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Roupa: obstáculo para o corpo?

2 CAPÍTULO – CORPO E SIGNO

2.2 CORPOS SOB CONTROLE

2.2.4 Roupa: obstáculo para o corpo?

É difícil, é tenso, é complicado tentar pensar sobre essa relação entre corpo, roupa e moda. “As modelos são uma parte importante no processo de criação. É só no corpo delas que as roupas ganham vida”, disse certa vez o estilista Marc Jacobs41. A partir da declaração de Jacobs e tendo em vista as situações mencionadas anteriormente em ANTM, podemos pensar em duas formas principais de como as modelos e seus corpos são úteis à divulgação da roupa: 1) Como suporte para a roupa e 2) Como elemento performativo que, integrado a roupa, gera subjetividades.

Seja como suporte, seja como elemento poético (ou mitopoético), o corpo na publicidade de moda (e na publicidade em geral) é sempre posto sob um devido controle, o qual é necessário às demandas mercadológicas, principalmente se levarmos em consideração que se falamos em mercado e, principalmente, em mercado publicitário, falamos na venda e consumo de signos. Recorrendo às análises de Roland Barthes em O Sistema da Moda talvez consigamos chegar a conclusões mais precisas sobre nossas dúvidas. Afinal, Barthes fala em seu livro sobre signos, significantes e significados e ainda sobre personalidade, corpo e roupa. Elementos amplamente abordados em America’s, apesar dos três primeiros ficarem implícitos, enquanto os outros três são explorados à exaustão. O que nos faz lembrar do visível e invisível proposto por Merleau-Ponty e do interno e externo mencionado por Judith Butler.

Podemos acrescentar ainda às dicotomias dos dois autores, o binômio narrativa/funcionalidade apresentado por Eco em Psicologia do Vestir. Segundo o semiologista, “a vida em sociedade (e portanto a vida da ‘cultura’) compõe-se por um lado de actos de comunicação, de entidades gestuais ou sonoras que ‘dizem que’, e por outro de coisas que ‘funcionam’, isto é, que ‘servem para’” (1989, p. 13). Eco continua e nos diz ainda que

por força e ambição da semiologia “toda a cultura pode ser vista como acto de comunicação, e que até as coisas que ‘servem para’ de certo modo dizem sempre algo” (Idem, ibidem). Não é de se estranhar, por isso, que num mundo semiológico orientado pela cultura do consumo, objetos ganhem vida e corpos virem objetos. E talvez o corpo, nesse contexto semiótico- consumista, ganhe de fato vida nova ao conformar-se como objeto de consumo. Pelo menos no caso da moda, no qual o corpo pode ser considerado um objeto-máquina produtor de aparências-signo que, quando bem acoplado a uma segunda máquina (a roupa), intensifica suas ações. Eco faz alusão a essa propriedade maquínica da roupa em A História da Beleza. Para ele, “máquina é qualquer prótese, ou seja, qualquer construto artificial que prolonga e amplia as possibilidades de nosso corpo [...] Nesse sentido, são próteses também os objetos de decoração, como a cadeira ou a cama, e até as roupas” (ECO, 2004, p. 381 e 382).

O grande desafio da moda é saber, pois, ajustar bem as peças que ligam a primeira à segunda máquina. E para tanto é preciso conseguir orientar o corpo a deixar-se um pouco de lado; é necessário calar o corpo para deixar falar a roupa. Mas como fazer isso se em cada sujeito verifica-se que a dimensão primeira do corpo é a de mídia de si mesmo? Pois conforme nos diz Castilho, “há uma necessidade inegável de ser visto, de tornar-se presente, de ampliar seus limites e domínio da territorialidade, espaço” e, nessas condições, “a roupa é uma segunda pele, uma segunda mídia, uma extensão de discurso, que, recobrindo a primeira, compõe com ela a aparência final do sujeito (CASTILHO, 2006, p. 87 e 89).

Verifica-se então uma necessidade puramente mercadológica de inverter a ordem do uso das máquinas, das mídias e das peles em prol de uma ordem das imagens-signo. De trazer para o primeiro plano aquilo que é secundário e de domesticar o corpo a não exaltar-se a ponto de “constranger” a roupa (que contém em si a onipresença do estilista). É esse o dilema que assombra e/ou faz viver e reviver o corpo inserido no universo da publicidade de moda - fenômeno que Barthes chama de “paradoxo da moça da capa de revista”.

Ao contrário de Castilho que fala sobre a relação corpo/vestuário numa realidade generalizada, Barthes, ao abordar especificamente do universo da Moda, argumenta que o corpo, sob a forma de sensível puro, não pode significar e que é o vestuário que assegura a passagem do sensível ao sentido e, por isso, seria ele, o vestuário, o significado por excelência. Essa mudança de perspectiva produzida pela Moda sobre o corpo e o vestuário desencadeia um conflito que, segundo o autor, envolve uma descontinuidade estrutural entre a Língua e a Fala, a instituição e a sua atualidade; e conseqüentemente entre o corpo abstrato da

modelo e o corpo real das leitoras; e ainda sobre o corpo das modelos, uma tensão entre a sua funcionalidade estética e estrutural. É nesse ponto que se dá o paradoxo mencionado.

