão! Eu preciso disso na minha vida. Eu acordo todos os dias pensando nisso. [...] Eu deixei o Havaí para trás, mas Deus me deu um propósito e eu vou cumprir com esse propósito”. O fazer a si mesmo persiste até mesmo diante da derrota. É o que revelam as palavras da modelo Brittany Rubalcaba eliminada no quarto programa do 11º Ciclo: “Eu não vim aqui sabendo tudo. Eu vim aqui e estou aprendendo. Agora tenho que pegar tudo que aprendi e aplicar. Não vou me apagar!”.

Porque precisa fazer-se, o corpo deve ser observado em sua “dupla dinâmica de reconstrução”: que está relacionada ao mercado global do consumo e da informação o qual coloca o corpo na condição de “vítima” dos dizeres de uma economia de mercado e de uma economia cognitiva; mas que também, por meio de uma adaptação deste corpo à ética estabelecida pelo mercado global do consumo e da informação, consegue conduzi-lo à virtualização da conquista de uma individualidade de fato, a partir da inserção num estilo de vida de jure. De uma forma ou de outra, esse corpo está submetido primeiro a uma

18 Como se vê, “para a cultura de massa, a publicidade não é somente a fonte mais vasta de seu financiamento; é também a força que produz

seu encantamento” (MARTIN-BABERBO, 2006, p. 199);

19 Quando falade zapping, Canclini nos recomenda desenvolver com maior complexidade as estratégicas propostas pelas novas tecnologias

para daí “encontrar uma posição, dentro da interculturalidade multitudinária, que leve à autonomia, não ao autismo” (2008, p. 90). Eco também faz referência à importância do controle remoto na reformulação dos formatos dos discursos televisivos, próprios da passagem da Paleotevê para Netotevê. Já Barbero e Rey relacionam o uso do controle à fragmentação da subjetividade que é reflexo da crise da narração, a qual aponta para a perda da comunicabilidade da experiência. Mas também há nesse fenômeno uma autonomia do telespectador na construção da mensagem como demonstram os autores, afinal é por meio do zapping que o sujeito “ao mesmo tempo que multiplica a fragmentação da narração, constitui com seus pedaços um relato outro, um duplo, puramente subjetivo, intransferível, uma experiência incomunicável!” (2004, p. 112). Arlindo Machado dedica todo um capítulo de seu livro Máquina e imaginário para relatar as potencialidades autônomas que o zapping confere ao telespectador.

inteligibilidade visual dentro das tecnologias da cultura na qual é produzido para então assumir, através do seu reconhecimento imagético, a condição de indivíduo-produto, sujeito- objeto da sociedade de consumo. Sua transformação em mito para ver e entender nada mais é que sua transmutação em produto para ver e comprar. Como diz Pierre Levy, “os tipos de representações que prevalecem nesta ou naquela “economia cognitiva” favorecem modos de conhecimento distintos (mito, teoria, simulações), com os estilos, os critérios de avaliação, os ‘valores’ que lhes correspondem, de modo que as mudanças de tecnologias intelectuais ou de meios de comunicação podem indiretamente ter profundas repercussões sobre a inteligência coletiva” (1996, p. 100).

É a “preocupação” com a inteligência coletiva o que faz esses corpos assumirem diferentes aparências condizentes com os interesses mercadológicos, mas que também referenciarem um determinado estilo de vida universalizante; mas é ela também que coloca o corpo em choque com interesses locais e globais que vão ter efeito literal sobre a pele do indivíduo. O que deve ficar claro, contudo, é que, longe da ideia de um mercado a escalpelar os sujeitos que o compõe, há uma escolha pela mudança na aparência que é efeito de uma escolha do próprio sujeito. Escolha que nem sempre significa liberdade, mas que sugere uma negociação na qual o corpo é cedido à situação, e jamais dado à condição. Obedecendo a lógica do sistema moda, ele está para o momento, nunca para o sempre, pois é de sua própria condição de sujeito-produto perecer para o constante renovar-se. E isso não tem a ver somente com o mercado de consumo, mas com o vislumbramento de pertencimento grupal que o mercado produz, o qual é a base de um dos grandes mitos de nosso tempo: o mito da comunidade, que se confunde com a filiação a um estilo de vida.