Para Barthes, a função essencial do corpo da modelo não é estética, mas estrutural; e que longe de apresentar-se como um belo corpo, este corpo apresentado precisa enquadrar-se como estrutura de apoio à roupa, visto que, como afirma Lomazzi, “a publicidade da moda é só e constantemente publicidade do vestuário” (1989, p. 85). Daí que

O corpo da moça de capa não é o corpo de ninguém, mas uma forma pura, que não é suporte de nenhum atributo – não se podendo dizer que é isto ou aquilo -, e, por uma espécie de tautologia, remete ao próprio vestuário. O vestuário aqui não tem encargo de significar um corpo redondo, esguio ou pequeno, mas de significar-se a si próprio em sua generalidade, através desse corpo absoluto. Desse caminho de conciliação entre a instituição e a sua atualidade encarrega-se a fotografia, ou o desenho de Moda (1979, p. 245).

Mas é na própria fotografia de moda que Barthes percebe não a submissão da mídia primeira à segunda, mas sim a insurreição do corpo diante da roupa, mediante a organização espetacularizada dos gestos corporais que constroem uma cena, uma situação dramática. É neste ato de fotografar o corpo em situação, de criar um acontecimento para o corpo, que o autor enxerga uma subversão do corpo para além de sua condição estrutural e, por conseqüência, uma diminuição na importância comunicacional da roupa. Mas seria correto pensar essa ação do corpo em termos de insurreição? A ideia de diálogo não seria mais adequada? Afinal, a situação que coloca o corpo exposto em espetáculo não é a mesma que exige que seus gestos vendam a qualquer custo o conceito do produto, que é a roupa? O que dizer do uso da metáfora42 e principalmente o da metonímia43 na realização do corpo como instituição produtora de imaginários coletivos através da publicidade? E, ao falar em metonímia, o que pensar dos corpos que se vestem de conteúdo ao despirem-se (Figuras 12 e 13).

42 A mulher de Moda é uma coleção de pequenas essências separadas, bastante análogas aos “empregos” do teatro clássico (BARTHES,

1975, p. 241);

43 “A Moda põe a mulher em cena, de tal modo que o simples atributo da pessoa, falado sob a forma de um adjetivo, absorve de fato todo o

Figura 12 – Modelo Angelea Preston (14º Ciclo de America´s Next Top Model).

Figura 13 – Modelo Jaslene Gonzalez (8º Ciclo de America´s Next Top Model).

As perguntas suscitam uma nova tensão apresentada por Baudrillard em A Sociedade

de Consumo, no qual o autor argumenta que a função social da permuta é preponderante na

construção do corpo erotizado. Dessa maneira, “o imperativo erótico que tal, como a cortesia ou tantos outros rituais sociais, passa por um código de signos, reduz-se (como o imperativo estético na beleza) a variante ou a metáfora do imperativo funcional” (BAUDRILLARD, 1995, p. 141). Passamos assim do paradoxo entre estética e estrutura de Barthes para o de

Baudrillard que confronta forma e conteúdo, o qual retoma o binômio ação/funcionalidade44

apresentada por Eco. Diz Baudrillard:

O corpo do manequim é objeto de desejo, mas objecto funcional, foro de signos em que a moda e o erótico se mesclam. Deixou de ser síntese de gestos, ainda mesmo quando a fotografia de moda ostenta toda a sua arte para recriar o gestual e o natural por meio de um processo de simulação; para falar com propriedade, já não é um corpo, mas uma forma (1995, p. 142).

Chegamos então ao fim do corpo e da roupa como essência do indivíduo, sobrepujando-os à forma e à funcionalidade? E se a fotografia poderia ainda salvar um ou outro através de uma insurreição corporal ou de um levante do vestuário, o consumo destruiu os dois de uma vez em prol da comercialização de signos palatáveis? Creio que uma resposta positiva a qualquer das perguntas seria muito radical. Já acreditar numa resistência corporal ou indumentária talvez soasse, por demais, romanceado. É preciso, por isso, acreditar que mais do que uma imposição, existe um diálogo entre os diferentes elementos materiais e humanos que compõe a imagem e se utilizam do corpo e da roupa para construí-la. O melhor talvez seja pensar na formulação da imagem como um jogo no qual vence quem tem a agilidade suficiente para montar signos. No caso de America’s Next Top model, conquista a competição quem consegue manter uma conversa pacífica entre seu corpo e as várias roupas- entidades que lhes vão sendo apresentadas ou confrontadas no ato de produzir imagens para consumo.

44 Esse mesmo contraponto entre ação e funcionalidade pode ser observado em Lomazzi no que se refere à contradição entre o caráter

estético da moda que busca inspiração no irracional e no novo e o caráter utilitário da publicidade que se preocupa menos com a criativa e mais como a procura que movimenta o mercado de consumo e para o qual a originalidade deve ser mantida na linha do conformismo (1989, p. 80 e 81).